Capítulo 07



Capítulo 07


 


O gato preto soltou um miado de aviso. Uma rajada de vento abriu a porta com uma batida e uma risada demoníaca ecoou. O barulho de gotas escorrendo pelas paredes e caindo no chão liso de concreto era acompanhado pelo som de prisioneiros arrastando correntes. Ouviu-se um grito agudo, seguido por um longo e desesperado gemido.


- Fantásticas essas gravações. - comentou Lilá, estourando uma bola de chiclete.


- Devia ter encomendado mais desses discos. – Ginevra pegou uma peruca laranja e colocou-a num fofo urso de pelúcia transformando-o num demônio de Halloween. – Este é o último.


- A partir de amanhã, você vai ter que começar a pensar no Natal. – Lilá colocou para trás o chapéu de bruxa e sorriu, mostrando os dentes pretos. – Lá vem os meninos Freedmont. – Esfregou as mãos e ensaiou uma gargalhada diabólica. – Se essa roupa servir para alguma coisa, serei capaz de transformá-los em sapos.


Ela não obteve êxito, mas, pelo menos, vendeu-lhes sangue de mentirinha e cicatrizes de látex.


- Só queria saber o que esses pequeninos e adoráveis seres estão planejando para a vizinhança hoje à noite. – mencionou Ginevra.


- Nada de bom. – Lilá curvou-se debaixo de um morcego pendurado. – Não está na hora de ir embora?


- Sim, num minuto. – Tentando ganhar tempo, Ginevra brincou com seu reduzido estoque de máscaras e narizes falsos. – O focinho de porco vendeu mais do que eu havia imaginado. Não me dei conta de quantas pessoas iam querer se vestir como animais da fazenda. – Ela pegou um deles para colocar em cima do nariz. – Talvez devêssemos mantê-los à venda o ano todo.


Reconhecendo a tática da amiga, Lilá passou a língua nos dentes para evitar rir.


- Foi muito gentil de sua parte oferecer-se para ajudar na decoração da festa de Lily hoje.


- Que bobagem! – disse Ginevra, odiando-se por estar nervosa. Tirou o focinho de porco, passou a mão numa tromba enrugada de elefante presa em gigantescos óculos. – Já que dei a idéia de fazer uma festa de Halloween para compensar a festa de aniversário que não pôde dar por estar doente, achei que devia ajudar.


- Hum-hum. Será que o pai dela vai aparecer vestido de Príncipe Encantado?


- Ele não é o Príncipe Encantado.


- Então, o Lobo Mau? – Com uma risada, Lilá ergueu as mãos num gesto de paz. – Desculpe. É tão estranho ver você nervosa!


- Não estou nervosa. – Que mentira! Admitiu Ginevra enquanto colocava no saco algumas de suas contribuições para a festa. – Você sabe, você é bem-vinda na festa.


- Agradeço muito. Melhor ficar em casa e protegê-la de bandidos pré-adolescentes. E não se preocupe - completou antes que Ginevra pudesse falar - vou trancar a porta.


- Está bem. Talvez eu também... – Ginevra calou-se quando a porta se abriu. Outro cliente, supôs. Oba, teria mais tempo para se preparar. Ao ver Terry, não foi possível dizer quem ficou mais surpreso. – Oi.


Com um nó na garganta, ele tentou reconhecê-la naquele traje.


- Gina?


- Eu mesma. – Esperando que ele a tivesse perdoado, sorriu e estendeu a mão. Ele trocara de lugar na sala de aula e toda vez que ela tentava se aproximar ele se esgueirava. Agora, parecia ter caído numa armadilha, embaraçado e inseguro. Terry apertou a mão estendida depois voltou a enfiá-la no bolso


- Não esperava encontrá-la aqui.


- Não? – Inclinou a cabeça. – Esta é minha loja. – Ela pensou se isso lhe daria uma pista de como estava certa ao dizer quão pouco a conhecia e sua voz suavizou-se. – Sou dona da loja.


