Capítulo 02



Capítulo 02


 


- Não estou com medo.


- Claro que não. – Harry olhou o reflexo corajoso da filha no espelho enquanto ele, cuidadosamente, penteava-lhe o cabelo. Não precisava ouvir a voz trêmula para concluir que ela estava apavorada. Ele próprio carregava uma enorme pedra entalada na boca do estômago.


- Algumas crianças choram. – Os olhos grandes da menina já estavam úmidos. – Mas eu não.


- Você vai se divertir. – Mas nem ele nem a nervosa filha estavam tão certos disso. O problema em ser pai, pensou, é que você precisa parecer seguro a respeito de tudo. – O primeiro dia na escola é sempre um pouco assustador, mas, assim que chegar lá e encontrar todo mundo, você vai se divertir.


Ela o encarou com olhos firmes e arregalados.


- De verdade?


- Você gostava do jardim-de-infância, não gostava?


Era evasivo, admitiu a si mesmo, mas não podia fazer promessas que não seria capaz de cumprir.


- Quase sempre. – Ela abaixou os olhos, mexendo na escova em formato de cavalo-marinho na penteadeira – Mas Amy e Pam não vão estar lá.


- Você vai fazer novos amigos. Você já conheceu JoBeth. – Ele pensou na fadinha morena que os visitara com a mãe, uns dias antes.


- Eu sei. JoBeth é boazinha, mas... – Como poderia explicar que JoBeth já conhecia todas as outras garotas? – Quem sabe é melhor esperar até amanhã?


Os olhos voltaram a se encontrar no espelho. Ele manteve o queixo apoiado no ombro da menina. Ela cheirava ao sabonete verde-claro, que adorava por ter o formato de dinossauro. O rosto era muito parecido com o seu, apenas mais suave, mais fino e, em sua opinião, infinitamente mais bonito.


- Você pode esperar, mas aí amanhã seria seu primeiro dia na escola e você ainda teria borboletas.


- Borboletas?


- Bem aqui. – Ele acariciou-lhe a barriga. – Você não tem a impressão de que tem borboletas dançando aí dentro?


Ela riu.


- Parece.


- Eu também tenho.


- Sério? – Os olhos dela se arregalaram.


- Sério. Eu também tenho que ir hoje de manhã para a escola, igualzinho a você.


Ela brincou com as fitas cor-de-rosa que ele amarrara em sua maria-chiquinha. Sabia que as dele não eram iguais, mas não falou nada, com medo que ele ficasse com aquele olhar preocupado. Lily o ouvira conversar uma vez com tia Mione e lembrou-se de como ele ficara impaciente quando ela reclamara que ele estava prejudicando a sobrinha dela tirando-a de seu ambiente nos anos de formação.


Lily não tinha certeza absoluta do que eram "anos de formação", mas sabia que o pai ficara zangado e que, mesmo depois de tia Mione ter ido embora, ele ainda estava com aquele olhar preocupado. Ela não queria deixá-lo preocupado ou fazê-lo pensar que tia Mione tinha razão. Se voltassem para Nova York, só poderia andar de balanço no parque.


Além disso, gostava da casa grande e de seu novo quarto. Melhor ainda, o novo emprego do pai era tão perto que ele podia chegar em casa cedo, bem antes do jantar. Esforçando-se para não fazer beicinho, Lily decidiu que, por desejar continuar ali, precisava ir à escola.


- Você vai estar em casa quando eu voltar?


- Acho que sim. Mas, se não estiver, Vera vai estar. – disse, pensando na empregada doméstica que os acompanhava há tempos. – Você pode me contar tudo o que aconteceu. – Depois de beijar-lhe o topo da cabeça, colocou-a de pé. Ela parecia tão pequenina em seu macaquinho rosa e branco! Os olhos cinza, solenes, o lábio superior trêmulo. Ele lutou contra a vontade de pegá-la no colo e prometer que nunca, jamais, teria de ir à escola ou a qualquer lugar que a assustasse. – Vamos ver o que Vera preparou para você levar na merendeira nova.


Vinte minutos depois, ele esperava na calçada, segurando a mão de Lily. Quase tão apavorado quanto a filha, viu o grande ônibus amarelo da escola aparecer no topo da colina.


