Capitulo 05



Capítulo 05


 


- Ginevra! Ei, Ginevra!


Tirada dos pensamentos, não exatamente produtivos, Ginevra levantou o olhar e fitou Terry. Ele usava um cachecol comprido, listrado de amarelo e branco, a fim de se proteger da súbita queda de temperatura que espalhara gelo pelo solo. Correndo ao seu encontro, o cachecol esvoaçava de um jeito esquisito às suas costas. Quando a alcançou, os óculos tinham escorregado, tortos, até a ponta de seu nariz vermelho.


- Oi, Terry.


A corrida de 90 metros o deixara exausto. Ele só esperava que não agravasse sua asma.


- Oi. Eu vi você chegando. – Ele a esperara por 20 minutos.


Num gesto maternal ao ver o filho desengonçado, ajeitou-lhe os óculos e protegeu-lhe o pescoço fino com o cachecol. A respiração ofegante do rapaz embaçava as lentes dos óculos.


- Você devia usar luvas. – Depois, batendo na mão gelada, conduziu-o escadas acima.


Em êxtase, ele tentou falar, só conseguindo emitir um ruído estranho.


- Você está ficando resfriado? – Procurando na bolsa, encontrou um lenço de papel e o ofereceu.


Ele limpou a garganta com barulho.


- Não. – Mas pegou o lenço de papel e jurou mantê-lo até o dia de sua morte. – Só estava pensando se hoje, depois da aula, você sabe, se não tiver nada... Provavelmente já tem planos, mas, se não tiver, talvez pudéssemos tomar uma xícara de café. Duas xícaras. – emendou nervoso. – Quero dizer, eu poderia lhe oferecer uma xícara e tomar outra. – Assim dizendo, o rosto atingiu uma tonalidade esverdeada.


O pobre menino estava solitário, pensou Ginevra, dando-lhe um sorriso despretensioso.


- Claro. – Podia lhe fazer companhia por mais ou menos uma hora, decidiu entrando na sala de aula. Isso a ajudaria a manter a mente afastada do...


Do homem parado em frente aos alunos, refletiu aborrecida. Do homem que a beijara deixando-a sem fôlego duas semanas atrás e que, no momento, ria para uma lourinha ousada que não devia ter um dia a mais de 20 anos.


De mau humor, sentou-se na cadeira e enfiou o nariz no livro.


Harry sentiu sua entrada na sala. Estava mais do que gratificado por ter percebido o ciúme em seu rosto antes de cobri-lo com um livro. Aparentemente, o destino havia cooperado mantendo-o ocupado até dizer chega com problemas pessoais e profissionais durante as últimas duas semanas: um vazamento na casa, reuniões de pais, encontros de escoteiros e um debate na faculdade. Não tivera uma hora livre. Mas agora as coisas voltavam a seu estado normal. Observou o topo da cabeça de Ginevra. Ele pretendia recuperar o tempo perdido.


Sentando na beirada da mesa, abriu uma discussão sobre as diferenças entre a música sagrada e a secular durante o período barroco.


Ginevr não queria se interessar. Tinha certeza de que ele percebera. Caso contrário, por que lhe pedira, de propósito, a opinião... duas vezes?


Ah, ele era inteligente, pensou. Nem uma centelha no olhar, uma mínima entonação na voz, revelavam um relacionamento mais íntimo com ela. Ninguém na classe poderia suspeitar que aquele palestrante seguro, até mesmo brilhante, beijara-a sem motivo aparente, não uma nem duas vezes, mas três. Agora discursava calmamente sobre o desenvolvimento lírico no início do século XVII.


Em sua camisa de gola rolê preta e um paletó de tweed cinza, passava a impressão de elegância e absoluto controle. E, é claro, como sempre, tinha a classe na palma daquela mão linda que usava com intensidade para reforçar uma idéia. Quando sorria de um comentário de um estudante, ouviu a lourinha duas fileiras atrás dela. Porque ela própria quase sorrira, Ginevra retesou-se na cadeira.


Ele, provavelmente, tinha uma fila de mulheres loucas por ele. Um homem com aquela aparência, com aquela conversa, com aquele beijo, bem que merecia. Era do tipo que fazia promessas a qualquer mulher à meia-noite e segurava outra nos braços no café-da-manhã na cama.


Sorte sua não acreditar mais em promessas.