- Você é a dona? – Ele olhou à volta, incapaz de esconder a forte impressão causada. – Uau! Uma loja e tanto.


- Obrigada. Você veio comprar algo ou apenas olhar?


No mesmo instante, ruborizou-se. Uma coisa era entrar numa loja e outra entrar numa cuja dona era a mulher a quem declarara seu amor.


- Eu só... hã...


- Algo para Halloween? – perguntou, na tentativa de ajudá-lo. – Vai ter festa na faculdade.


- Sim, bem. Achei que podia usar algo. Eu sei que é bobo, mas...


- Halloween é um negócio muito sério aqui na Fun House. – disse Ginevra solene. Enquanto falava, outro grito ecoou dos alto-falantes. – Está vendo?


Encabulado por ter se assustado, Terry deu um risinho sem graça.


- É. Bem, eu estava pensando numa máscara ou algo assim. Você sabe... – As mãos grandes e ossudas agitaram-se no ar, depois voltaram para os bolsos.


- Gostaria de algo assustador ou engraçado?


- Não sei. Não pensei nisso.


Compreensiva, Ginevra resistiu à vontade de dar-lhe urna palmadinha no rosto.


- Talvez tenha alguma idéia enquanto olha o que sobrou. Lilá, este é meu amigo, Terry Maynard. Ele é violinista.


- Oi. – Lilá olhou os óculos escorregarem pelo nariz ao menear a cabeça num cumprimento e o achou adorável. – Estamos com pouca variedade, mas ainda temos umas coisas bem legais. Por que não me acompanha e dá uma olhada? Vou ajudá-lo a escolher algo.


- Preciso ir embora. – disse Ginevra pegando as duas sacolas, esperando que a visita os tivesse colocado numa situação mais equilibrada. – Divirta-se em sua festa, Terry.


- Obrigado.


- Lilá, vejo você de manhã.


- Certo, e não coma muitas maçãs. – Afastando novamente o chapéu de bruxa dos olhos, Lilá sorriu para Terry. – Então, você é violinista.


- E. – Ele acompanhou Ginevra com o olhar. Quando a porta se fechou, sentiu dor, mas bem pequenininha. – Estou fazendo uns cursos de graduação na universidade.


- Legal. Ei, você sabe tocar Turkey in the Straw?


Do lado de fora, Ginevra ficou na dúvida se deveria passar em casa para pegar o carro. O ar frio e o dia claro a fizeram mudar de idéia. As folhas das árvores tinham mudado de cor. O patchwork glorioso da semana anterior, com suas folhas escarlates e tons vivos de laranja e amarelo, tinha passado para um tedioso tom marrom-dourado. Folhas secas curvadas pendiam dos galhos caíam nos meio-fios e espalhavam-se pelas calçadas. As folhas rangiam sob seus pés no curto percurso.


As flores imunes ao frio permaneciam, espalhando um cheiro gostoso muito diferente das pesadas fragrâncias do verão. Mais fresco, mais puro, mais suave, pensou Ginevra enquanto caminhava.


Deixou a rua principal, onde cercas vivas e grandes árvores ocultavam as casas. Lanternas enfeitavam entradas e varandas, rindo à espera de serem acesas ao anoitecer. Ali e acolá, efígies em camisas de flanelas e jeans rasgados pendurados em galhos desnudos. Bruxas e fantasmas estofados com palha sentados nos degraus, esperando assustar e alegrar as crianças que passavam.


Se alguém lhe perguntasse por que escolhera uma cidade pequena para se estabelecer, essa seria uma das respostas. As pessoas ali tinham tempo – tempo para esculpir uma abóbora, tempo para pegar um monte de roupas velhas e vesti-las num cavaleiro sem cabeça. Hoje à noite, antes do pôr-do-sol, as crianças correriam pelas ruas, vestidas como fadas ou duendes. Suas bolsas ficariam cheias de balas compradas em lojas e de doces caseiros, enquanto os adultos fingiriam não reconhecer os andarilhos, palhaços e demônios em miniatura. A única coisa que as crianças teriam a temer era de faz-de-conta.