Ele deveria levá-la de carro para a escola, pensou em pânico – pelo menos, nos primeiros dias. Deveria levá-la, em vez de despachá-la naquele ônibus com estranhos. No entanto, julgara mais acertado fazer com que o acontecimento parecesse normal, para que ela se entrosasse com o grupo e se tornasse um deles logo de início.


Como poderia deixá-la ir? Era apenas um bebê. Seu bebê. E se ele estivesse enganado? Não era uma questão de escolher a cor errada de vestido para ela. Simplesmente porque hoje era o dia e a hora marcados, ele diria à filha para entrar naquele ônibus e depois se afastaria.


E se o motorista fosse descuidado e descesse colina abaixo? Como poderia ter certeza de que mandariam Lily de volta para casa no ônibus certo no final da tarde?


O ônibus parou e os dedos apertaram, instintivamente, os da menina. Quando a porta foi aberta, ele estava prestes a escapulir.


- Ei, você! – A motorista, uma mulher grandalhona com um expansivo sorriso, fez sinal para ele. Atrás dela, crianças gritavam e pulavam nos assentos. – O senhor deve ser o professor Potter.


- Sim. – Ele tinha as desculpas para não deixar Lily entrar no ônibus na ponta da língua.


- Sou Dorothy Mansfield. As crianças me chamam de Srta. D. E você deve ser Lílian.


- Sim, senhora. – Ela mordeu o lábio superior para evitar esconder o rosto na lateral do corpo do pai. – Sou Lily.


- Muito bem. – A Srta. D. deu outro grande sorriso. – Estou feliz em saber. Lílian é um nome muito comprido. Bem, suba a bordo, Lily. Este é um grande dia. John Harman, devolva o livro para Mikey ou então vai ficar sentado atrás de mim no banco quente o resto da semana.


Com olhos irrequietos, Lily colocou um pé no primeiro degrau. Engolindo em seco, subiu o segundo.


- Por que você não se senta ali com JoBeth e Lisa? – sugeriu a Srta. D., gentilmente. Virou-se para Harry piscando o olho e acenou. – Não se preocupe, professor, vamos cuidar bem dela.


A porta fechou-se com um golpe de ar e o ônibus seguiu em frente. Não restou outra opção a Harry a não ser ficar parado na calçada e ver o ônibus levar sua filhinha.


 


Ele não ficou exatamente ocioso. O tempo de Harry foi consumido praticamente desde o momento em que entrara na universidade. Tinha a própria carga horária para analisar, colegas para encontrar, instrumentos e pautas musicais para preparar. Compareceu a uma reunião do pessoal da faculdade, almoçou às pressas no refeitório e concentrou-se nos papéis, dúzias de papéis para ler e digerir. Era uma rotina comum, que começara três anos atrás quando aceitara um cargo na Juilliard School. Mas, como Lily, ele era a criança nova na cidade, e cabia a ele se adaptar.


Preocupava-se com ela. Na hora do almoço, imaginou-a sentada no refeitório da escola, uma sala cheirando a manteiga de amendoim e a leite de caixa. Ela estaria encolhida no final de uma mesa coberta de migalhas de pão, sozinha, infeliz, enquanto as outras crianças riam e brincavam com as amigas. Podia vê-la no recreio, isolada, olhando com olhar pidão, enquanto os outros corriam, gritavam e subiam como aranhas nos brinquedos. O trauma a deixaria insegura e infeliz pelo resto da vida.


Tudo porque ele a colocara naquele maldito ônibus amarelo.


No final do dia, sentia-se tão culpado quanto um molestador de crianças, certo de que a menininha voltaria para casa chorando, devastada pela crueldade do primeiro dia na escola. Mais de uma vez se questionou se afinal, Me não tinha razão. Talvez o ideal fosse ter deixado tudo do jeito que estava e continuado em Nova York, onde, pelo menos, Lily tinha amigos e família.


Com a pasta em uma das mãos e o paletó pendurado no ombro, voltou para casa. Ficava a menos de dois quilômetros de distância e o tempo continuava quente, o que não era normal naquela época do ano. Até a chegada do inverno, aproveitaria e iria a pé para o campus.


