Capítulo 03



Capítulo 03


 


Ginevra botou o pregador nos cabelos por cima da orelha, na esperança de que ele ficasse no lugar por mais de cinco minutos. Estudou o reflexo no estreito espelho acima da pia, nos fundos da loja, antes de se decidir por um toque de batom. Não importava ter tido um dia longo e agitado ou os pés estarem doendo: aquela noite daria um presente a si mesma, seu prêmio pelo trabalho cumprido.


Todo semestre, fazia um dos cursos da universidade. Escolhia o que lhe parecia mais divertido, mais instigante ou mais fora do comum. Poesia renascentista num ano. Manutenção automotiva no outro. Neste semestre, duas noites por semana, faria um curso sobre história da música. Naquela noite, começaria a exploração do novo tópico. Tudo o que aprendia guardava para seu próprio prazer, como outras mulheres colecionavam diamantes e esmeraldas. Não precisava ser útil. Em sua opinião, um colar deslumbrante também não era útil, mas simplesmente excitante possuí-lo.


Carregava um caderno, canetas e lápis e um mar de entusiasmo. Para se preparar, visitara a biblioteca e pesquisara sobre o assunto nas últimas duas semanas. O orgulho não lhe permitiria chegar ignorante ao curso. A curiosidade a fazia se questionar se o professor poderia despertar entusiasmo ao abordar os áridos e longínquos fatos.


Não havia dúvida de que esse professor em particular despertava lampejos de excitação em outros setores. Lilá a provocara aquela manhã falando do novo professor sobre o qual todo mundo comentava, o dr. Harry J. Potter.


O nome parecia muito distinto – definitivamente, não combinava com a descrição do "gato" feita por Lilá. A informação dela procedia da filha de uma prima que estava se formando em educação elementar com especialização em música. Um Deus do Sol, repetira Lilá, e fizera Ginevra sorrir.


Um superdotado Deus do Sol, refletiu Ginevra, apagando as luzes da loja. Conhecia bem o trabalho de Potter – as músicas por ele criadas antes de, súbita e inexplicavelmente, deixar de compor. Nossa, ela inclusive dançara seu Prelúdio em dó menor quando ainda fazia parte do corpo de baile de Nova York.


Um milhão de anos atrás, pensou, quando saiu da loja. Agora, teria a oportunidade de encontrar o gênio, ouvir seus pontos de vista e talvez descobrir novos significados em muitos dos clássicos que já amava.


Ele, provavelmente, fazia o tipo artista temperamental, decidiu, satisfeita com o vento a levantar-lhe os cabelos e refrescar-lhe o pescoço. Ou um excêntrico, pálido e de brinco. Não importava. Ela pretendia estudar bastante. Cada curso era motivo de orgulho para ela. Ainda se lamentava ao lembrar do quão pouco sabia aos 18 anos. Como dava pouca importância ao saber, admitiu Ginevra. Só pensava em dançar. Fizera a opção de se fechar para o mundo a fim de se concentrar unicamente no espaço da dança. Quando este lhe foi tomado, ficara perdida como uma criança arrastada pelas águas do Atlântico.


Conseguira chegar à margem, assim como sua família conseguira encontrar seu caminho atravessando as florestas da Ucrânia para finalmente alcançar a selva de Manhattan. Agora, gostava mais de si mesma, a mulher americana independente e ambiciosa em que se transformara. Essa nova mulher podia andar pelo vasto e bonito prédio antigo do campus com tanto orgulho quanto qualquer calouro.


Passos distantes, deslocados, ecoavam nos corredores. Uma tranqüila reverência que Ginevra sempre associara a igrejas e universidades. De certo modo, havia religião ali, a crença no aprendizado.


Sentiu-se ela própria, de certo modo, reverente ao entrar em sua sala de aula. Quando criança, aos 5 anos, em seu pequenino vilarejo de agricultores, jamais imaginara um prédio daqueles ou os livros e a beleza ali contidos.


Vários estudantes já aguardavam. Um grupo heterogêneo, composto de gente de todas as idades, desde jovens a pessoas de meia-idade. Todos pareciam agitados, possuídos pela excitação do começo. O relógio marcava dois minutos para as oito. Esperara que Potter já tivesse chegado e estivesse ocupado mexendo em seus papéis, olhando-os por trás dos óculos, o cabelo meio despenteado na altura dos ombros.