Sua criança teria 7 anos!


Ginevra fez uma pausa por um instante, apertando a mão no estômago até a dor e a lembrança serem bloqueadas. Quantas vezes dissera a si mesma que o passado deveria ser esquecido? E quantas vezes esse passado iria retornar e retalhá-la em pedaços?


Verdade que a dor vinha com menos freqüência agora, mas continuava bastante aguda, e sempre inesperada. Podiam se passar dias, até mesmo meses, para de repente vir à tona, abatendo-se sobre ela, deixando-a um pouco atordoada, um pouco frágil, como uma mulher que tivesse batido com a cabeça na parede.


O motor de um carro acelerou. Ouviu a buzina.


- Ei, Gina!


Ela piscou e conseguiu erguer a mão numa saudação, embora não pudesse identificar o motorista, que seguiu seu caminho.


Vivia o presente, pensou, tentando concentrar-se de novo no redemoinho de folhas. Vivia o aqui. Não havia volta. Anos antes, convencera-se de só poder andar para a frente. Deliberadamente, respirou fundo, aliviada ao sentir a calma chegar. Hoje, não era dia para tristezas. Prometera uma festa a outra criança e pretendia organizá-la.


Não pôde deixar de sorrir ao subir os degraus da casa de Harry. Ele se mantivera ocupado, dava para perceber. Duas enormes lanternas de abóbora flanqueavam a entrada. Representando a Comédia e a Tragédia, uma apresentava um sorriso e a outra uma cara zangada. Ao longo do corrimão, um lençol branco fora arrumado de forma a parecer que o fantasma estava em pleno vôo Morcegos de papelão com olhos vermelhos pendurados nas calhas. Numa cadeira de balanço velha, ao lado da porta, um terrível monstro sentado, segurando uma cabeça risonha na mão. Na porta, uma bruxa, em tamanho natural, mexendo um caldeirão fervendo.


Ginevra bateu debaixo do nariz de verrugas da bruxa. Ela ria quando Harry abriu a porta.


- Doces ou travessuras? – disse.


Ele ficou sem fala. Por um momento, pensou estar imaginando coisas, só podia ser. A cigana da caixa de música estava parada à sua frente, ouro em abundância nas orelhas e pulsos. O cabelo encaracolado, preso numa echarpe safira esvoaçando quase até sua cintura. Mais ouro pendurado no pescoço e correntes grossas e enfeitadas acentuavam-lhe a figura esbelta. O vestido vermelho era justo, colado na parte superior, com a saia rodada, e trazia xales coloridos presos na cintura.


Os olhos enormes e escuros, misteriosos graças às artes femininas. Os lábios cheios e vermelhos abriram-se ao dar uma volta. Ele levou alguns segundos para ver tudo em detalhes, até a renda preta na barra. Parecia estar parado na porta há horas.


- Tenho uma bola de cristal. – disse a ele, pegando no bolso uma pequena e transparente esfera. – Se você colocar moedas de prata na minha mão, posso ler sua sorte.


- Meu Deus! – conseguiu dizer. – Você está linda!


Ela riu e entrou.


- Fantasias. A noite de hoje privilegia as fantasias. – Percorrendo o lugar com o olhar, colocou a bola de cristal de volta no bolso. Mas a imagem da cigana e o mistério permaneceram. – Onde está Lily?


A mão dele ficara imóvel na fechadura.


- Está... – Levou um tempo até o cérebro voltar a funcionar. – Está na casa de JoBeth. Quis aproveitar sua saída para arrumar tudo.


- Boa idéia. – Examinou o moletom cinza e os tênis empoeirados. – Esta é sua fantasia?