Ele já se apaixonara pela cidade. Bonitas lojas e imponentes casas antigas ao longo da rua principal, ladeada por árvores. Era uma cidade universitária, e disso se orgulhava, assim como se orgulhava de sua idade e dignidade. A rua subia e, aqui e ali, a calçada apresentava rachaduras provocadas pelas raízes das árvores. A não ser pelos carros passando, era calma o suficiente para se ouvir o latido de um cachorro ou a música de um rádio. Uma mulher cortando calêndulas no jardim levantou o olhar e o cumprimentou. Animado, Harry retribuiu o aceno.


Ela nem o conhecia, mas acenara, pensou. Esperava voltar a vê-la, quem sabe plantando sementes ou limpando a neve da varanda. Podia sentir o cheiro de crisântemos. Por alguma razão, até isso lhe deu uma injeção de ânimo.


Não, ele não cometera um erro, ele e Lily pertenciam a aquele lugar que, em menos de uma semana, se transformara no lar deles.


Parou na calçada para esperar um carro passar devagar. Ao olhar para o outro lado da rua, viu a placa da Fun House. Era perfeito, pensou. O nome perfeito. Evocava risadas e surpresas, assim como a vitrine com seus blocos de construção, bonecas de carinha gorda e reluzentes carros vermelhos representavam para as crianças um verdadeiro tesouro escondido. No momento, não podia imaginar nada que mais desejasse do que levar um sorriso ao rosto da filha.


Você a mima.


Podia ouvir a voz de Mione com clareza nos ouvidos.


E daí? Olhando rapidamente para um lado e para o outro da rua, atravessou para a calçada oposta. Sua menininha tinha ido à escola demonstrando tanta coragem quanto qualquer soldado marchando para a batalha. Não havia mal nenhum em comprar uma medalhinha.


Ouviu o som ao abrir a porta. Havia um perfume tão agradável quanto o som dos sinos. Menta, pensou sorrindo. Ficou encantado ao ouvir as notas da música The Merry-Go-Round Broke Down vindas do fundo da loja.


- Já estou indo.


Ele se esquecera, lembrou, de como aquela voz tinha o dom de cortar o ar.


Não ia voltar a fazer papel de tolo. Dessa vez, estava preparado para defrontar-se com sua aparência, o som de sua voz, seu sorriso. Viera comprar um presente para a filha, não flertar com a proprietária da loja. Sorriu para o rosto de um ursinho panda abandonado. Que soubesse, não havia nenhuma lei proibindo uma coisa ou outra.


- Aposto que Bonnie vai adorar. – disse Ginevra, carregando um mini-carrossel para a freguesa. – É um lindo presente de aniversário.


- Ela viu o carrossel há poucas semanas e não parou de falar nele. – A avó de Bonnie tentou não demonstrar espanto ao ver o preço. – Calculo que tenha idade suficiente para cuidar bem dele.


- Bonnie é uma menina muito responsável. – prosseguiu Ginevra. Vislumbrou Harry no balcão. – Já vou atendê-lo. – A temperatura de sua voz caiu uns 20 graus.


- Não se preocupe. – Irritou-se por reagir com tanta emoção à presença dela, enquanto ela brincava de cabo-de-guerra com ele, no campo adversário, é claro. Era óbvio que ela decidira não gostar dele. Podia ser interessante descobrir os motivos, pensou Harry, enquanto observava as mãos finas e ágeis embrulharem o carrossel.


E fazê-la mudar de idéia.


- São 55,27 dólares, Sra. Mortimer.


- Não, querida, na etiqueta está escrito 67 dólares. - Ginevra, ciente das limitações financeiras da Sra. Mortimer, apenas sorriu.


- Desculpe. Não lhe disse que estava em oferta?


- Não. – A Sra. Mortimer deixou escapar um suspiro de alívio enquanto contava o dinheiro. – Nossa, hoje deve ser meu dia de sorte!


- E o de Bonnie. – Ginevra enfeitou o presente com um bonito laço de fita rosa, a cor favorita de Bonnie. - Não se esqueça de lhe transmitir meus votos de feliz aniversário.


- Pode deixar. – A orgulhosa avó segurou o embrulho. – Mal posso esperar para ver o rostinho dela ao abrir o presente. Tchau, Ginevra.


Ginevra esperou a porta fechar.


- Posso ajudá-lo?


- Foi muito bonito o seu gesto.


Ela levantou a sobrancelha.


- Do que está falando?