Distraída, sorriu para um jovem com óculos de aro de tartaruga, que a fitava como se tivesse acabado de despertar de um sonho. Pronta para começar, sentou-se e ergueu o olhar quando o mesmo homem, meio sem jeito, mudou de lugar e sentou-se ao seu lado.


- Oi.


Ele se comportava como se ela o tivesse golpeado com um bastão e não feito um cumprimento casual. Nervoso, empurrou os óculos para cima do nariz.


- Oi. Eu... Eu sou... Terry Maynard. – terminou de supetão quando, aparentemente, conseguiu se lembrar de seu próprio nome.


- Ginevra. – Ela voltou a sorrir.


Ele beirava os 25 anos e parecia tão inofensivo quanto um filhotinho de cachorro.


- Eu, hã, nunca tinha visto você antes no campus.


- Não. – Embora achasse engraçado aos 27 anos ser confundida com uma universitária, manteve a voz contida. – Só vou assistir a esta matéria. Por diversão.


- Por diversão? – Terry parecia levar a música muito a sério. – Você sabe quem é o dr. Potter? – A óbvia admiração o fez quase sussurrar o nome.


- Já ouvi falar dele. Você é formado em música?


- Sim. Espero, quer dizer, um dia, tocar na Sinfônica de Nova York. – Os dedos grossos ajeitaram novamente os óculos. – Sou violinista.


Ginevra voltou a sorrir e o pomo-de-Adão dele saltou.


- Que maravilha! Tenho certeza de que você deve ser muito bom.


- O que você toca?


- Campainha. – Depois riu e recostou-se na cadeira. – Desculpe. Não toco nenhum instrumento. Mas adoro ouvir música e achei que gostaria de assistir às aulas. – Olhou para o relógio na parede. – Quero dizer, se tiver aula. Aparentemente, nosso estimado professor está atrasado.


Naquele exato momento, o estimado professor andava apressado pelos corredores, xingando-se por ter concordado em dar aula à noite. Ao terminar de ajudar Lily no dever de casa - quantos animais pode encontrar neste desenho? - convencê-la de que couve-de-bruxelas era uma delícia e não asquerosa e trocar de camisa porque o abraço carinhoso da filha transferira uma substância misteriosa e gosmenta para a manga de sua camisa, só queria um bom livro e um brandy para revigorá-lo.


Em vez disso, teria de enfrentar uma sala cheia de rostos ansiosos, todos à espera de aprender o que Beethoven vestia ao compor a Nona sinfonia.


No pior dos humores, entrou na sala.


- Boa noite. Sou o dr. Potter. – Os murmúrios e a tagarelice cessaram. – Peço desculpas pelo atraso. Se todos se sentarem, podemos começar.


Enquanto falava, percorreu os olhos pela sala. E, de repente, estava fitando o rosto atônito de Ginevra.


- Não! – Ela dissera a palavra em voz alta sem querer, e pouco se importava. Só podia ser uma brincadeira, pensou, e de mau gosto. Aquele homem no elegante paletó esporte era Harry Potter, um músico cujas composições admirara e dançara! O homem que antes de chegar aos 20 anos tocara no Carnegie Hall e fora considerado um gênio. O homem que tentara cantá-la numa loja de brinquedos era o ilustre dr. Potter? Era absurdo, irritante. Era...


Maravilhoso, pensou Harry ao olhá-la. Absolutamente maravilhoso. Na verdade, perfeito, desde que pudesse controlar o riso que insistia em aflorar à sua face. Então, a czarina era uma de suas alunas! Era melhor, muito melhor, do que um brandy revigorante e uma noite serena.


- Tenho certeza – disse, após uma longa pausa – de que vamos achar os próximos meses fascinantes.


Devia ter se matriculado num curso de astronomia, disse Ginevra a si mesma. Poderia aprender todo tipo de coisas interessantes sobre planetas e estrelas. Asteróides. Melhor seria aprender sobre – como se chamava mesmo? – tração gravitacional e inércia. Qualquer coisa. Com certeza, era muito mais importante para ela descobrir quantas luas giravam em torno de Júpiter do que estudar os compositores da Escola de Borgonha no século XV


Decidiu pedir transferência. No dia seguinte, bem cedo, tomaria as providências. Na verdade, se levantaria e iria embora agora mesmo se não tivesse certeza de que o dr. Harry Potter iria rir com ironia.


Revirando o lápis entre os dentes, cruzou as pernas determinada a não prestar atenção. Era uma pena que a voz dele fosse tão atraente.


