Lembranças



Ela jogou o décimo quarto tomo encadernado para a mesa ao lado. O título “Símbolos e Simbologias” foi visto pelo canto do olho enquanto ela se preparava para mais uma pesquisa frustrada sobre o pequeno dragão que estava desenhado, não coincidentemente, no ombro dos Draconiam. Hermione sabia, melhor, ela sentia que não estava louca, que ali havia muito mais do que realmente aparentava.


Os olhos de fenda, o texto em latim no setor proibido, a forma como eles pareciam ter dezenas de anos, tudo aquilo já estava bem claro na cabeça dela: eles eram dragões.


Mas como?


Dragões eram criaturas animalescas e assim sempre haviam sido, não existia um texto sequer que dissesse o contrário, era absurdo que eles estivessem andando por aí com aparência humana. Mas estavam.


A garota vasculhou mais uma vez as prateleiras da biblioteca, mas se ainda não havia encontrado nada em catorze livros, que esperança tinha de encontrar em qualquer outro lugar? Ela lera tudo que havia para se ler sobre símbolos, desde “Que Símbolo é esse?” até “Símbolos de Arcadia e além”, mas os esforços foram em água, nenhum dos símbolos sequer lembrava as tatuagens.


- Procurando alguma coisa? – Perguntou uma voz conhecida às suas costas.


A garota se virou com um sorriso cansado.


- Kate, você deveria estar descansando, sabia? Onde estão os meninos?


Katherine deu de ombros, sorrindo e sentando-se ao lado da amiga.


- Não ia ficar minha vida toda numa enfermaria, certo? Além do mais, a Madame Pomfrey fez um ótimo trabalho com aquela poção com gosto de catarro. – Seus olhos vagaram pelas capas de livros. – E os meninos pararam de me paparicar quando eu gritei com eles... Foi até bem fácil.


Hermione organizou os livros de forma apressada, empilhando-os sem jeito e depois os empurrando de qualquer maneira na prateleira vazia que ela estivera observando fazia algumas horas.


E então um maldito livro caiu. Direto nos pés da Draconiam.


- “Símbolos que você não vai esquecer”. Algum professor passou alguma pesquisa e eu não estou sabendo? – Ela levantou o livro, agora aberto numa espada cruzada com um mosquete.


Hermione olhou-a séria.


- O que significa o pequeno dragão em seu ombro, Kate? – Ela suspirou, aliviada por finalmente ter falado. – E porque diabos seu irmão tem uma tatuagem igual? Não me diga que são só tatuagens sem significado, por favor, não sou tão tola.


A morena suspirou, olhando a amiga de cima a baixo, uma expressão piedosa em seu rosto. Ela chegara tão perto, perto demais até. Merecia um prêmio.


- Não é apenas uma tatuagem sem significados, Hermione. É muito mais que isso, é a única forma de conter toda a magia que corre pelo meu corpo e o do meu irmão, é a única forma de termos certeza que nossos corpos humanos não vão ser destruídos por todo o poder que nós temos. – Ela colocou a mão no ombro da garota. – Era isso que você queria, Hermione? Depois de tanto pesquisar, depois de chegar tão perto, você queria ouvir a verdade? A verdade é essa: nós não somos humanos, fazemos parte de uma monarquia há muito tempo esquecida, transformada por tudo aquilo que os humanos se tornaram, mudando com vocês. Evoluindo com vocês, mas sem nunca sermos alterados em matéria. Somos o que o fogo nos fez para ser. Nós somos dragões.


O silêncio tomou conta do lugar. Mesmo as palavras aqui escritas tendo apenas sido sussurradas parecia que aquilo era só o que importava, a única coisa que a garota conseguia raciocinar.


Então era verdade! Hermione estava certa. Todo esse tempo, toda a pesquisa não tinha sido gasto. Um sorriso se estendeu em seu rosto.


- Sim! Eu sabia. O texto, o texto dizia que Peter dilacerava os magos, dizia que a Pedra era um general de guerra! Então é verdade? Houve uma guerra?


Katherine estancou. Texto? Todas as provas sobre a existência dos Dragões deveria ter sido destruída quando eles perderam a guerra. Então como...?


- Mione, espera. Você pode me mostrar esse texto? Agora você me deixou curiosa, não sabia que ainda existiam textos falando sobre, bem, nossa raça.


Hermione segurou a mão da garota, que ainda estava apoiada em seu ombro.