Algo se passava naquela fabulosa cabeça de Ginevra, refletiu Harry. Num momento, ouvia-o como se ele tivesse as respostas para os mistérios do universo na ponta da língua. No seguinte, sentava ereta fitando o espaço, como se desejasse estar em outro lugar. Podia jurar que ela estava zangada e que a raiva tinha ele como alvo. Quanto ao motivo, esse era um assunto totalmente distinto.


Toda vez que tentara falar com ela depois da aula, ao longo das últimas duas semanas, Ginevra saiu do prédio como uma bala. Naquele dia, ele teria que descobrir uma tática para segurá-la.


Ela levantou-se tão logo a aula terminou. Harry viu-a sorrir para o rapaz sentado ao seu lado. Depois, ela abaixou-se para pegar os lápis e livros que o homem deixara cair ao se levantar.


Como era o nome dele? Tentou se lembrar. Maynard. Era isso. O Sr. Maynard assistia a várias de suas aulas e conseguia passar despercebido em meio aos demais em cada uma delas. Ainda assim, no momento, o discreto Sr. Maynard estava agachado, com os joelhos tocando os de Ginevra.


- Acho que conseguimos pegar tudo. – Ginevra amigavelmente empurrou os óculos de Terry para o topo do nariz.


- Obrigado.


- Não se esqueça do cachecol. – começou a dizer, para, em seguida, erguer o olhar. Sentiu a mão segurar-lhe o braço e ajudá-la a se levantar. – Obrigada, dr. Potter.


- Gostaria de falar com você, Ginevra.


- É mesmo? – Ela espiou a mão em seu braço, depois pegou o casaco e os livros. Sentindo-se como se estivesse novamente diante de um tabuleiro de xadrez, decidiu bloquear-lhe o movimento com agressividade. - Lamento. Será preciso esperar. Tenho um encontro.


- Um encontro? – conseguiu pronunciar, imediatamente imaginando alguém moreno, deslumbrante e musculoso.


- Sim. Com licença. – Desvencilhou-se da mão e enfiou o braço no casaco. Como os homens, um de cada lado dela, pareciam igualmente paralisados, ela mudou os livros de braço e tentou achar a outra manga. – Já está pronto, Terry?


- Bem, sim, claro. Sim. – Ele olhava Harry com um misto de temor e respeito. – Mas posso esperar se quiser falar primeiro com o dr. Potter.


- Não é preciso. – Ela deu-lhe o braço e o puxou para a porta.


Mulheres, pensou Harry sentado à mesa. Ele já aceitara o fato de que nunca as entendera. Aparentemente, nunca as entenderia.


- Caramba, Gina, não acha que devia ouvir o que o dr. Potter queria?


- Eu sei o que queria. – disse entre os dentes enquanto abria as portas principais. O ar outonal gelou-lhe o rosto. – Não estava com vontade de discutir o assunto hoje. – Quando Terry tropeçou na calçada irregular, ela se deu conta de que ainda o arrastava e diminuiu o passo. – Além disso, pensei que íamos tomar um café.


- Certo. – Quando ela sorriu para ele, Terry agarrou o cachecol como se evitasse se estrangular.


Caminharam até um lugar onde metade das pequenas mesas quadradas estava vazia. No bar antigo, dois homens resmungavam tomando cerveja. Um casal num canto, quase no colo um do outro, ignorava as bebidas.


Ela sempre gostou desse lugar, com suas luzes fracas e os antigos pôsteres em preto-e-branco de James Dean e Marilyn Monroe. Cheirava a cigarro e a vinho barato. Um grande aparelho de som portátil, na prateleira acima do bar, tocava uma música antiga de Chuck Berry, alto o bastante para caracterizar a ausência de fregueses. Ginevra sentiu o baixo vibrar na cadeira ao sentar-se.


- Só café, Joe. – disse ao homem atrás do balcão do bar antes de apoiar os cotovelos na mesa. – E então? Como vão as coisas? – perguntou a Terry.


- Bem. – Ele não podia acreditar. Estava ali, sentado com ela, num encontro. Ela mesma tinha chamado de encontro.


Seria preciso puxar assunto. Paciente, tirou o casaco. A sala superaquecida a fez puxar as mangas do blusão até acima dos cotovelos.


- Deve ser diferente para você aqui. Você já me disse que universidade cursava?