Impaciente, olhou o relógio. Faltava ainda uma hora. Faria o que costumava fazer enquanto esperava no consultório do dentista. Fingiria estar em outro lugar. Lutando para bloquear a voz de Harry da mente, começou a balançar o pé e rabiscar no bloco.


Ginevra não percebeu quando os rabiscos tornaram-se anotações, quando começou a absorver cada palavra. Harry fazia os músicos do século XV parecerem vivos e vigorosos, e as músicas por eles compostas tão reais como se de carne e sangue. Rondós, virelais, baladas. Quase podia ouvir as canções em três partes dos primórdios da Renascença, os reverentes e altissonantes cânticos.


Foi tomada, envolvida, pela antiga rivalidade entre a música e o Estado e o papel da música na política. Podia ver as imensas salas repletas de aristocratas elegantemente trajados, banqueteando-se em música e também em comida.


- Na próxima aula, vamos discutir a Escola Franco-flamenca e os desenvolvimentos rítmicos. – Harry deu um sorriso descontraído para os alunos. – E vou tentar chegar na hora.


Já terminara? Ginevra voltou a olhar o relógio e ficou chocada ao constatar que já passava das nove.


- Ele é incrível, não é?


Fitou Terry. Os olhos brilhavam por trás das lentes.


- Sim. – Custou a admitir, mas era a pura verdade.


- Você devia ouvi-lo na aula de teoria. – Ele notou, enciumado, vários estudantes agrupados em torno de seu ídolo. Mesmo assim, Terry não reunia coragem para se aproximar dele. – Vejo... Vejo você na quinta.


- O quê? Ah! Boa noite, Terry.


- Eu posso dar uma carona pra você até em casa, se quiser. – O fato de o carro estar quase sem gasolina e o amortecedor preso por um cabide não lhe veio à mente.


Ela lhe deu um sorriso sem calor, mas que fez o coração dele dançar o cha-cha-chá.


- Muita gentileza sua, mas não moro longe.


Ela esperava sumir da classe enquanto Harry ainda se mantinha ocupado. Devia saber que isso não aconteceria.


Ele simplesmente colocou a mão em seu braço e a fez parar.


- Gostaria de falar com você por um momento, Ginevra.


- Estou com pressa.


- Não vai demorar. – Ele meneou a cabeça para o último dos estudantes e depois se reclinou na mesa e sorriu para ela. – Eu deveria ter prestado mais atenção à lista de chamada, mas, afinal, é bom descobrir que ainda acontecem surpresas no mundo.


- Depende do ponto de vista, dr. Potter.


- Harry. – Ele continuou a sorrir. – A aula terminou.


- Estou vendo. – Sua altiva atitude o fez pensar de novo na realeza russa. – Com licença.


- Ginevra! – Ele aguardou, a impaciência quase vibrando ao redor ao se virar. – Não posso imaginar que alguém com sua herança cultural não acredite em destino.


- Destino?


- De todas as classes, em todas as universidades de todo mundo, você entra justo na minha.


Ela não ia rir. Iria se amaldiçoar caso o fizesse. Mas os cantos da boca se levantaram antes que pudesse controlá-los.


- E eu estava achando que era puro azar.


- Por que história da música?


Ela equilibrou o caderno no quadril.


- Eu estava dividida entre história da música e astronomia.


- Parece uma história fascinante. Por que não tomamos uma xícara de café? Você pode me falar sobre isso. – Ele viu a fúria crescer nos olhos aveludados qual lanças afiadas. – Por que isso a enfurece? – perguntou, quase para si mesmo. – Um convite para uma xícara de café nesta cidade é alguma proposta indecente?


- O senhor devia saber, dr. Potter. – Ela virou-se, mas ele chegou à porta antes dela e a fechou com tanta força que ela recuou. Ele estava tão zangado quanto ela, percebeu Ginevra. Não que isso importasse, apenas a surpreendia, pois ele parecia o tipo de homem brando. Detestável, mas brando. Não havia nada de brandura nele agora. Aqueles fascinantes olhos e ângulos do rosto pareciam esculpidos em pedra.


- Esclareça.


- Abra a porta.


- Com prazer. Depois de responder à minha pergunta. – Estava zangado. Harry percebeu que há anos não sentia esse tipo de raiva cega, incontrolável. – Entendo que o fato de me sentir atraído por você não significa que você tenha de corresponder.