- Está na seção reservada... Não podemos entrar lá. – ela apontou com a cabeça para Madame Pincey, que lia um livro em uma das mesas.


- Nada que eu não possa resolver. – Disse Kate, com um sorriso divertido. – Vem, vamos.


Puxando a garota, ela se dirigiu frente à porta da sala Reservada.


- O que você pretende? – Hermione estava assustada e curiosa agora que descobrira que o que acreditava era verdade, isso significava que a garota era tão perigosa quanto o texto sugeria. Dragões se deliciam com a carne de humanos, pensou. – Kate, espera.


A Porta se estendeu à sua frente, alta como uma torre.


- Não se preocupe Hermione, magia draconiana é a mais segura que existe. – Apertou com mais força a mão da garota e tocou a porta. – Talvez você sinta um pouco de enjoo, mas é normal.


Antes que a garota pudesse protestar que não estava pronta para ser alvo da magia, tudo começou a mudar. Não era perceptível ao nível físico, mas ela conseguia sentir o ar ficando pesado assim como seu peito. A mão de Katherine, encostada na madeira, lançou uma fraca luz azul sobre o ambiente.


- Kate? – O frio na barriga subiu. O que diabos ela ia fazer?


Com um movimento leve a garota empurrou a mão contra a madeira, e, como se não houvesse matéria ali, ela atravessou a porta maciça. Seu corpo tremulava como se ela fosse um fantasma, empalidecendo à medida que seu braço, ombro e corpo atravessavam a matéria. Hermione sentiu a comichão quando sua mão ocupou o mesmo espaço que o carvalho seco, assim seguida por seu corpo todo.


O medo se apossou dela quando seu tronco começou a atravessar a porta. Era como sentir todo seu corpo se desfazendo em pequenos pedaços e se reorganizando do outro lado.


Não havia dor, apenas o formigar de sua pele, e mesmo esse acabou quando ela atravessou o portal por completo, sua boca balbuciando palavras sem sentido.


- Isso foi...


Katherine sorriu.


- Eu sei, eu sei, não precisa dizer nada. Vamos, o texto.


Hermione tomou à dianteira, ainda atônita.


Suas passadas eram inseguras e fraquejavam, fazendo parecer que era uma novata naquela empreitada, mas não, ela passara horas ali, só que não em tão ilustre companhia, agora que tinha certeza de quem a acompanhava.


Katherine ficou ali, quieta à porta, apenas observando a garota se mover por entre as prateleiras. Ela não entende ainda no que se meteu. Eu poderia destruí-la aqui. Ela sentia pena, em certo aspecto, da fragilidade da amiga, de como sua magia soava tão fraca e lúgubre perante a iluminação que ela apresentava. Foi quando Katherine percebeu que gostava disso, por mais que não quisesse admitir.


 


Ela andava acompanhada de James, eles caminhavam à noite, através dos corredores, a capa de invisibilidade jogada sobre o ombro dele, ela usando uma magia para permanecer invisível.


- Queria poder fazer isso. – Ele diz


Ela dá de ombros num movimento gracioso. Típico.


- Talvez no sétimo ano, gato. - Ela dá uma piscadela marota em direção ao garoto, que sorri bobo. – Agora foque-se, estamos tentando invadir a sala de Dumbledore para tirar uma pena de Fawkes. Não podemos perder a aposta.


Ela deu uma risadinha, Sirius e James haviam decidido apostar quem conseguiria pegar o artefato mais bem guardado de Hogwarts, originalmente instigados pela história da carochinha de Peter que vivia dizendo que o mais poderoso artefato do mundo estava escondido nas entranhas daquele castelo. O que importava: ficou a cargo de James e Katherine, que prometera não usar magia draconiana para conseguir pegar o artefato, capturar uma pena da Fênix de estimação de Dumbledore, e a Sirius e Remus a complexa tarefa de pegar um pelo do rabo da madame Nora.


Cá entre nós, meu caro leitor, preciso dizer que não posso decidir qual deles tinha a mais difícil tarefa, mas posso garantir que nenhum dos dois grupos conseguiu realizá-las.


Mesmo depois de invadir a sala onde, devo dizer, Katherine quebrou sua promessa (por razão da insuportável insistência do seu companheiro na empreitada), eles ainda tinham um desafio a realizar: chegar até a ave sem acordá-la, ou ao seu dono ou ao Chapéu Seletor, que repousava, nessa época, sobre um pedestal atrás da escrivaninha do diretor.


