O dia mais frio do ano

O dia mais frio do ano



Seria um dia como tantos outros na vida de Flora, psicóloga, casada, mãe de três filhos, não fosse o frio repentino que havia chegado à cidade durante a madrugada e, junto com este, a notícia de que sua amiga e colega de trabalho havia falecido.


Sair da cama e escolher uma roupa para os funerais parecia uma missão impossível. No dia anterior haviam se encontrado brevemente durante o trabalho na clínica e a amiga parecia perfeitamente bem, lembrou-se Flora, enquanto abria a janela para checar as condições do tempo como se já não soubesse que o dia amanhecera frio. Sua indecisão quanto à roupa que usaria estava ligada à sua recusa interior em acreditar que tudo aquilo era real e ela sabia disso. Não queria se vestir, não queria sair de casa. Olhou a cidade totalmente irreconhecível em tons de cinza e a neblina invadiu o seu quarto e encheu seus pulmões com o gelo inevitável da realidade. Ela fechou a janela sem ao menos notar a aproximação de um vulto escuro. Ela estremeceu e angustiou-se profundamente, então fechou as cortinas – as cortinas floridas e graciosas que a filha havia insistido para que comprasse, e a lembrança dos olhos alegres de sua filha lhe deu uma alegria momentânea. Ela nem percebeu, mas o vulto lá fora se afastou. Aquele frio fora de época que cobria a cidade de neblina trazia, para ela, a sensação de que nunca mais seria feliz na vida. “Não: deve ter a ver só com a circunstância. Isto não tem nada a ver com o tempo”, pensou Flora.


Flora foi ao enterro acompanhada de seu marido, Felipe, um homem alto e bonito, de cabelos escuros e pele muito clara – a quem ela, apesar dela nunca comentar o quanto o achava bonito, para lhe fazer pirraça, amava muito. Enquanto caminhavam lado a lado, de mãos dadas, Flora esforçou-se para esboçar um sorriso para ele. Ela normalmente era uma pessoa de muito bom humor. Humor que ela notou que parecia ter se esvaído no momento que levantara-se da cama para pegar um cobertor, ainda durante a noite e  mesmo antes de receber a triste notícia daquela manhã. Sentia-se arrasada. Estranha. Estava distante e mal conseguia prestar atenção naquilo que fazia ou dizia, cumprimentando com pesar amigos e desconhecidos.


Continuava pensando que o nevoeiro a havia deixado muito angustiada. “Não, não é o nevoeiro, mas a situação”, tentou explicar a si mesma. Amparou-se ao marido e se forçou a seguir em frente. Flora e Felipe chegaram próximos ao local em que se daria o sepultamento, ficando um pouco mais atrás da pequena multidão que tinha vindo, como eles, se despedir. Começam, então, as homenagens finais. Estavam no cemitério antigo do centro da cidade eas esculturas sobre as sepulturas que sempre a fascinaram a distraem, sobretudo a da jovem noiva, debruçada sobre a sepultura do amado, que lhe causa um grande nó dentro do peito. Tentou fugir desta angústia segurando a mão de Felipe com firmeza. Olhou para as árvores antigas, sentiu o frio bater-lhe suavemente no rosto e, então, notou dois homens que a olhavam de modo estranho, com um interesse fora do comum para a ocasião. Pensou imediatamente que deveria estar mal-vestida ou coisa assim, pois estava sempre com roupa fora de moda. Disfarçou para olhá-los melhor. Nunca havia visto estas pessoas antes.


Um era alto, loiro de cabelos compridos, pele muito branca aparentando algo entre 50 e 60 anos e, agora ela tinha impressão de que ele a olhava com certa veneração. Ele estava acompanhado de outro homem, muito mais jovem, encorpado e mal-encarado, cabelos pretos curtíssimos. Vestiam-se como se não fossem da cidade, pareciam estrangeiros, na verdade. Não falavam, nem entre si. Tampouco cumprimentaram os familiares da falecida, pareciam estar ali por causa dela. “Não, estou imaginando coisas novamente”, pensa Flora, lutando contra suas percepções.


Flora sentia cada vez mais dificuldade em prestar atenção no que estava acontecendo e por um momento, ela teve a sensação de que havia uma força estranha querendo comandar suas ações e fazê-la seguir aquele senhor mais velho. Ela sacudiu a cabeça, como que para tirar estes pensamentos para longe. A sensação passou. O homem parece sorrir e encará-la brevemente. Imediatamente, Flora desviou o olhar e avistou, porém, um vulto alto, encapuzado, vestido com uma capa escura que parece deslizar entre as sepulturas, em seguida um brilho que parecia sair debaixo do sobretudo daquele mesmo senhor e  o vulto afastou-se. O que era aquilo? Com certeza estava imaginando coisas, os homens deveriam ser parentes ou amigos da falecida e ela, Flora, estava abalada demais, beirando a loucura, talvez, e, por isso,viu a morte em pessoa. Ou melhor, imaginou. Pensou, ela, tentando ser racional, sacudindo a cabeça. Precisava de férias, com certeza era isso, conclui, finalmente.


Terminados os funerais, começou a garoar. Flora saiu do cemitério se apoiando ainda mais no marido, quase sendo carregada por ele. Ela tremia, não sabia se era por causa das gotas geladas que desciam por sua nuca ou o nervosismo que estava tomando conta dela. Já na rua, encontrou novamente com aquelas figuras sinistras, os dois homens, e resolveu encará-los – sabia que seu olhar às vezes afastava as pessoas. Olhou no fundo dos olhos do homem loiro, com tanta intensidade que acreditava que o faria desabar de suas pernas. Ele cambaleou e confirmou com a cabeça para o outro, aparentemente satisfeito, sussurrando: “it’s her”. Isto a assustou ainda mais.


Percebeu que o marido não havia notado nada, o que lhe deixou com a sensação de que tudo poderia ser fruto de sua imaginação, e apressou o passo, comentando com Felipe que precisava descansar.


E se realmente estivesse imaginando coisas? Será que seu juízo estaria vacilando? Sacudiu a cabeça novamente, sua cabeleira negra se desprendeu do coque que havia feito e  desceu por suas costas aos cachos. Ela viu sua imagem refletida no vidro de um carro: parecia ainda mais pálida do que o habitual, até seus olhos pareciam ter desbotado um pouco nas últimas horas. “Talvez as folhas de outono tivessem mesmo mudando de cor”, ela pensou, uma vez que costumava dizer que seus olhos eram cor de folha de outono: algo entre verde, castanho e cinza. Aconchegou-se nos braços do marido e seguiu para casa em silêncio.

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