- Não. Eu estava pendurando teias de aranhas.


- Vou lhe dar uma ajuda. – Sorrindo, entregou-lhe as sacolas. – Eu tenho algumas travessuras e alguns doces. Qual você prefere primeiro?


- Você precisa perguntar? – disse baixinho, e, envolvendo-lhe a cintura com o braço, trouxe-a com força para si.


Ela jogou a cabeça para trás, expressões de raiva e de desacato nos olhos e na ponta da língua. Em seguida, a boca de Harry encontrou a sua. As sacolas escorregaram de suas mãos. Os dedos livres mergulharam nos cabelos dele.


Não era o que ela queria. Mas era do que precisava. Sem hesitação, os lábios se afastaram, convidativos. Ouviu o gemido baixo de prazer misturar-se ao seu. Parecia normal, absolutamente normal abraçá-lo assim, na porta da casa dele, em meio ao perfume das flores outonais, ao ar fresco e à cortante brisa.


Era perfeito. Ele podia sentir e provar o quanto era perfeito ter o corpo dela pressionado contra o seu, os lábios dela quentes e ágeis. Não era ilusão. Ela não era uma fantasia, apesar dos xales coloridos e do reluzente ouro. Ela era real, estava ali e lhe pertencia. Antes de a noite terminar, ele provaria isso a ambos.


- Ouço violinos. – murmurou Harry, percorrendo-lhe o pescoço com os lábios.


- Harry. – Ela só podia ouvir as batidas do coração ressoando em sua cabeça. Lutando por recobrar a sanidade, empurrou-o. – Você me obriga a fazer coisas que eu digo a mim mesma que não deveria. – Depois de recuperar o fôlego, deu-lhe um olhar sério. – Vim ajudá-lo a arrumar a festa de Lily.


- E eu fico grato. – Devagar, fechou a porta. – Pendure o jogo de colocar o nariz na abóbora. Eles estão no primeiro ano.


Ginevra tocou na aranha de borracha pendurada por um fio e a fez rodopiar.


- Não é muito assustadora. Uma vez, meus irmãos fizeram uma casa mal-assombrada. Taparam os meus olhos e os de Luna para nos levar até a casa. Ronald colocou minha mão numa bacia de uvas e me disse serem olhos.


- Isso é nojento. – decidiu Harry.


- Sim. – Ficou encantada ao recordar. – Depois, tinha outra bacia... De macarrão.


- Deixa pra lá! – interrompeu-a. – Já entendi.


Ela riu, ajeitando o brinco.


- De qualquer modo, me diverti muito, e sempre desejei ter tido a idéia primeiro. As crianças hoje ficariam muito desapontadas se não tivéssemos alguns monstros esperando por elas. Depois que tiverem se assustado, o que desejam do fundo do coração, aí você acende as luzes para verem que é tudo de mentirinha.


- Uma pena não termos uvas.


- Não faz mal. Quando Lily for mais velha, vou lhe ensinar como fazer mãos feridas cheias de sangue, feitas de luva de borracha.


- Mal posso esperar.


- E a comida?


- Vera foi ao supermercado. – Com a máscara no topo da cabeça, Harry deu um passo atrás a fim de analisar a sala. Parecia bom, realmente ótimo, ver os resultados e saber que ele e Ginevra tinham feito tudo juntos. – Ela fez tudo. Desde os ovos recheados até o ponche da bruxa. Você sabe o que seria fantástico? Uma máquina de gelo seco.


- Esse é o espírito da coisa. – O sorriso dele a fez rir e desejar beijá-lo. – No próximo ano.


Ele gostava de ouvir isso, percebeu. No próximo ano, e no seguinte. Um pouco tonto com a rapidez dos pensamentos, ele apenas a observou.


- Algo errado?


Harry sorriu.


- Não. Está tudo perfeito.