- Vai lá, faz sua mágica. – Encorajou o rapaz, sussurrando sob a capa de invisibilidade.


- Mas a ideia era que eu não usasse minha magia, lembra? – Ela apontou pro pássaro. – Trabalhe, seu paspalho.


James mostrou-lhe a língua, pois sabia que ela seria a única ali que poderia ver através da mágica de invisibilidade.


- Vamos garota, você não vai deixar o idiota do Sirius e o nerd do Remus ganharem da gente, certo? Se pegarmos essa pena logo a gente ainda vai voltar a tempo de avisar ao Filch e impedir que eles peguem o pelo.


- Você não faria isso.


James deu de ombros, como quem não tem escolha.


- Amigos, amigos, apostas à parte.


Katherine suspirou, como ela sempre fazia quando se via encurralada entre um cara fofo e uma decisão difícil. Mas ela não tinha escolha, James parecia ter a insuportável capacidade de convencimento através do cansaço.


- Se você disser que eu fiz algo, eu nego. – E andou decidida até Fawkes, que repousava calmamente sobre seu poleiro de madeira gasta, uma pira funerária balançava logo abaixo. – Acorde, pequena, preciso de um favor de vossa graça.


A ave levantou o bico, de forma lenta, como se ainda estivesse sonolenta, suas asas balançaram, desconfortáveis. Ela parecia reclamar daquela intromissão noturna, mas não fez nenhum barulho.


- Boa noite. – Disse a princesa.


Boa noite, pequena, seja rápida. Piou solenemente a fênix em sua mente. Não sinto-me disposta, creio que minha hora se aproxima.


- Entendo. – Ela parecia sinceramente triste.- Preciso de não mais que uma pena e sua paciência.


A fênix assentiu.


Espero gentileza de sua parte, Dracae. Era estranho aos ouvidos de Katherine ser mais uma vez chamada de sua nomenclatura grega, mas não inesperado, uma vez que ambas as criaturas tinham suas origens na antiga Hélade.


O Pássaro de Fogo abriu suas asas, imponente e resplandecente, enchendo de uma fraca luz mórbida a sala escura.


A garota esticou sua mão e levemente, com toda a graça que tinha, retirou uma pequena pena cor de chamas. A ave piou baixo.


Vá, e leve seu amigo.


Katherine assentiu, sorridente.


- Agradeço, amigo, tenha paz nessa hora que se aproxima.


- Terei mais, creio eu. Tenha o discernimento necessário para lidar com os espelhos, minha bela.


Não entendera na época a garota, mas, em um futuro próximo, ela entenderia que a fênix falara das dificuldades que passaria junto com seus amigos naquela escola, quando iniciassem suas aventuras na Sala Gêmea.


Com uma reverência, a menina virou-se para o colega, que a observava de olhos arregalados.


- Dragões falam estranho. – Ele sussurrou. – Você grunhe assim sempre ou é só quando tá falando com criaturas místicas?


A morena sobressaltou-se. Não se dera conta de que falava a língua dos dragões, aquilo havia ficado tão marcado em seu sangue, que já não percebia as diferenças entre uma língua e outra.


Mas era óbvio que ela não pertencia àquele mundo. A forma como o amigo ficara surpreso e como ela tratara naturalmente a situação, aquilo em certa medida machucou-a, tornou perceptível a barreira que existia entre ambos, quase como Peter sempre dizia...


Você não é humana, Katherine, você é um dragão. Muito maior e mais poderoso que o mais poderoso deles, você não pertence a nenhum mundo que não seja o nosso e nosso mundo está um inferno.


Fora por isso que ela vinha andando com ele. Queria corrigir seu mundo, mas por vezes se esquecia disso, ela se tornava cativa desses pequenos seres que uma vez tomara para estudo.


Ela era um dragão e já não tinha dúvidas disso.


Ela era um dragão, devia agir como tal.


Ela devia agir como nascera para agir.


 


Hermione voltava lentamente, pé ante pé com o tomo grosso em suas mãos, seu corpo vacilando com o peso extra. Sentia-se amedrontada e curiosa ao mesmo tempo. A amiga assumira uma postura tão principesca e autoritária desde que haviam entrado na sala reservada que ela mal reconhecia a pessoa por trás da máscara. Ou, afinal, a máscara era aquela que ela vestira antes?