- Eu me formei em Michigan. – Como as lentes dos olhos novamente embaraçaram, Ginevra parecia envolta numa leve e misteriosa névoa. – Quando eu, eh, ouvi que o dr. Potter ia ensinar aqui, decidi fazer o mestrado aqui.


- Você veio para cá por causa de Harry, do Dr. Potter?


- Não quis perder a oportunidade. Fui a Nova York o ano passado assistir a uma palestra dele. – Terry ergueu a mão e quase derrubou o açucareiro. – Ele é incrível.


- Imagino... – murmurou ao ser servido o café.


- Onde você andou escondida? – perguntou o garçom, apertando-lhe o ombro com intimidade. – Não apareceu aqui o mês inteiro.


- Ando trabalhando muito. Como vai Daria?


- Acabou. - Joe piscou o olho de um jeito amigável. – Sou todo seu, Gina.


- Vou me lembrar disso. – Com uma risada, voltou-se para Terry. – Algo errado? – perguntou ao vê-lo repuxando a gola.


- Sim. Não. Ou melhor... Ele é seu namorado?


- Meu... – Para evitar rir na cara de Terry, tomou um gole de café. – Você está falando de Joe? Não. – Pigarreou e tomou outro gole. —Não, não é... Somos apenas... – Procurou a palavra. – Amigos.


- Ah! – Alívio e insegurança disputavam terreno. - Eu pensei, já que ele... bem.


- Ele estava apenas brincando. – Querendo colocar Terry à vontade, apertou-lhe a mão. – E você? Tem uma namorada em Michigan?


- Não. Ninguém. Ninguém mesmo. – Ele virou a mão, segurando a dela.


Ai, meu Deus! Ao se dar conta, Ginevra ficou pasma. Só uma tola não teria percebido, pensou ao fitar os olhos míopes e em estado de adoração de Terry. Uma tola, acrescentou, tão envolvida com os próprios problemas que não percebeu o que acontecia debaixo de seu nariz. Precisava ser cautelosa, decidiu. Muito cautelosa.


- Terry... – começou. – Você é um amor.


Foi o suficiente para a mão do rapaz tremer e derrubar café na camisa. Movendo-se com agilidade, Ginevra mudou a cadeira de lugar para ficar ao lado dele. Pegou guardanapos de papel e começou a limpar a mancha.


- Ainda bem que nunca servem café quente neste lugar. Se lavar com água fria logo, a mancha vai sair.


Emocionado, Terry agarrou-lhe as mãos. Como ela estava perto, o perfume de seus cabelos o deixou tonto.


- Eu amo você. – confessou e o demonstrou beijando-a.


Os óculos escorregaram pelo nariz. Ginevra sentiu os lábios frios e trêmulos tocarem seu rosto. Com pena do rapaz, decidiu que agir com cautela não seria a atitude apropriada. Precisava de firmeza e rápido.


- Não, você não me ama. – A voz era severa e ela se afastou para limpar a sujeira na mesa.


- Eu não a amo? – A resposta o desconcertou. Nada se assemelhava às fantasias tecidas. Numa delas, ele a salvava de um caminhão desgovernado. Noutra, ele tocava a música que compunha em sua homenagem e ela atirava-se em seus braços aos prantos, apaixonada. Sua imaginação não chegara ao ponto de vê-la limpar café e dizer-lhe calmamente que ele não a amava. - Sim, eu amo você. – Ele voltou a tomar-lhe a mão.


- Isso é ridículo. – disse e sorriu para atenuar a crueza das palavras. – Você gosta de mim e eu também gosto de você.


- Não, é bem mais do que isso. Eu...


- Está bem. Por que você me ama?


- Porque você é linda. – conseguiu dizer, perdendo o controle ao voltar a encará-la. – Você é a mulher mais linda que já conheci.


- E isso é o suficiente? – Soltando a mão, cruzou os dedos e apoiou o queixo. – E se eu dissesse que sou uma ladra? Ou que gosto de atropelar animaizinhos peludos com meu carro? Talvez eu já tenha sido casada três vezes e assassinado todos os meus maridos enquanto dormiam.


- Gina...


Ela riu, mas resistiu à tentação de afagar-lhe o rosto.


- O que quero dizer é que você não me conhece o suficiente para me amar. Se me amasse, não se importaria com minha aparência.


- Mas... mas eu penso em você todo o tempo.