- Tenho os prêmios aqui. – Com as pernas doendo, Ginevra se sentou no braço da cadeira ao lado de um diabo espreguiçando-se. – Para os jogos e fantasias.


- Você não precisava.


- Eu disse que queria. Este é meu favorito. – Ela pegou um crânio, ligou-o e, ao colocá-lo no chão, ele saiu andando, sem o corpo, os olhos vazios piscando.


- Seu favorito? – Com uma careta, Harry o pegou e o deixou vibrando na mão.


- Sim. Aterrorizante. – Inclinou a cabeça. – Diga: "Ai de mim, pobre Yorick!"


Ele riu e desligou-o. Depois, colocou a máscara.


- "Oh, se esta carne, sólida, tão sólida se desfizesse." – Ele gargalhava ao se aproximar e pegá-la no colo. – Nos dê um beijo.


- Não. – decidiu depois de uma pausa. – Vocês são feios.


- OK. – Obediente, ele voltou a tirar a máscara. – E agora?


- Pior ainda. – Séria, cobriu-lhe o rosto com a máscara.


- Muito engraçado.


- Não, mas pareceu necessário. – Dando-lhe o braço, observou a sala. – Acho que você vai fazer o maior sucesso.


- Nós vamos fazer o maior sucesso. – corrigiu-a.


- Você sabe que Lily é louca por você.


- Sei. – Ginevra deu-lhe um sorriso sincero. – É mútuo.


Ouviram o barulho da porta da frente e um grito.


- Por falar em Lily...


 


As crianças foram chegando, a princípio em grupos pequenos, depois em bandos. Quando o relógio tocou as seis badaladas, a sala estava apinhada de bailarinas e piratas, monstros e super-heróis. A casa mal-assombrada provocou falta de ar, berros e estremecimentos. Ninguém foi bastante corajoso para percorrer sozinho a casa, embora muitos a percorressem duas, três vezes. Ocasionalmente, uma alma valente ganhava coragem suficiente para encostar o dedo na múmia ou tocar a capa do vampiro.


Quando acenderam as luzes, ouviram suspiros de desapontamento e outros, de alívio. Lily, fantasiada de boneca de pano, abriu, animada, os presentes atrasados.


- Você é um pai maravilhoso. – murmurou Ginevra.


- Obrigado. – Ele entrelaçou os dedos nos dela, sem se preocupar se era certo ficarem juntos e observarem a festa de sua filha. – Por quê?


- Porque você não precisou tomar nenhum comprimido para dor de cabeça e mal piscou quando Mikey derrubou ponche no seu tapete.


- Isso porque preciso poupar forças para enfrentar Vera quando ela descobrir. – Harry desviou a tempo de evitar uma colisão com uma princesa de conto de fadas perseguida por um duende. Berros ecoavam em cada canto da sala, pontuados pelas batidas e gemidos do disco. – Quanto à aspirina... por quanto tempo eles podem se manter em atividade?


- Ah, bem mais do que nós.


- Como você me consola!


- Vamos começar as brincadeiras agora. Você vai se surpreender ao ver como duas horas podem passar rápido.


Ela estava com a razão. Quando os vários narizes tinham sido presos na proximidade da cabeça da abóbora, quando as danças das cadeiras passaram a ser apenas uma doce lembrança, depois do desfile de fantasias e da premiação, quando a última maçã caramelada sumiu e o último jogo terminou, os pais começaram a chegar para buscar seus relutantes Frankensteins e duendes. Mas a diversão não terminara.


Em grupos, a criançada percorria as casas da vizinhança gritando "doces ou travessuras" para receber balas e maçãs carameladas. A ventania da noite e o crepitar das folhas eram coisas de que se lembrariam bem depois do último chocolate consumido.


Já se aproximava das 22h quando Harry conseguiu colocar uma exausta e excitada Lily na cama.


- Foi o melhor aniversário da minha vida. – disse ao pai. – Ainda bem que peguei catapora.