- Você sabe do que estou falando. – Sentia uma absurda vontade de segurar-lhe a mão e beijá-la. Era incrível, pensou. Tinha quase 35 anos e tremia ao se defrontar com uma mulher que mal conhecia como se estivesse diante do primeiro amor. – Eu pretendia vir antes.


- É? Sua filha não ficou satisfeita com a boneca?


- Não, ela adorou. É que... – Meu bom Deus, ele quase perdeu a voz! Cinco minutos com ela e se sentia tão desajeitado quanto um adolescente dançando pela primeira vez. Controlou-se com esforço. – Achei que começamos com o pé esquerdo. Posso pedir desculpas?


- Se desejar... – Só porque ele parecia atraente e um pouco sem-graça não havia razão para facilitar as coisas. – Você veio só para isso?


- Não. – Os olhos toldaram-se ligeiramente. Percebendo, Ginevra achou que talvez houvesse se enganado em sua primeira impressão. Talvez ele não fosse nocivo, afinal. Havia algo profundo, forte, naqueles olhos, o que o tornava ainda mais perigoso. O que a surpreendeu ainda mais foi achar isso excitante.


Zangada consigo mesma, deu um sorriso educado.


- Alguma coisa mais?


- Queria um presente para minha filha. – Para o diabo com a magnífica princesa russa, pensou. Havia coisas mais importantes com que se preocupar.


- O que pretende comprar para ela?


- Não sei. – O que era a pura verdade. Colocando no balcão a pasta, passou os olhos pela loja.


Descontraindo um pouco, Ginevra deu a volta no balcão.


- É aniversário dela?


- Não. – Sentindo-se tolo, deu de ombros. – Foi seu primeiro dia de aula e ela pareceu muito valente ao entrar no ônibus de manhã.


Dessa vez, o sorriso de Ginevra foi espontâneo e bastante caloroso. O coração dele quase parou.


- Você não devia se preocupar. Quando ela chegar em casa, vai ter um monte de histórias para contar sobre tudo e todos. O primeiro dia é mais duro, eu acho, para os pais do que para as crianças.


- Foi o dia mais longo da minha vida.


Ela riu, um som profundo, rouco, estranhamente erótico num ambiente repleto de palhaços e ursos de pelúcia.


- Parece que vocês dois merecem um presente. Outro dia, você estava admirando uma caixa de música. Tenho outra que pode lhe agradar.


Assim dizendo, encaminhou-se para os fundos da loja. Harry fez o possível para ignorar o lento balanço dos quadris e o perfume suave, de banho recém-tomado. A caixa que ela escolheu era entalhada em madeira. No pedestal, um gato e um violino, uma vaca e uma lua crescente. Quando a música Stardust começou a tocar, ele viu um cachorro risonho e o prato com a colher.


- É encantadora.


- Uma de minhas favoritas. – Ela decidira que qualquer homem que adorasse a filha tão ardentemente não podia ser de todo mal. Então, voltou a sorriu. – Acho que seria um presente adorável. Algo que ela poderia tocar em seu primeiro dia na faculdade e lembrar-se de que o pai pensa nela.


- Se ele sobreviver ao ensino básico. – Moveu-se discretamente para fitá-la. – Obrigado. É perfeito.


Foi estranhíssimo, o corpo dele mal esbarrara no seu e ela sentiu um calafrio. Por um instante, esqueceu que ele era um cliente, um pai, um marido e pensou nele apenas como um homem. Os olhos dele eram da cor das esmeraldas. Os lábios, ao esboçarem um leve sorriso, eram incrivelmente atraentes, sedutores. Involuntariamente, imaginou como seria senti-los nos seus; admirar o rosto dele quando as bocas se encontrassem e se ver refletida naqueles olhos.


Atordoada, recuou e a voz tornou-se mais fria.


- Vou embrulhá-la para você.


Intrigado pela súbita mudança no tom de voz, ele a seguiu até o caixa. Ele não percebera algo naqueles olhos fabulosos? Ou estava apenas esperançoso? Tinha passado rapidamente, o calor amortecido pelo gelo. Sinceramente, não conseguia encontrar nenhuma razão para um ou outro.


- Ginevra. – Ele pousou a mão na sua quando ela começou a embrulhar a caixinha de música.