- Porque se convenceu de que seria legal estar apaixonado por mim. – Ele parecia tão desconsolado que ela aproveitou a oportunidade e cobriu-lhe a mão com a sua. – Para mim, é um elogio.


- Isso significa que você não vai sair comigo?


- Estou com você agora. – Ela empurrou a xícara de café dela para ele. – Como amiga. – disse, antes que a luz voltasse a brilhar em seus olhos. – Sou muito velha para ser outra coisa além de amiga.


- Não, não é.


- Sou sim. – De repente, ela se sentiu com 100 anos. – Sim, eu sou.


- Você acha que eu sou bobo. – resmungou. A onda de humilhação tomou o lugar da excitação confusa. Ele podia sentir o rubor subindo-lhe à face.


- Não, não acho. – A voz suavizou-se e mais uma vez pegou-lhe as mãos. – Terry, ouça...


Mas, antes que pudesse impedi-lo, ele afastou a cadeira.


- Preciso ir.


Amaldiçoando-se, Ginevra pegou o cachecol listrado dele. Não fazia sentido segui-lo. Ele precisava de tempo, pensou. E ela, de ar.


As folhas começavam a mudar de cor e algumas haviam caído, derrubadas pelo vento. Era o tipo de noite de que mais gostava, mas agora mal reparava. Deixara o café intocado para dar uma caminhada comprida em volta da cidade.


Dirigindo-se para casa, pensou em uma dúzia de formas que poderia ter usado para lidar melhor com a tola paixão de Terry. Por lhe faltar habilidade, ferira um menino sensível e vulnerável. Poderia ter evitado a situação, tudo, se tivesse prestado atenção ao que acontecia diante de seu nariz.


Em vez disso, os sentimentos indesejados por outra pessoa a cegaram.


Sabia muito bem o que representava acreditar estar amando, sentir-se desesperada, sem esperança. E sabia como doía descobrir que a pessoa amada não correspondia a seus sentimentos. Cruel ou gentil, a rejeição do amor deixava o coração ferido.


Soltando um suspiro, alisou o cachecol em seu bolso. Será que ela também já fora tão confiante e indefesa? Sim, respondeu. Isso e muito, muito mais.


 


Já era mais do que tempo, pensou Harry ao vê-la aproximar-se. Obviamente, sua mente estava a milhões de quilômetros de distância. Pensando no seu encontro, decidiu tentar não trincar os dentes. Bem, ele ia providenciar para que ela tivesse bem mais no que pensar em muito pouco tempo.


- Ele não a trouxe até em casa?


Ginevra ficou imóvel e arfou involuntariamente. No portão, iluminado por um raio de luz, viu Harry sentado nos degraus. Mas era tudo o que precisava, pensou, passando a mão nos cabelos. Com Terry, sentira-se como se tivesse chutado um filhote. Agora, teria de enfrentar um lobo grande e faminto.


- O que está fazendo aí?


- Congelando.


Ela quase riu. Da boca de Harry saía uma fumaça branca. Considerando o vento frio, imaginava que a temperatura devia estar em torno de – 4°C. Passado um segundo, Ginevra convenceu-se de ser muito perversa por se divertir diante da idéia de Harry sentado no concreto frio por uma hora.


Ele se levantou enquanto ela continuava a caminhar. Como podia ter se esquecido de como ele era alto?


- Você não convidou seu amigo para tomar um drinque?


- Não. – Ela girou a maçaneta. Como a maioria das portas na cidade, estava destrancada. – Se tivesse, você ficaria muito sem graça.


- Esta não é a palavra certa.


- Suponho ter sorte de não ter encontrado você esperando por mim dentro de casa.


- Mas teria, se tivesse me ocorrido conferir se a porta estava aberta. – resmungou.


- Boa noite.


- Espere aí um minuto. – Ele espalmou a mão na porta antes que ela pudesse fechá-la em sua cara. – Eu não fiquei aqui sentado no frio por causa de minha saúde. Quero falar com você.


Havia algo de prazeroso na breve e boba brincadeira de empurra-empurra da porta.


- Já é tarde.


- E cada vez mais tarde. Se fechar a porta, vou bater até todos os vizinhos espiarem pela janela.


- Cinco minutos. – disse, pois já planejara conceder-lhe esse tempo de qualquer jeito. – Vou lhe servir um brandy e depois você vai embora.