Harry esfregou o dedo na sarda cor-de-abóbora que o sabonete não conseguira limpar.


- Não sei se chega a tanto, mas estou feliz por você ter se divertido.


- Posso comer...? – Deu-lhe um beijo no nariz.


- Não. Se comer mais um pedaço de doce, você vai explodir.


Ela gargalhou e, como estava cansada demais para tentar qualquer artimanha, aninhou-se no travesseiro. As memórias giravam em sua cabeça.


- No ano que vem, quero me vestir de cigana como Gina, está bem?


- Claro. Agora, vai dormir. Vou levar Gina em casa, mas Vera está aqui.


- Você vai se casar logo com Gina, para ela ficar com a gente?


Harry ficou boquiaberto. Lily bocejou.


- De onde você tira essas idéias? – murmurou.


- Quanto tempo demora até eu ganhar uma irmãzinha? – perguntou, mergulhando no sono.


Harry afagou-lhe o rosto, agradecido por ela ter, enfim, dormido e ele não precisar responder.


No andar de baixo, encontrou Ginevra limpando a bagunça. Ela puxou os cabelos para trás, quando ele entrou.


- Quando você vê uma zona dessas, sabe que a festa foi um sucesso. – Algo na expressão do rosto dele a fez apertar os olhos. – Algo errado?


- Não. Não. É Lily.


- Ela está com dor de barriga? – disse, na mesma hora sentindo pena da criança.


- Ainda não. – Ele sacudiu os ombros com um meio sorriso. – Ela sempre consegue me surpreender. Não. – disse, e pegou o saco de lixo de sua mão. – Você já trabalhou demais.


- Não me importo.


- Eu sei.


Antes que ele pudesse segurar-lhe a mão, ela cruzou-as.


- Está na hora de ir. Amanhã é sábado, nosso dia mais movimentado.


Ele se questionou como seria se pudessem simplesmente subir as escadas e ir para o quarto dele. Para a cama dele.


- Vou levá-la em casa.


- Não precisa.


- Eu gostaria. – A tensão retornara. Entreolharam-se e ele compreendeu que ela sentia o mesmo. – Está cansada?


- Não. – Era chegada a hora de dizer algumas verdades. Ele tinha feito o que ela pedira e fora apenas o pai de Lily durante a festa. Agora, a festa terminara. Mas não a noite.


- Gostaria de dar uma caminhada?


Os cantos de sua boca levantaram-se e ela colocou a mão na dele.


- Sim, gostaria.


Esfriara; o vento anunciava a proximidade do inverno. No céu, a lua cheia e branca cintilava. Nuvens sobrevoavam o céu, formando sombras. Ouvia o eco de gritos risadas da garotada remanescente abafando o som do crepitar das folhas. Inevitavelmente, o grande carvalho da esquina estava coberto de papel higiênico, obra dos adolescentes.


- Adoro esta época. – murmurou Ginevra. – Principalmente à noite, quando tem uma suave brisa. Você pode sentir o cheiro da fumaça das chaminés.


Na rua principal, crianças maiores e adolescentes ainda perambulavam usando máscaras assustadoras, os rostos pintados. Uma pobre imitação de um urro de lobo ressoou, seguido por um berro feminino e risadas. Um carro cheio de diabos parou tempo suficiente para se debruçarem nas janelas e berrarem.


Harry viu o carro virar a esquina, os passageiros ainda uivando.


- Não posso me lembrar de ter estado em nenhum outro lugar onde o Halloween fosse levado tão a sério.


- Espere até ver o que acontece no Natal.


A abóbora de Ginevra brilhava na entrada do prédio, ao lado de uma tigela quase cheia de doces. Havia uma placa na porta: "Pegue apenas um. Ou então..."


Harry balançou a cabeça.


- Isso funciona?


Ginevra apenas olhou a placa.


- Eles me conhecem.