Ela ergueu os olhos lentamente. Já começava a se odiar por perceber que as mãos dele eram lindas, grandes, os dedos longos. Havia também uma nota de paciência na voz dele que lhe aumentava o nervosismo.


- Sim?


- Por que tenho a impressão de que você gostaria de me colocar para ferver num caldeirão?


- Você está enganado. – disse inflexível. – Não tenho essa intenção.


- Não soa convincente. – Ele sentiu a mão flexionar-se sob a sua, macia e forte. A imagem de um aço coberto de veludo parecia particularmente adequada. – Estou encontrando dificuldade em descobrir o que fiz para aborrecê-la.


- Então, vai precisar refletir a respeito. A vista ou no cartão de crédito?


Ele tinha pouca experiência com rejeição. Como um típico americano, branco, anglo-saxão e protestante, isso lhe feria o ego. Não importa quão linda ela fosse, não tinha vontade de continuar batendo a cabeça contra a mesma parede.


- A vista. – A porta abriu e ele soltou a mão dela. Três crianças, recém-saídas da escola, entraram rindo. Um menininho de cabelos ruivos e o rosto cheio de sardas ficou na ponta dos pés, na frente do balcão.


- Tenho 3 dólares. – anunciou. Ginevra tentou controlar o riso.


- Você está rico hoje, Sr. Jensen.


Ele lhe deu um sorriso, revelando a falta do último dente.


- Estava poupando. Quero o carro de corrida. - Ginevra levantou a sobrancelha enquanto contava o troco de Harry.


- Sua mãe sabe que veio aqui gastar toda a sua poupança? – O novo cliente permaneceu em silêncio. – Scott?


Ele se mostrou inquieto.


- Ela não disse que eu não podia.


- E não disse que podia. – supôs Ginevra. Ela curvou-se e ajeitou um cacho dos cabelos do menino. – Vai perguntar à sua mãe e depois volte. O carro de corrida vai esperar.


- Mas Gina...


- Você não vai querer que sua mãe fique zangada comigo, vai?


Scott pareceu pensativo por um momento. Ginevra sabia tê-lo colocado diante de uma escolha difícil.


- Acho que não.


- Então, vai perguntar a ela e eu guardo o carro para você.


A esperança brotou.


- Promete?


Ginevra colocou a mão no coração.


- Juro. – Olhou para Harry e a alegria desapareceu dos olhos dela. – Espero que Lily goste do presente.


- Aposto que vai gostar. – Ele saiu, irritado consigo mesmo por desejar ser um menino de 10 anos com um dente faltando.


 


Ginevra fechou a loja às 18h. O sol ainda brilhava, o ar ainda estava abafado, o que a fez sonhar com um piquenique debaixo de uma árvore frondosa. Uma fantasia mais atraente do que comida de microondas, refletiu, mas no momento impraticável.


Caminhando para casa, viu um casal entrando de mãos dadas num restaurante do outro lado da rua. Alguém a chamou de um carro e ela acenou em resposta. Podia ter parado no pub e passado uma hora tomando uma taça de vinho com algum conhecido. Encontrar companhia para jantar era tão simples quanto enfiar a cabeça em uma das portas e sugerir.


Não estava com espírito para ter companhia. Nem a própria.


Era o calor, disse a si mesma, ao virar a esquina, o calor que pesara sem piedade no ar durante o verão e não dava sinais de dar trégua no outono. O calor a deixava inquieta e trazia lembranças.


Sua vida mudara, irrevogavelmente, num verão.


Mesmo agora, anos depois, algumas vezes, ao ver as rosas desabrochadas ou ouvir o zumbido das abelhas, sentia dor. E pensava o que poderia ter acontecido. Como seria sua vida agora, se...? Detestava a si mesma pelos sonhos impossíveis.


Havia rosas agora, frágeis rosas cor-de-rosa, ainda sobreviventes, apesar do calor e da ausência de chuva. Ela mesma as plantara no pequeno canteiro externo do apartamento. Cuidar delas trazia prazer e dor. E o que era a vida, perguntou-se, enquanto passava a ponta do dedo numa pétala, sem os dois? O perfume forte das rosas a seguia durante o percurso.


Seus aposentos estavam em silêncio. Pensara em comprar um gatinho ou um cachorro, para que alguém a recebesse à noite, alguém que a amasse e dependesse dela. Mas depois percebeu como seria injusto deixá-lo sozinho o dia todo.