Ginevra ergueu o queixo, odiando-se por achar os olhos cinza-chumbo tão hipnóticos.


- Eu não sinto atração por você.


- Ótimo. – Ele podia estrangulá-la pela resposta, adoraria fazê-lo. – Quero saber por que você me agride toda vez que estou por perto.


- Porque homens como você merecem levar um tiro.


- Homens como eu? – repetiu, medindo as palavras. – O que exatamente isso significa?


Ele estava perto, ameaçadoramente perto. Como daquela vez na loja, quando esbarrara nela, sentiu aquelas borbulhas de excitação, atração, confusão. Era mais do que o bastante para atirá-la no precipício.


- Você acha que só porque tem um rosto bonito e um sorriso cativante pode fazer o que bem entende? Sim. – respondeu antes que ele pudesse responder e bateu com o caderno no peito dele. – Você acha que basta estalar os dedos, – ela o demonstrou de forma dramática. - e todas as mulheres vão se atirar em seus braços? Não esta mulher.


O sotaque ficava mais pesado quando discutia, percebeu ele, de alguma forma surpreso com a atitude.


- Eu não me lembro de ter estalado os dedos.


Ela deixou escapar um curto e explícito palavrão em ucraniano e segurou a maçaneta.


- Você quer tomar uma xícara de café comigo? Ótimo. Vamos tomar café, mas antes vou ligar para sua mulher e convidá-la para se reunir a nós.


- Minha o quê? – Ele segurou-lhe a mão. A porta foi escancarada e voltou a bater de novo. – Não tenho mulher.


- Sério? – A simples palavra destilava escárnio. Os olhos relampejaram. – Então, devo supor que a mulher que foi à loja com você seja sua irmã.


Poderia ser engraçado, mas ele não conseguia entender a brincadeira.


- Mione? Ela é minha irmã mesmo.


Ginevra abriu a porta com um som de desprezo.


- Isso é patético!


Tomada por uma justa indignação, saiu porta afora atravessando o corredor e a porta principal. Num ritmo stacatto em perfeita harmonia com sua irritação, os saltos batiam no concreto ao descer as escadas. Quando foi abruptamente pega pelo braço, quase tropeçou nos últimos dois degraus.


- Mas você é um bocado audaciosa!


- Eu? – conseguiu dizer. – Eu sou audaciosa?


- Você acha que sabe de tudo, não acha? – Com a vantagem da altura, Harry podia olhá-la de cima. Ginevra viu as sombras moverem-se no rosto dele quando a raiva coloriu-lhe a voz. Ele não parecia descontrolado, mas absolutamente sob controle. – Ou deveria dizer que você acha que me conhece.


- Não é preciso muito. – Os dedos apertavam-lhe o braço com firmeza. Detestava a percepção de que, mesclada à raiva, havia pura atração sexual. Lutando contra a sensação, jogou os cabelos para trás. - Na verdade, seu comportamento é bem típico.


- Eu me pergunto se sua opinião a meu respeito pode ser pior. – A fúria equiparou-se ao desejo.


- Duvido.


- Nesse caso, posso muito bem me satisfazer.


O caderno voou de sua mão quando ele a puxou. Ela conseguiu emitir um único som surpreso antes que a boca de Harry cobrisse a sua. Cobrisse, a esmagasse e depois a conquistasse.


Ginevra deveria lutar com ele. Dizia a si mesma sem cessar que deveria lutar contra os sentimentos por ele despertados. Mas foi o choque – pelo menos, rezava para que fosse – que fez seus braços caírem frouxos.


Foi errado. Foi imperdoável. E, meu Deus, foi maravilhoso. Como por encanto, ele encontrara a chave para destrancar a paixão que permanecia adormecida nela há tanto tempo. Seu sangue fervia. A mente se turvava. Ouviu risos quase imperceptíveis de pessoas caminhando pela calçada. Uma buzina, um grito de cumprimento e depois outra vez o silêncio.


Ela soltou um murmúrio, um protesto lamentável que a envergonhou e foi facilmente ignorado quando a língua dele enroscou-se na sua. O gosto dele era um banquete depois de um longo jejum. Embora mantivesse as mãos caídas na lateral, Ginevra entregou-se ao beijo.


Beijá-la era como caminhar num campo minado. A qualquer momento esperava a explosão da bomba e, então, seria estraçalhado. Ele devia ter parado depois do primeiro choque, mas o perigo trazia junto uma excitação muito especial.