Inclinando-se, Harry pegou um.


- Posso tomar um brandy com o doce?


Ela hesitou. Se o deixasse entrar, seria inevitável recomeçar de onde o beijo parara. Fazia dois meses; dois meses de encantamento, de adiamento, de pretextos. Ambos sabiam que isso teria de acabar, cedo ou tarde.


- Claro. – Ela abriu a porta e o convidou a entrar. Foi direto para a cozinha servir os drinques. Era sim ou não, disse a si mesma. Sabia a resposta bem antes desta noite, estava preparada. Mas como ele agiria? Como ela agiria? E como, após viverem tantas coisas juntos, poderia conseguir fingir não querer mais?


Não podia querer mais, avisou a si mesma. Não importavam os sentimentos que nutrisse por ele, mesmo que fossem profundos, muito mais do que ousava admitir. A vida precisava continuar como era. Sem promessas, sem obrigações. Sem corações partidos.


Ele voltou-se quando ela retornou à sala, mas nada disse, assaltado por pensamentos confusos, embaralhados. O que ele queria? Ela, com certeza. Mas quanto poderia aceitar? Muito ou pouco? Estava certo de que nunca mais se sentiria desse jeito. Mais do que certo de nunca mais querer se sentir assim. Apesar disso, parecia muito natural toda vez que a olhava.


- Obrigado. – Ele pegou o copo, fitando-a enquanto bebia. – Você sabe, a primeira vez que dei uma palestra, fiquei parado no tablado, minha mente vazia. Por um terrível instante, não conseguia me lembrar nada do que planejara dizer. Estou enfrentando exatamente o mesmo problema agora.


- Você não precisa dizer nada.


- Não é tão fácil quanto imaginei. – Ele pegou-lhe a mão, surpreso por encontrá-la fria e trêmula. Instintivamente, levantou-a para colocar os lábios na palma da mão. Ajudou saber que ela estava tão nervosa quanto ele. - Não quero assustá-la.


- Isso me assusta. – Ela podia sentir a sensação perpassá-la. – Às vezes, as pessoas dizem que eu penso demais. Talvez seja verdade. Se for, é porque eu sinto tudo com muita intensidade. Houve uma época... – Ela retirou as mãos, querendo ser forte. – Houve uma época – repetiu – em que deixei os sentimentos decidirem por mim. Alguns erros nós pagamos até a morte.


- Isto não é um erro. – Ele descansou o copo para tomar-lhe o rosto entre as mãos.


Os dedos dela enroscaram-se em seus punhos.


- Eu não quero que seja. Não pode haver promessas, Harry, porque prefiro não ouvi-las a vê-las quebradas. Não preciso de palavras bonitas, não as quero. Elas são ditas com muita facilidade. – O aperto de suas mãos estreitou-se. – Quero ser sua amante, mas preciso de respeito, não de poesia.


- Já terminou?


- Preciso que compreenda. – insistiu.


- Começo a entender. Você deve tê-lo amado um bocado.


Ela deixou as mãos caírem, mas se controlou antes de responder.


- Sim.


Doeu, o que o surpreendeu. Ele não podia se sentir ameaçado por alguém pertencente ao passado. Ele também tinha um passado. Mas se sentia ameaçado e se sentia ferido.


- Não me importa quem ele era e não dou a mínima para o que aconteceu. – Era uma mentira, percebeu, uma mentira com a qual teria de lidar, cedo ou tarde. – Mas não quero que pense nele quando está comigo.


- Eu não penso, não do jeito como você imagina.


- De jeito nenhum.


Ela levantou a sobrancelha.


- Você não pode controlar meus pensamentos, não pode me controlar.


- Você está enganada. – Inflamado por um ciúme incontrolável, puxou-a para seus braços. O beijo era zangado, exigente, possessivo. E tentador. Sentiu-se tão tentada a se submeter que lutou para se desvencilhar.