Então, ligou o aparelho de som enquanto tirava os sapatos. Mesmo isso era um teste. Romeu e Julieta, de Tchaikovsky. Podia se ver dançando aquela melodia provocante, romântica, as luzes a rodeá-la, as notas batendo como seu sangue, os movimentos fluidos e controlados, sem precisar olhar. Uma pirueta tripla, revelando graça sem esforço.


Isso pertencia ao passado, lembrou-se. Arrependimento era para os fracos.


Mudou de roupa, colocando um macacão largo e sem mangas, pendurando a saia e a blusa de trabalho organizadamente, como aprendera. Novamente o hábito, mais do que a necessidade, a fez examinar a saia de algodão.


Tinha chá gelado na geladeira e uma daquelas comidas congeladas da qual tanto dependia e que tanto detestava. Riu para si mesma apertando o botão para aquecê-la no microondas.


Estava parecendo uma velha irritadiça e resmungona devido ao calor, concluiu Ginevra. Suspirando, esfregou o copo gelado na testa.


O homem a deixara afogueada, pensou. Por alguns momentos naquele dia na loja, ela começara a gostar dele de verdade. Ele tinha se mostrado tão doce e preocupado com a filhinha, querendo recompensá-la por ter agido com coragem suficiente para encarar o primeiro dia na escola! Gostara do tom de sua voz, do jeito como os olhos sorriram. Naqueles poucos momentos, ele parecia alguém com quem ela poderia rir e conversar.


Depois, tudo mudara. Em parte, fora sua culpa, admitiu. Mas isso não lhe diminuía a culpa. Ela sentira algo que não sentia e decidira não sentir há muito, muito tempo. O frisson da excitação. A pontada de desejo. As sensações a deixavam zangada e envergonhada. E furiosa com ele.


Que audácia! Refletiu, enquanto tirava o prato do microondas. Flertando com ela como se ela fosse uma tola, ingênua, antes de voltar para casa ao encontro da mulher e da filha.


Jantar com ele... Até parece! Enrolou o macarrão com frutos do mar fervendo no garfo. Aquele tipo de homem esperava que ela retribuísse o jantar pago sendo a sobremesa. O tipo luz de velas e vinho, pensou com desdém. Voz suave, olhos pacientes, mãos inteligentes. E sem coração.


Exatamente como Miguel. Impaciente, colocou o prato de lado e pegou o copo já pingando de suor. Mas era mais esperta do que aos 18 anos. Muito mais esperta. Muito mais forte. Deixara de ser uma mulher passível de ser enfeitiçada por charme e palavras doces. Não que aquele homem fosse doce, lembrou-se com um sorriso rápido. Ele, céus, ela nem sabia seu nome e já o detestava, era um pouco desajeitado, um pouco estranho. E nisso residia seu charme.


Mas ele era, refletiu, muito parecido com Miguel. Alto e moreno com aquela – ai meu Deus! – beleza tão americana. Beleza que ocultava a falta de moral e um coração enganador.


O que Miguel lhe custara nunca poderia ser recompensado. Desde aquela época, Ginevra deixara claro, bem claro, que homem algum jamais lhe custaria tão caro de novo.


Mas ela sobrevivera. Levantou a taça num brinde. Não somente sobrevivera, mas à exceção das ocasiões em que as lembranças a invadiam, era feliz. Amava a loja e a oportunidade que lhe oferecia de estar cercada de crianças e fazê-las felizes. Durante os três anos na cidade, as vira crescer. Tinha uma maravilhosa e engraçada amiga em Lilá, conta bancária no azul e uma casa agradável.


Ouviu uma pancada no teto e sorriu. Os Jorgenson estavam se preparando para o jantar. Ela imaginou Don paparicando Marilyn, grávida do primeiro filho. Ginevra gostava da presença deles ali, bem no andar de cima, felizes, apaixonados e cheios de esperança.