- Kate, espera. – Ela disse quando a outra se aproximou ávida para pegar o livro. – Antes eu preciso de respostas. Por quê? Por que se esconder?


A morena suspirou.


- Era necessário. Não é prudente revelar nossa identidade dessa forma, você não saberia se eu não tivesse certeza que já adivinhou. Entenda Hermione, é para minha segurança tanto quanto para a sua. Não são poucos os perigos que rondam um dragão nessas Eras.


Hermione permaneceu pensativa.


- Delarious? Ele está atrás de vocês? Por que se ele estiver, a gente podia... – Mas parou no caminho. Podia o quê? Lutar com um professor até ele sair correndo? – A gente não poderia fazer nada, não é?


Katherine gentilmente balançou a cabeça.


- Não há nada que vocês possam fazer. Só estamos aqui porque Dumbledore podia garantir nossa segurança. Nem sei se ele ainda pode garantir isso... Não sei nem o que ele ainda pode fazer.


Aproximou-se, segurando a mão da outra, olhando-a de forma cúmplice e então a abraçando.


- Mas é bom falar. – Disse a morena. – Foi bom ter dito tudo que estava engasgado na minha garganta. Obrigada, Hermione, mas acabou, é hora de voltarmos a nossas realidades, você será só mais uma garota em Hogwarts e eu a princesa renegada e escondida, nossos papéis não mais se encontrarão por trás dessa máscara. Somos de mundos à parte.


Hermione tentou desfazer-se do abraço, mas era duro como Pedra.


- Kat, o que você tá querendo... Espera!


- Petrificus Totalus.


E então a garota virou nada mais que uma massa dura.


- Desculpe, querida. Não queria precisar fazer isso, mas você chegou muito longe, longe demais.


Lançou mais um olhar de piedade para a amiga. Com um maneio de mão, o tomo flutuou até sua frente, abrindo diretamente nas páginas que lhe interessavam. Ali estava toda a história da guerra draco-bruxa inglesa, a história de como Peter destruiu levas e mais levas de bruxos e como esses conseguiram, com muitos anos e persistência, derrotar os seus opositores.


- Não, Hermione, é muito perigoso, sinto muito. Isso morre aqui, entre nós. Incendio.


O livro foi consumido em chamas azuis, crepitando de forma piedosa enquanto se desfazia em cinzas e era espalhado pelo chão de pedra.


- E quanto a você, amiga, preciso que pare de procurar encrenca. Só vou dizer minha ordem uma vez e tenha a certeza de que tomarei medidas mais drásticas se tiver que repeti-la. Se mais alguém chegar perto, você irá dissuadi-los, fará com que percam o rastro ou que não continuem à procura de quem ou o quê são os Draconiam. E, para selar nosso pequeno contrato, uma última ordem, um ultimato.


Esqueça.


E não mais que o silêncio foi ouvido naquela Sala.


 


...


 


Ákardos. Sem coração. A espada fora lhe dada pelo próprio pai quando ele matara o primeiro inimigo em guerra. A espada nunca vira a derrota daquele que a portava, diziam. E era fato. A derrota nunca havia tocado Peter enquanto ele usara a espada. Mesmo da única vez em que perdera, ele não a usara. Ele havia sido derrotado, talvez, exatamente por não estar empunhando-a. Desde que a guerra acabara ele não mais teve a chance de levantar sua lâmina contra seus inimigos.


Até agora.


A neve caia tímida sobre a relva ao redor da Casa dos Gritos e uma fina camada já se formava, substituindo o orvalho por densos flocos de neve. Peter movia-se pela grama com uma precisão milimétrica, nunca errando nenhum movimento. Seus alvos eram os mais improváveis e os menores: os próprios flocos.


A bainha havia sido deixada no primeiro andar da casa, repousando sobre a cama, ao lado do punhal de Katherine. Ele sentira falta do livro que ele mesmo havia libertado de dentro do assoalho, mas isso pouco importava no momento, agora a única coisa que lhe interessava era o quão rápido ainda conseguia se mover.


A espada parecia mover-se mais rápido que seu pensamento. Mais uma vez ele decidiu não se conter, não se importando com olhos curiosos, apenas deixou a dança da guerra tomar conta de si. Era patético lutar contra flocos de neve, mas era o melhor treinamento que teria em dias.