E ela era perigosa! Quando os dedos dele mergulharam em seus cabelos, ele quase sentiu o chão tremer e oscilar. Ela era a promessa, a ameaça de uma paixão avassaladora. Podia senti-lo em seus lábios, embora ela lutasse por se conter. Podia senti-lo em sua postura tensa, aterrorizada. Se ela liberasse essa força, ele poderia se transformar em seu escravo.


Uma necessidade como ele nunca conhecera golpeava seu corpo com punhos pesados. Imagens de fogo e fumaça dançavam em seu cérebro. Algo lutava para se libertar, como um pássaro se debatendo contra as grades da gaiola. Ele podia sentir-lhe a tensão. Depois, Ginevra afastou-se dele, encarando-o com olhos grandes e eloqüentes.


Ela não podia respirar. Por um instante, morreu de medo de cair dura devido à indesejada e vergonhosa vontade na consciência. Respirou fundo.


- Eu nunca odiei tanto alguém quanto odeio você.


Ele balançou a cabeça para clarear a mente. Ela o deixara tonto, confuso e absolutamente sem defesa. Para seu próprio bem, esperou até ter certeza de poder falar.


- Você me coloca numa posição sublime, Ginevra. – Desceu os degraus até os olhos ficarem no mesmo nível. Havia lágrimas nos cílios dela, mas só realçavam a condenação nos olhos. – Vamos apenas nos certificar de que você me coloca nessa posição pelas razões certas. Foi porque eu a beijei ou porque você gostou?


Ela moveu a mão. Ele poderia ter evitado a bofetada com facilidade, mas achou que ela merecia o desabafo. Quando o som da bofetada ecoou, ele decidiu estarem quites.


- Não volte a se aproximar de mim. – disse ela, respirando com dificuldade. – Estou avisando. Se o fizer não me responsabilizo pelo que vou dizer nem me importarei com quem possa ouvir. Se não fosse por sua filhinha... – Ela se calou e se curvou para pegar suas coisas. Seu orgulho tinha sido abalado, bem como sua auto-estima. – Você não merece uma criança tão linda.


Ele voltou a segurar-lhe o braço, mas dessa vez a expressão em seu rosto fez com que seu sangue congelasse.


- Você tem razão. Eu nunca mereci e, provavelmente, jamais merecerei Lily, mas sou tudo o que ela tem. A mãe dela, minha mulher, morreu há três anos.


Harry saiu andando. Ginevra viu o vulto iluminado pela luz de um poste para, a seguir, desaparecer em meio à escuridão. Com o caderno pressionado contra o peito, caiu sentada, fraca, no degrau.


Que diabos faria agora?


 


Não tinha escolha. Não importa o quanto odiasse a situação, só havia uma atitude a tomar. Ginevra esfregou as palmas das mãos nas pernas da calça cáqui e começou a subir as escadas de madeira recém-pintadas.


Era uma bonita casa, pensou, na defensiva. Já a tinha visto tantas vezes que raramente a notava. Era uma daquelas casas antigas, sólidas, recuada e escondida por arvores e cercas vivas.


As flores de verão ainda não haviam murchado, mas as florações do outono já começavam a anunciar sua presença. Esporas rivalizavam com o delicioso perfume dos crisântemos, dálias vibrantes com ásteres rutilantes. Alguém cuidava das flores. Podia ver o adubo fresco ainda úmido nos canteiros de flores.


Precisando de um pouco mais de tempo, observou a casa. Cortinas finas e transparentes de cor marfim nas janelas permitiam a entrada da luz. Mais acima, vislumbrou uma cortina estampada com unicórnios, indicação de que o quarto pertencia a uma menina.


Armou-se de coragem e atravessou a varanda em direção à porta da frente. Seria rápido, prometeu a si mesma. Bateu, respirou fundo e esperou.


A mulher que atendeu era baixinha e gorducha, o rosto tão moreno e enrugado quanto uma passa. Ginevra se viu examinada por um par de olhos pequenos e escuros enquanto a empregada enxugava as mãos na barra do avental manchado.


- Posso ajudá-la?


- Gostaria de falar com o dr. Potter se ele estiver em casa. – Sorriu, fingindo não se sentir como se amarrada no pelourinho. – Sou Ginevra Weasley. – Viu os olhos pequenos da empregada se estreitarem, quase desaparecendo nas rugas do rosto.