- Você é tão generosa, Ginevra...


- Não. – Colocou o casaco nas costas do sofá. – Não sou.


Desapareceu na cozinha sem outra palavra. Ao voltar com dois copos de brandy, ele estava parado no meio da saia, revirando o cachecol de Terry entre os dedos.


- Que tipo de jogo você está fazendo?


Ela colocou o brandy na mesa e, calmamente, tomou um gole do seu.


- Não sei a que se refere.


- O que você está fazendo, saindo com um garoto universitário que ainda molha as calças?


Tanto suas costas quanto a voz retesaram-se.


- Não é da sua conta com quem eu saio.


- Agora é. – respondeu Harry, dando-se conta do quanto se importava.


- Não, não é. E Terry é um jovem muito simpático.


- Jovem é a palavra-chave. – Harry atirou o cachecol de lado. – Sem dúvida, é jovem demais para você.


- É mesmo? – Uma coisa era ela dizer isso e outra, bem diferente, era Harry atirar-lhe isso na cara como uma acusação. – Acredito que caiba a mim decidir.


Dessa vez, você tocou no ponto fraco, murmurou Harry para si mesmo. Houve um tempo – não houve? – em que considerava saber lidar com as mulheres.


- Talvez eu devesse ter dito que você é muito velha para ele.


- Ah, é! – Mesmo sem querer, começou a achar a situação engraçada. – Agora melhorou muito. Prefere tomar o brandy ou quem que eu o derrube em você?


- Vou beber, obrigado. – Ergueu o copo, mas, em vez de levá-lo aos lábios, deu outra volta pela sala. Estava com ciúmes, percebeu. Era patético, mas estava com ciúmes de um estudante esquisito e de língua presa. E fazia papel de bobo. – Ouça, talvez eu devesse começar do princípio.


- Não sei por que você começaria algo que nunca deveria ter começado.


Mas, como um cachorro com um osso, ele não podia parar de roer.


- É que, obviamente, ele não faz seu tipo.


Ela lançou outra labareda.


- Ah, e você sabe qual é meu tipo?


Harry levantou a mão livre.


- Está bem, uma pergunta direta antes que eu enfie uma rolha em minha boca. Você está interessada nele?


- Claro que estou. – De pronto, amaldiçoou-se. Era impossível usar Terry e os sentimentos dele como uma barricada contra Harry. – Ele é um menino muito legal.


Harry quase relaxou, depois voltou a olhar o cachecol ainda jogado nas costas do sofá.


- O que está fazendo com isto?


- Eu o peguei para ele. – A visão do cachecol colorido e um pouco cafona no sofá a fez sentir-se como o mais perverso tipo de mulher fatal. – Ele o esqueceu quando eu o magoei. Ele pensa estar apaixonado por mim. – Infeliz, caiu numa cadeira. – Ah, vai embora. Não sei por que estou falando com você.


A expressão de seu rosto deu-lhe vontade de rir e afagar-lhe os cabelos. Pensou melhor e manteve o tom descontraído.


- Porque está chateada e sou o único aqui.


- Pode ser. – Ela não fez nenhuma objeção quando Harry sentou-se na sua frente. – Ele era tão meigo e nervoso e eu não fazia idéia de seus sentimentos. Devia ter percebido, mas não percebi até ele derramar o café na camisa e... Não ria dele.


Harry continuou a sorrir enquanto sacudia a cabeça.


- Não estou rindo. Acredite em mim. Sei exatamente como ele deve ter se sentido. Algumas mulheres têm a capacidade de nos tornar desajeitados.


Os olhos se encontraram e mantiveram-se fixos.


- Não flerte comigo.


- Já passei da fase de flertar com você, Ginevra.


Inquieta, ela se levantou e começou a andar de um lado para o outro.


- Você está mudando de assunto.


- Estou?


Ela gesticulou impaciente enquanto andava.


- Eu feri os sentimentos dele. Se soubesse o que estava acontecendo, teria interrompido. Não há nada, – disse, em tom apaixonado - nada pior do que amar alguém e não ser correspondida.


- Não mesmo. – Ele compreendia. E podia ver, pelas sombras a cobrir-lhe os olhos, que ela também sabia. – Mas você não acha que ele a ama.