Para ela, isso era família, assim como aquela com a qual convivera na juventude e com a qual sonhara na idade adulta. Ainda podia ver o pai aflito quando chegava a hora do parto. Todas as vezes, lembrou-se Ginevra, pensando nos três irmãos mais moços. Recordava-se de como ele chorava de felicidade ao receber a notícia de que a mulher e os bebês estavam bem. Ele adorava sua Molly. Ginevra sabia que, até hoje, ele ainda levava flores para a pequena casa no Brooklyn, ao voltar do trabalho e beijava a mulher – não com um ausente beijinho na bochecha, mas com empolgação e contentamento. Um homem louco de paixão depois de quase 30 anos de casamento.


Fora o pai quem a impedira de enterrar todos os homens na cova que Miguel cavara para ela. Ver o pai e a mãe juntos mantivera acesa aquela pequena e secreta esperança de que um dia encontraria alguém que a amaria tanto e com tanta sinceridade.


Um dia, pensou com um dar de ombros. Mas, por enquanto, tinha seu próprio negócio, sua própria casa e sua própria vida. Nenhum homem, não importa quão lindas fossem as mãos dele ou quão claros seus olhos, iria virar seu barco. Secretamente, esperou que a mulher de seu mais novo cliente lhe causasse bastante sofrimento.


 


- Mais uma história. Por favor, papai. – Lily, com os olhos pesados de sono, o rosto reluzente depois do banho, fazia uso de seu mais persuasivo sorriso. Estava recostada em Harry em sua grande cama branca de dossel.


- Você já está com sono.


- Não, não estou. – Ela deu-lhe uma olhada, lutando por manter os olhos abertos. Fora o melhor dia de sua vida e não queria que terminasse. – Eu contei que a gata de JoBeth teve filhotes? Seis filhotes.


- Duas vezes. – Harry deu um peteleco em seu nariz. Para bom entendedor, meia palavra bastava, e ele acabou se comportando como todos os pais. – Vamos ver...


Sonolenta, Lily sorriu. Sabia pelo tom de voz dele que o pai já estava fraquejando.


- A Sra. Patterson é bem legal. Ela vai deixar a gente fazer jogos de palavras toda sexta.


- Você já disse. – E ele ficara preocupado... – Tenho a impressão de que você gostou da escola.


- É legal. – Lily bocejou. – Você preencheu os formulários?


- Vão estar prontinhos para você levá-los amanhã. – Todos os 500 formulários, pensou, com um suspiro. – Tempo de descarregar as baterias, bonequinha.


- Mais uma história. Daquelas inventadas. – Voltou a bocejar, o rosto recostado no algodão macio da camisa do pai, sentindo o cheiro familiar da loção pós-barba.


Ele acabou cedendo, sabendo que ela estaria dormindo bem antes de ele chegar ao "viveram felizes para sempre". Inventou uma história sobre uma princesa bonita de cabelos vermelhos de um país estrangeiro e o cavaleiro que tentou resgatá-la da torre de mármore.


Bobagem, pensou, enquanto acrescentava à história uma bruxa e um dragão de duas cabeças. Sabia que seus pensamentos voltavam-se novamente para Ginevra. Sem dúvida, ela era linda, mas ele julgava nunca ter encontrado uma mulher que tivesse menos necessidade de ser resgatada.


Era puro azar ter que passar pela loja dela todo dia quando ia e voltava do campus da universidade.


Ele iria ignorá-la. Na pior das hipóteses, deveria lhe ser grato. Ela o fizera desejar, sentir emoções que julgara para sempre enterradas. Talvez, agora que ele e Lily haviam se estabelecido, começasse a sair. A universidade estava cheia de mulheres solteiras e atraentes. Mas a idéia de namorar não o encheu de alegria.


Namorar, não; ter uma vida social, corrigiu-se. Namorar era para adolescentes e invocava visões de filmes no drive-in, pizza e palmas das mãos suadas. Ele era um homem adulto e, com certeza, era hora de voltar a ter companhia feminina. Acima dos 5 anos, pensou olhando para a mãozinha de Lily apoiada na palma de sua mão.


O que você pensaria, perguntou em silêncio, se eu trouxesse uma mulher para jantar aqui em casa? Voltou a lembrar-se de como os olhos da menina ficavam arregalados e magoados quando ele e Angela saíam de casa para ir ao teatro ou à ópera.


Não vai voltar a ser assim, prometeu enquanto a afastava do peito e colocava-lhe a cabeça no travesseiro. Ajeitou a sorridente boneca de pano ao lado dela e cobriu-as até o queixo. Repousando a mão no pé da cama, passou os olhos pelo quarto.