- Você não vai me dominar. – A voz era desafiadora por ter medo de estar enganada.


- Devo me submeter às suas regras, Ginevra?


- Sim. Se forem justas.


- Para quem?


- Para nós dois. – Ela pressionou os dedos nas têmporas por um momento. – Não devíamos ficar zangados. – disse, mais baixo. – Desculpe. – Ela contraiu os ombros e deu um sorriso brando. – Tenho medo. Faz muito tempo que não tenho ninguém, que não quero ter.


Ele pegou o brandy, olhando a bebida enquanto sacudia o copo.


- Eu não consigo ficar zangado com você.


- Gostaria de pensar em nós dois como amigos. Nunca fui amiga de um amante.


E ele nunca se apaixonara por uma amiga. Era uma imensa e assustadora constatação – que estava seguro de não poder expressar em voz alta. Talvez, se parasse de se comportar de modo tão deselegante, pudesse mostrar-lhe.


- Somos amigos. – Estendeu a mão e enroscou os dedos nos dela. – Amigos confiam um no outro, Ginevra.


- Sim.


Ele mirou as mãos unidas.


- Por que não...?


Um barulho na janela o interrompeu. Antes que ele se movesse, Ginevra apertou-lhe a mão. Só levou um momento para perceber que ela não estava assustada, mas alegre. Ela levou um dedo de sua mão livre aos lábios.


- Acho que é uma boa idéia ser amiga de meu professor. – disse, levantando a voz e fazendo um gesto para que Harry continuasse a falar.


- Eu, é, estou feliz por Lily e eu termos encontrado tantas pessoas legais desde que nos mudamos. – Intrigado, viu Ginevra mexer numa gaveta.


- É uma cidade encantadora. É claro, às vezes enfrentamos problemas. Você não ouviu falar da mulher que escapou do hospício?


- Que hospício? – Diante do olhar impaciente, ele se recobrou. – Não, acho que não.


- A polícia está mantendo a fuga em segredo. Sabem que ela está na área e não querem que as pessoas entrem em pânico. – Ginevra experimentou a lanterna que pegara e acenou em aprovação ao constatar que as baterias funcionavam. – Ela é louca, você sabe, e gosta de seqüestrar crianças pequenas. Principalmente meninos. Depois, ela os tortura de uma maneira odiosa. Em noites de lua cheia, ela os ataca, silenciosa, diabólicamente. Depois, antes que eles possam gritar, ela os agarra pelo pescoço.


Assim dizendo, ela abriu a cortina de supetão. Com a lanterna acesa debaixo do queixo, pressionou o rosto contra o vidro e riu.


Gritos ecoaram. Depois, o barulho de uma queda, um berro e passadas desnorteadas.


Rolando de rir, Ginevra recostou-se no parapeito da janela.


- Os meninos Freedmont. – explicou quando recuperou o fôlego. – No ano passado, eles penduraram um rato morto na porta de Lilá. – Ela pressionou a mão no coração quando Harry aproximou-se para espiar pela janela. Tudo o que pôde ver foi duas sombras correndo pela rua.


- Acho que você virou o jogo.


- Ah, você devia ter visto a cara deles! – Ela enxugou uma lágrima dos cílios. – Acho que os corações só vão voltar a bater quando cobrirem as cabeças com as cobertas.


- Esse vai ser um Halloween inesquecível.


- Toda criança devia se lembrar de um bom susto sempre. – Ainda sorrindo, voltou a colocar a lanterna debaixo do queixo. – O que você acha?


- Já é tarde para me assustar. – Ele pegou a lanterna e a pôs de lado. Fechando a mão sobre a dela, ele a levantou. – Chegou a hora de descobrir o quanto há de ilusão e o quanto há de realidade. – Devagar, ele fechou as cortinas.


 


 


 
galera, desculpe a demora em postar, por isso estou colocando dois capitulos de uma vez. beijos.

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