- Ele acredita nisso. Eu perguntei por que ele acreditava nisso e sabe o que disse? – Voltou-se, o cabelo balançando em seus ombros com o movimento. – Falou que me ama porque me acha linda. É isso. – Ela levantou as mãos e começou a andar de um lado para o outro de novo. Harry apenas olhou, capturado pelos movimentos e pela cadência musical que a agitação produzia em sua voz. – Quando ele disse isso, tive vontade de bater nele e perguntar: "O que está errado com você? Um rosto não passa de um rosto. Você não conhece minha mente ou meu coração." Mas ele olhava com aqueles olhos grandes e tristes e eu não podia gritar com ele.


- Você nunca teve problema em gritar comigo.


- Você não tem olhos grandes e tristes e não é um menino que acredita estar apaixonado.


- Não sou um menino. – concordou, pegando-a pelos ombros por trás. Apesar de ela ficar tensa, ele a girou para encará-lo. – E eu não gosto só de seu rosto, Ginevra. Embora goste muito dele.


- Você também não sabe nada de mim.


- Sei sim. Sei que você viveu experiências que eu mal posso imaginar. Sei que ama sua família, sente falta dela, que compreende as crianças e sente uma afeição natural por elas. Você é organizada, teimosa e apaixonada. – Ele desceu as mãos por seus braços e voltou a segurar-lhe os ombros. – Sei que já amou antes. – Ele a prendeu, antes que ela pudesse se afastar. – E você não está pronta para falar a respeito. Você tem uma mente aguda e curiosa e um coração afetuoso e gostaria de não sentir atração por mim. Mas sente.


Ela abaixou os cílios para ocultar o olhar.


- Pelo que estou vendo, você sabe mais a meu respeito do que eu sobre você.


- Isso é fácil de resolver.


- Eu não sei se quero. Ou por que deveria.


Os lábios de Harry roçaram os seus e afastaram-se antes que ela pudesse corresponder ou rejeitá-lo.


- Existe algo entre nós. – murmurou. – E isso serve de motivo.


- Talvez exista. – começou. – Não. – Ela se afastou quando ele tentou beijá-la novamente. – Não me beije. Não estou muito forte hoje à noite.


- Uma boa razão para eu me sentir culpado se tirar vantagem.


Ela sentiu, ao mesmo tempo, decepção e alívio quando ele a soltou.


- Vou cozinhar para você. – disse ela num impulso.


- Agora?


- Amanhã. Mas é só um jantar. – acrescentou, se questionando se devia se arrepender do convite. – Se você trouxer Lily.


- Ela vai gostar. E eu também.


- Está bem. Às 19h. – Ginevra pegou o casaco dele e o entregou. – Agora precisa ir.


- Você devia aprender a dizer o que está pensando. – Com um meio sorriso, Harry pegou o casaco. – Só mais uma coisinha.


- Só uma?


- Uma só. – Ele a estreitou nos braços para um beijo longo, apaixonado, de turvar a mente. Ele satisfez-se ao vê-la sentar-se fraca no braço do sofá quando a soltou.


- Boa noite. – disse e saiu, envolto pelo ar frio.


 


Era a primeira vez que Lily era convidada para um jantar de adultos e esperava impaciente enquanto o pai se barbeava. Normalmente, gostava de vê-lo passar o barbeador no rosto coberto de espuma branca. Tinha vezes em que secretamente desejava ser um menino, para poder um dia repetir o ritual. Mas, naquela noite, ela achou que o pai estava lento demais.


- Podemos ir agora?


Ainda de roupão, Harry limpou as sobras de espuma.


- Talvez seja uma boa idéia eu vestir minhas calças.


Lily apenas revirou os olhos.


- E quando vai colocar as calças?


Harry pegou-a no colo para morder-lhe de leve o pescoço.


- Assim que você deixar.


Obediente, desceu correndo as escadas para vagar pelo hall de entrada e contar até 60. Depois da quinta vez, sentou-se no degrau inferior para brincar com a fivela do sapato do pé esquerdo.


Lily já tinha calculado tudo: O pai ia se casar ou com Gina ou com a Sra. Patterson, porque as duas eram bonitas e tinham sorrisos simpáticos. Depois, a que ele escolhesse viria morar na casa nova. Em breve, teria uma irmãzinha. Um irmãozinho servia, mas era, definitivamente, uma segunda opção. Todo mundo ficaria feliz, porque todo mundo gostaria um bocado um do outro. E o pai tocaria sua música tarde da noite de novo.