Já trazia a marca de Lily. As bonecas alinhadas nas prateleiras com livros embaralhados por baixo delas, a pantufa de elefante rosa ao lado de seu mais velho e favorito par de tênis. O quarto tinha aquele cheiro de menina, uma mistura de xampu e crayons. Um abajur em formato de unicórnio evitava que ela acordasse no escuro e ficasse amedrontada.


Harry permaneceu no quarto por mais um tempo, percebendo que se sentia tão aliviado quanto ela pela luz. Saiu bem devagar, deixando a porta entreaberta.


No andar de baixo, encontrou Vera carregando uma bandeja de café. A empregada mexicana era larga dos ombros aos quadris e dava a impressão de um trem de carga pequeno e compacto ao se mover de um aposento ao outro. Desde o nascimento de Lily, provara ser não apenas eficiente, mas indispensável. Harry sabia ser possível, com freqüência, garantir a lealdade de um empregado com um belo pagamento, mas não seu amor. Desde o instante em que Lily chegara em casa, enrolada na manta com tiras de cetim, Vera amara a pequenina.


Ela levantou o olhar para as escadas e o rosto marcado abriu-se num sorriso.


- Ela teve um dia e tanto, hein?


- Se teve... E lutou até o último suspiro para que não terminasse. Vera, não precisava se incomodar.


Ela deu de ombros enquanto carregava a bandeja para o escritório.


- O senhor disse que teria de trabalhar à noite.


- Sim, só um pouquinho.


- Então, preparei o café antes de ir para o quarto, botar os pés para cima e ver tevê. – Ela arrumou a bandeja na escrivaninha, enquanto falava. – Meu bebê está contente com a escola e com as novas amigas. – Ela não contou que enxugara as lágrimas no avental quando Lily entrara no ônibus. – Com a casa vazia o dia inteiro, tenho bastante tempo para cuidar de minhas obrigações. Não fique acordado até tarde, Dr. Potter.


- Não vou ficar. – Era uma mentira gentil. Sabia que estava muito agitado para dormir. – Obrigado, Vera.


- De nada! – Ela ajeitou o cabelo grisalho escuro. – Queria dizer ao senhor que gosto muito deste lugar. Tive medo de deixar Nova York, mas agora estou feliz.


- Não conseguiríamos nos virar sem você.


- Sí. – Ela achava estar apenas cumprindo sua obrigação. Por sete anos, trabalhava para o señor, e orgulhava-se de trabalhar para um homem importante, um respeitado compositor, doutor em música e professor universitário. Desde o nascimento da filha dele, amava tanto seu bebê que trabalharia para Harry não importa onde ele morasse.


Lamentava ter de se mudar do lindo apartamento num arranha-céu de Nova York para uma ampla casa numa cidade pequena, mas Vera era perspicaz o suficiente para saber que o señor pensava em Lily. A menina chegara da escola horas atrás, rindo, excitada, com os nomes das novas melhores amigas na ponta da língua. Então, Vera estava contente.


- O senhor é um bom pai, dr. Potter.


Harry a fitou, antes de sentar-se à escrivaninha. Tinha plena consciência de que houve um tempo em que Vera o considerara um péssimo pai.


- Estou aprendendo.


- Sí. – Despreocupadamente, ajeitou um livro na estante. – Nesta casa grande, o senhor não vai precisar se preocupar em perturbar o sono de Lily, se tocar piano à noite.


Ele voltou a erguer o olhar, sabendo que, a seu modo, ela o estava encorajando a concentrar-se em sua música.


- Não, não a perturbaria. Boa noite, Vera.


Depois de passar os olhos pela sala e se certificar de que não havia mais nada para arrumar, ela o deixou.


Sozinho, Harry serviu o café e observou os papéis na escrivaninha. Os formulários da escola de Lily estavam empilhados ao lado de seu trabalho. Tinha um bocado de material para preparar, antes de as aulas começarem na semana seguinte.


Ansiava pelo início das aulas, tentando não lamentar o fato de que a música que, no passado, surgia sem o menor esforço em sua cabeça continuasse silenciosa.


 


 


 


 


Agradecimentos especiais:


 


gilmara: Ela é irma sim, a Gina vai dar a maior furada.. Abraços.


 


 


 


 

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