O ferro quente chiava de encontro com a água sólida, soltando vapor quando era apoiado na relva nos momentos em que o rapaz parava para meditar. A arte da dança draconiana consistia em extensas horas de treino com intervalos de meditação entre elas, onde o dragão deveria sentar-se em algum lugar calmo e cruzar as pernas. Uma vez nessa posição, o Dançarino deveria respirar profundamente, aspirando o ar da natureza e devolvendo o ar quente em seu pulmão, expelindo uma grossa coluna de chamas.


E, sendo o autor, e devendo ser fiel ante os fatos e personagens, preciso dizer que Peter era genuinamente o melhor nessa arte.


Uma grossa coluna de chamas verdes saiu de seu nariz, espiralando e se encontrando com a relva, queimando-a, desfazendo-a em um círculo ao seu redor.


- É muito fácil lutar contra flocos de neve, meu irmão. – Disse sua própria voz do outro lado da clareira.


- Não tão fácil quanto se fosse você, irmão. – Um pequeno sorriso apareceu em seus lábios, mas seus olhos permaneceram fechados. – O que me conta de novo, pequeno pentelho?


Demétrius fez uma careta ante a velha piada de irmãos.


- Estou apenas de passagem, como você sabe. Esperando o momento certo...


-... Para trair seu próprio sangue?


Peter levantou-se, a espada em seu punho, os olhos serenos e calmos. Uma calma assustadora.


- Você traiu o sangue, Peter. Você é o traidor aqui. – falou andando em direção ao seu gêmeo, a mão no punho de sua espada embainhada. – Não esqueça que você fugiu, matou um humano...


- Humano esse que queria macular nossa espécie!


- SUA IRMÃ!


- NOSSA! Até isso você esqueceu, até nisso você se vendeu ao nosso pai. Quanto custou para ele lhe colocar numa coleira? Foi só porque agora você tinha o meu poder ou porque era parecido comigo?


Demétrius desembainhou a espada com a velocidade de um raio e a colocou na direção de seu irmão.


- Você foi embora e me deixou sozinho. Você me esqueceu lá, sumiu no meio da noite como um rato. Eu procurei você por toda a maldita Alemanha, Grécia e o resto dos nossos reinos. Você evaporou, meu irmão. Você não estava lá quando eu precisava. E eu precisei de você.


Peter aproximou-se da ponta da espada, tocando-a em seu peito coberto com uma fina camada de pano.


- Eu precisava de uma coragem que você não tinha para me dar, Demétrius. Eu precisava da coragem que você não estava pronto para ter. Você estava mais seguro onde esteve todos esses anos. Só me arrependo de não ter te impedido de se tornar um bichinho de estimação.


Demétrius vacilou, a espada cortando o pano vagamente, apenas um risco em suas roupas.


- Eu teria arranjado a coragem de que você precisava, irmão. Eu teria feito o necessário. Mas você não acreditava em mim, nunca acreditou, sempre me achou fraco.


Uma estrondosa gargalhada percorreu a clareira. Peter ria.


- Eu sempre acreditei em você, Demétrius. Ainda acredito. Você sempre ocupou minha mente e não tinha nada a ver com a nossa conexão. Você é e sempre será meu irmão, mas não vai me impedir de chegar ao meu destino. E é por isso que eu estou aqui e você aí. Destino...


- ...Escolhas. Eu lembro. Eu me lembro da cantiga.


Por instante apenas ficaram a se observar, os flocos de neve evaporando quando se aproximavam de ambos.


- Uma última luta? – Perguntou Peter, afastando-se, colocando uma distância de dez pés entre ele e seu irmão – Uma última luta como irmãos, antes que nos tornemos inimigos?


Demétrius maneou a espada, apontando-a para o chão.


- Sim, uma última luta.


 


Peter apontou a espada na direção do irmão.


- Vamos, levante-se. – Ele sorria, divertido. – Não posso acertar você aí no chão, seria injusto.


Demétrius olhou-o do chão, cuspindo um punhado de areia e grama que havia entrado em sua boca quando o irmão o acertara na nuca, jogando-o de boca no chão.


- Peter, faça um favor à todos e vá à merda. – Disse, levantando-se.


Com um movimento rápido recuperou a espada, exatamente no momento de se defender de mais uma estocada de Peter, que o atacava.


Estavam treinando, deviam ter pouco mais de 500 anos, e o cenário era a Grécia. Seus corpos humanos não aparentariam mais de 8 anos. Um campo de grama se estendia por sob seus pés até terminar no Mediterrâneo, onde uma ruína de um antigo templo jazia meio caída dentro da água.