Vera, a princípio, tomara Ginevra por uma das alunas do señor e havia se preparado para dela se desvencilhar.


- Você é a dona da loja de brinquedos da cidade.


- Isso mesmo.


- Ah! – Com um aceno, abriu a porta para deixar Ginevraa entrar. – Freddie diz que a senhora é uma pessoa muito boa e deu um laço azul para sua boneca. Eu prometi levá-la até a loja, mas só para olhar. – Fez um gesto indicando que Ginevra a seguisse.


Enquanto atravessavam o saguão, Ginevra ouviu notas hesitantes de um piano. Quando viu seu reflexo num antigo espelho oval, ficou surpresa ao perceber que estava sorrindo.


Harry, sentado ao piano, com a criança no colo, olhava por cima de sua cabeça enquanto ela tocava devagar Mary tinha um cordeirinho. O sol atravessava as janelas, localizadas atrás deles. Naquele momento, desejou ser capaz de pintar. De que outro modo poderia capturar o momento?


Era perfeito! A luz, as sombras, os tons pastel da sala, tudo combinando para formar o perfeito pano de fundo. O alinhamento das cabeças e dos corpos era natural e eloqüente demais para uma pose. A menina, vestida de rosa e branco, o cadarço de um dos tênis desamarrado. Ele tirara o paletó e a gravata e havia enrolado as mangas da camisa social clara até os ombros, como um trabalhador.


E o brilho frágil dos cabelos da criança, o brilho vermelho e dourado. A criança recostava-se no pai, a cabeça repousada em seu pescoço, o sorriso de prazer a iluminar-lhe o rosto. E a pairar no ar, o ritmo simples da música infantil no piano.


Ele estava com as mãos nos joelhos do jeans, os longos e lindos dedos marcando o compasso no mesmo ritmo do tique-taque do metrónomo antigo. Ela podia ver tudo: o amor, a paciência, o orgulho.


- Não, por favor. – sussurrou, estendendo a mão na direção de Vera. – Não os perturbe.


- Agora é sua vez de tocar, papai. – Lily inclinou a cabeça em direção à dele. Mechas de cabelos soltos dos pregadores em torno de seu rosto. – Toque algo bonito.


- Für Elise. – Ginevra reconheceu de imediato a música romântica, suave e também, de certo modo, impregnada de solidão. Emocionou-se ao ver os dedos dele tocarem, acariciarem, seduzirem as teclas.


O que ele pensava? Podia perceber que seus pensamentos tinham se voltado para dentro – para a música, para si mesmo. Apesar de os dedos percorrerem as teclas sem esforço, reconhecia que esse tipo de beleza nunca era conseguido sem bastante esforço.


A música cresceu, nota após nota, insuportavelmente triste, incrivelmente linda, como os lírios brancos no vaso sobre a brilhante superfície do piano.


Muita emoção, pensou Ginevra. Muita dor, embora o sol ainda brilhasse através das cortinas transparentes e a criança no seu colo continuasse a sorrir. A vontade de se aproximar de Harry, pousar a mão confortadora em seu ombro e apertar pai e filha contra o coração era tão forte que precisou enfiar as unhas nas palmas das mãos.


Depois a música sumiu, a última nota ressoando como um suspiro.


- Eu gosto desta. – disse Lily. – Foi você quem inventou?


- Não. – Ele olhou os dedos; abriu-os, flexionou-os e finalmente repousou-os nos da menina. – Não, foi Beethoven. – Depois, voltou a sorrir, pressionando os lábios na suave curva do pescoço da filha. – Por hoje chega, bonequinha?


- Posso brincar lá fora até a hora do jantar?


- Bem... E o que vai me dar em troca?


Era uma brincadeira antiga, uma de suas favoritas. Rindo, ela girou, ainda sentada no colo do pai, e deu-lhe um beijo estalado. Ainda preso no abraço de urso, ele viu Ginevra.


- Oi!


- A Srta. Weasley gostaria de vê-lo, dr. Potter. – Ele meneou afirmativamente a cabeça e Vera voltou para a cozinha.


- Oi. – Ginevra conseguiu sorrir, mesmo quando Harry levantou a filha e se virou. Ela ainda não se recobrara da emoção. A música ainda se derramava como lágrimas. – Espero não ter chegado em má hora.


- Não. – Depois de um último aperto, colocou Lily no chão e ela imediatamente correu para Natasha.


- Já terminamos minha lição. Você veio brincar?