Quando ouviu Harry descer as escadas, Lily pulou e se virou para encará-lo.


- Pai, eu contei até 60 um zilhão de vezes.


- Aposto que você pulou os 30 de novo. – Ele pegou o casaco dela do armário do hall e a ajudou a se vestir.


- Não, não pulei. – Pelo menos, achava que não tinha pulado. – Você demorou horas. – Com um suspiro, ela o empurrou para a porta.


- Mas assim vamos chegar cedo.


- Ela não vai se importar.


Nesse momento, Ginevra vestia um suéter e pensava por que convidara alguém para jantar, especialmente um homem que seus instintos diziam para evitar. Passara o dia distraída, preocupada se a comida ficaria gostosa, se o vinho escolhido combinava com a comida. E agora estava mudando de roupa pela terceira vez.


Totalmente em desacordo com seu temperamento, disse a si mesma, franzindo o cenho diante do reflexo no espelho. O suéter azul casual e a calça legging a acalmaram. Se parecesse à vontade, decidiu Ginevra, sentiria-se à vontade. Prendeu os compridos brincos de prata, ajeitou o cabelo e correu de volta à cozinha. Mal tinha conferido o molho quando ouviu a batida.


Tinham chegado antes da hora, pensou, permitindo-se soltar um palavrão antes de ir até a porta.


Eles estavam lindos. A agitação desapareceu num sorriso. A visão da menininha com a mão apertada na do pai tocou-lhe o coração. Por parecer natural, curvou-se e beijou Lily nas duas bochechas.


- Obrigada por me convidar para jantar. – recitou a frase e depois olhou para o pai à espera de aprovação.


- De nada.


- Você não vai beijar papai também?


Ginevra hesitou e surpreendeu o sorriso desafiante de Harry.


- Claro. – Roçou os lábios formalmente em seu rosto. – É um cumprimento tradicional ucraniano.


- Fico muito grato pelo glasnost. – Ainda sorrindo, ele pegou-lhe a mão e a levou aos lábios.


- Vamos comer borscht? – quis saber Lily.


- Borscht? – Ginevra franziu a testa enquanto ajudava Lily a tirar o casaco.


- Quando eu contei à Sra. Patterson que eu e papai íamos jantar na sua casa, ela disse que borscht é sopa de beterraba em russo. – Lily conseguiu não dizer que achava horrível, mas Ginevra entendeu.


- Que pena! Não fiz. – disse, com o rosto sério. – Preparei outro prato tradicional. Macarrão e almôndegas.


 


Foi fácil, surpreendentemente fácil. Comeram acomodados na velha mesa de dobrar perto da janela e a conversa girou sobre as dificuldades de Lily em aritmética e sobre ópera napolitana. Só precisou de um pouco de incentivo para falar sobre sua família. Lily queria saber tudo sobre ser a irmã mais velha.


- Nós não brigávamos muito. – refletiu Ginevra, enquanto tomava o café e balançava Lily no joelho. – Mas, quando brigávamos, eu ganhava porque era mais velha. E mais malvada.


- Você não é malvada.


- De vez em quando, quando estou zangada, sou. – Olhou para Harry lembrando, arrependida, de ter dito que ele não merecia Lily. – Aí, fico triste.


- Quando as pessoas brigam, nem sempre significa que elas não se gostam. – murmurou Harry. Ele fazia o possível para não pensar o quão perfeito, o quão perfeitamente correto era ver a filha aninhada no colo de Ginevra. Você está indo muito rápido, muito longe, avisou a si mesmo. Para todos os envolvidos.


Lily não tinha certeza se entendia, mas tinha apenas 5 anos. Depois, contente, lembrou-se que, em breve, teria 6 anos.


- Vou fazer aniversário.


- Mesmo? – Ginevra deu a impressão de estar impressionada. – Quando?


- Em duas semanas. Você vem à minha festa?


- Adoraria. – Ginevra olhou Lily, enquanto ela enumerava todas as maravilhosas surpresas guardadas na manga.


Não era sábio envolver-se tanto com a menininha, avisou a si mesma. Não quando a menina estava ligada tão estreitamente a um homem que fazia Ginevra desejar coisas que tinha posto de lado. Harry sorriu para ela. Não, não era sábio, pensou de novo. Mas era irresistível.


 


 


 


 


 

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