- Vem, vamos. – Peter ajudou o irmão a se levantar. – Você tem de mover a espada mais rápido, seus pés também não estão fazendo o movimento certo, se não fizer, vai acabar caindo. Assim. – Peter passou a espada por entre as pernas do irmão e fê-lo cair. – Agora levante-se novamente e arrume seus pés, não vou parar de ensiná-lo até você ser forte o bastante para me derrotar.


Demétrius levantou-se a contragosto.


- Por quê? Por que até derrotar você?


- Porque se você conseguir me derrotar, vai conseguir derrotar qualquer um.


- Você não é tão poderoso.


- Não enquanto você não for. Somos gêmeos, nossas almas são uma só, o que você aprende, eu aprendo, e eu tenho muito a te ensinar e consequentemente aprender com você.


Demétrius deu um meio sorriso bobo.


- Que tal aprender a ser menos chato?


- Ora seu... – E atacou-o.


As espadas brandiram até o entardecer, quando a lua já dividia espaço com o sol. Os irmãos sentaram-se à beira da praia, seus dedos desnudos tocando a água fria do Mediterrâneo.


- Peter... – Começou Demétrius. – Já que somos uma alma só, o que acontece se a gente se separar? Ou morrer?


O irmão suspirou, seus olhos verdes fitando o mais jovem durante um longo tempo.


- Nada. Isso nunca vai acontecer. Eu não vou deixar.


 


Demétrius não tinha dúvidas: Peter estava mais fraco, mais lento. O irmão já não se exercitava ou sequer treinava e essa devia ser a primeira espada que ele pegava desde que começara a fugir. Mas nada disso o impedia de estar vencendo.


Demétrius tinha severos cortes nas costas e em sua perna, onde Peter fizera um talho. O sangue quente e prateado draconiano caía pela sua coxa, manchando suas roupas e evaporando a neve superficial que se acumulava em seu corpo.


- Você perdeu a prática Peter, eu consegui acerta-lo pelo menos quatro vezes mais do que você conseguiu. – Era verdade, no entanto, as feridas que Demétrius havia feito não eram nem de longe tão letais quanto as de Peter.


- A honra de um guerreiro é contada através das gotas de sangue em sua espada e não dos cortes no corpo do seu inimigo. – Fazendo um movimento em arco com a espada, o mais velho limpou o sangue fresco que fumegava no metal. – Você estaria morto, se a batalha não fosse acabar aqui.


- Ela não vai. Eu não acabei com você.


- Nem nunca terá essa oportunidade, irmão. Você é fraco.


Demétrius atacou mais uma vez. Mas vacilou no último instante com uma pontada em sua coxa, uma dor fina que acertou ser músculo como uma navalha. Ele caiu a dois passos de Peter, que teve de ampará-lo para que não fosse com o rosto ao chão.


- Levante-se, você não está forte para lutar, não mais.


Demétrius afundou o rosto no braço do irmão.


- Por quê, Peter? Por que só o que importa para você é o poder? Eu sou sua família. Esqueça isso, volte pra casa.


Peter levantou o rapaz, deixando-o ereto.


- Não é pelo poder, Demy, é pela família. É por você. Alguma parte de mim sabe que eu não sou o melhor para vocês, mas tenho um papel a cumprir, e a Katherine também. Estou seguindo meu caminho e fazendo minhas escolhas. E elas me trouxeram até aqui. Eu vou me tornar poderoso pela família, vou trazê-la de volta ao que ela era. Por nós.


- Você foi quem me tirou de você. Foi você quem me afastou e você disse que não ia deixar. Você mentiu para mim.


Peter soltou os ombros do irmão, deixando-o cambaleante, tentando fixar-se em seu próprio eixo.


- Você não aprendeu nada Demétrius, você era minha âncora. Mas você cresceu sem mim. Eu fiz o que era necessário por nós. Eu te afastei para fazê-lo crescer. E parece que você quer continuar pequeno. Talvez seja esse seu destino. Ser pequeno. – Ele deu as costas, embainhando novamente a espada. – Cresça. Por favor, cresça.


Demétrius ficou quieto, fitando as costas do seu irmão 


enquanto ele seguia por entre as árvores.


Os flocos de neve caíram lentamente naquela tarde, onde o dragão ficou estático, como uma estátua, pesaroso.

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