- Não, não desta vez. – Incapaz de resistir, Ginevra inclinou-se para afagar o rosto de Lily. – Na verdade, vim conversar com seu pai. – Mas ela era uma covarde, pensou Ginevra enojada. Em vez de olhar para ele, continuou a se dirigir a Lily. – Está gostando da escola? Sua professora é a Sra. Patterson, não é?


- Ela é legal. Ela nem gritou quando os insetos nojentos da coleção de Mikey Towers se espalharam pela classe. E eu posso ler Go, Dog, Go todinho.


Ginevra agachou-se para que os olhos ficassem no mesmo nível.


- "Você gosta do meu chapéu?"


Lily riu, reconhecendo a frase do clássico de dr. Seuss, Go, Dog, Go.


- Eu prefiro a parte da festa do cachorro.


- Eu também. – Num reflexo automático, amarrou o cadarço do tênis de Lily. – Você vai até a loja me visitar em breve?


- Está bem. – Encantada consigo mesma, Lilt saiu correndo para a porta. – Tchau, Srta. Wes... Weas...


- Gina. – Piscou o olho para Lily. – Todas as crianças me chamam de Gina.


- Gina. – Lily riu com o som do nome e sumiu. Ela ouviu o barulho dos tênis de Lily ecoando pelo saguão e depois respirou fundo.


- Lamento perturbá-lo em casa, mas achei que seria mais... – Qual era a palavra? Apropriado, indicado? – Seria melhor.


- Está certo. – Os olhos dele eram muito frios, não os do homem que tocara uma música tão triste e apaixonada. – Gostaria de se sentar?


- Não. – Respondeu rápido demais, lembrando-se em seguida ser melhor ambos agirem de maneira educada. – Não vou me demorar. Só queria pedir desculpas.


- Ah? Por algo específico?


Uma centelha surgiu em seus olhos. Ele gostou do efeito, particularmente porque passara quase a noite inteira xingando-a.


- Quando eu cometo um engano, faço questão de admitir. Mas já que você se comportou tão... – Ai, por que ela sempre esquecia o inglês quando estava zangada?


- Inescrupulosamente? – sugeriu.


A sobrancelha dela subiu até os cabelos em sua testa.


- Então você admite.


- Achei que você é quem tivesse vindo aqui admitir algo. – Divertindo-se, sentou-se no braço de uma poltrona forrada em tecido com estampa adamascada azul-claro. – Não me deixe interrompê-la.


Ela ficou tentada, muito tentada, a girar nos calcanhares e sair. O orgulho era igualmente tão forte quanto o gênio. Faria o que tinha vindo fazer, e depois esqueceria.


- O que disse sobre você, sobre você e sua filha, foi injusto e falso. Mesmo quando eu estava... enganada sobre outras coisas, eu sei que era falso. E lamento muito o que eu disse.


- Posso ver. – Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento. Girou a cabeça a tempo de ver Lily sair em disparada rumo aos balanços. – Vamos esquecer tudo.


Ginevra seguiu-lhe o olhar e se enterneceu.


- Ela é realmente uma linda criança. Espero que a deixe ir até a loja de vez em quando.


O tom da voz fez com que ele observasse Ginevra com mais atenção. Era saudade, aflição?


- Duvido ser capaz de mantê-la afastada. Você gosta muito de crianças.


Ginevra manteve as emoções sob controle.


- Sim, claro, no meu ramo de negócios é uma exigência. Mas não vou ocupá-lo por mais tempo, dr. Potter.


Ele levantou-se para aceitar a mão formalmente estendida.


- Harry. – corrigiu, apertando gentilmente a mão. – Sobre o que mais se enganou?


Então, não ia ser fácil. Conformou-se, pensando ser merecedora de uma dose de humilhação.


- Achei que fosse casado e fiquei zangada. Senti-me insultada quando me convidou para sair.


- Então, agora acredita que não sou casado?


- Acredito. Olhei no Quem é quem na biblioteca.


Ele a fitou por mais um minuto, depois jogou a cabeça para trás e riu.


- Céus, que alma crédula! Encontrou algo interessante?


- Apenas fatos que iriam inflar-lhe o ego. Você ainda está com a minha mão.


- Eu sei. Diga Ginevra, você não gostou de mim em termos gerais ou só porque pensou que eu fosse um homem casado e, portanto, não deveria flertar com você?


- Flertar? – Ela quase se engasgou com a palavra. – Não havia nada inocente no jeito como me olhou. Como se...


- Como se...? – incentivou-a.


Como se já fôssemos amantes, pensou, e sentiu a pele pegar fogo.


- Eu não gostei. – resumiu.


- Porque pensou que eu fosse casado?


- Sim. Não. – disse, corrigindo-se ao se dar conta aonde a conversa os levaria. – Simplesmente não gostei. – Ele levou-lhe a mão aos lábios. – Não! – conseguiu exclamar.


- Como gostaria que eu a olhasse?


- Não é necessário me olhar de jeito nenhum.


- Como não? – Ele podia sentir de novo aquela paixão reprimida, apenas esperando se libertar da prisão em que ela a trancafiara. – Você vai estar sentada na minha frente amanhã à noite na aula.


- Vou pedir transferência.


- Não, não vai. – Ele passou o dedo na pequena argola de ouro em sua orelha. – Você gostou demais. Eu podia ver uma fumacinha nessa sua fabulosa cabeça. E se fizesse isso, – continuou antes que ela pudesse se sair com uma resposta - eu simplesmente iria à sua loja perturbá-la.


- Por quê?


- Porque você é a primeira mulher que desejo em tanto tempo que mal posso me lembrar.


A excitação percorreu-lhe a espinha como uma corrente elétrica. Antes que pudesse evitar, a lembrança daquele beijo arrebatador voltou para enfraquecê-la. Sim, esse era um homem tomado pelo desejo. E, não importa o quanto tentasse resistir, conseguira fazer com que ela também desejasse.


Mas tinha sido apenas um beijo, inflamado pela luxúria a despeito do luar e da brisa suave. Sabia, do fundo do coração, aonde tais desejos desembocavam.


- Isso não faz sentido.


- É pura sinceridade. – murmurou, fascinado pelas emoções que iam e vinham naqueles olhos escuros. – Pensando melhor, já que nosso começo foi tão conturbado, já que está convencida de que não sou casado e sabendo o quanto me sinto atraído, você não deveria se sentir insultada.


- Não me sinto insultada. – disse com cuidado. – Só não estou interessada.


- Você sempre beija homens por quem não tem interesse?


- Eu não beijei você. – Ela soltou a mão. – Você me beijou.


- Podemos resolver esta questão. – Harry a puxou para perto. – Desta vez, retribua o beijo.


Ela podia ter se afastado. Os braços dele não a estavam tolhendo como antes, mas a envolviam, deixando-a solta. Os lábios dele eram mais suaves desta vez; suaves, persuasivos, pacientes. Ela podia sentir o calor penetrar em sua corrente sangüínea como uma droga. Com um gemido, passou as mãos nas costas dele.


Era como segurar uma vela e sentir a cera lentamente desmanchar-se enquanto o fogo ardia no centro. Ele podia senti-la render-se, pouco a pouco, até os lábios se abrirem para ele, assentindo, convidativos. Mas, mesmo quando ela dava, ele podia sentir que lá no fundo algo forte e duro resistia, a segurava. Ela não queria sentir o que ele podia despertar nela.


Impaciente, puxou-a mais para perto. Embora o corpo dela se moldasse ao seu e a cabeça dobrasse numa erótica entrega, parte dela fugia ao seu alcance. O que ela lhe deu apenas aumentou-lhe o apetite.


Ginevra estava sem fôlego quando ele a soltou. Exigiu-lhe esforço, muito esforço, pensou, para se controlar. Mas, quando conseguiu, a voz estava firme.


- Não quero me envolver.


- Comigo ou com ninguém?


- Com ninguém.


- Certo. – Ele afagou-lhe os cabelos. – Assim, vai ser mais simples fazer você mudar de idéia.


- Sou muito teimosa. – murmurou.


- Sim, já notei. Por que não fica para jantar?


- Não.


- Está certo. Levo você para jantar sábado à noite.


- Não.


- Pego você às 19h30.


- Não.


- Vai querer que eu apareça na loja no sábado e deixe você constrangida?


Sem paciência, Ginevra encaminhou-se para a porta.


- Não posso entender como um homem capaz de tocar uma música com tanta sensibilidade possa ser tão idiota.


Deve ser pura sorte, pensou ao ouvir a porta bater. Sozinho de novo, percebeu que estava assoviando.


 


 


 


 


Agradecimentos especiais:


 


PRIKA POTTER


GILMARA


 

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