Capítulo 06



Capítulo 06


 


- Catapora. – repetiu a palavra. Harry, parado na porta, olhava a menininha dormir. – Um presente de aniversário e tanto, meu anjo.


Em dois dias, a filha faria 6 anos e, então, de acordo com o médico, estaria coberta de erupções, agora restritas à barriga e ao peito.


Uma epidemia, dissera o pediatra. Iria embora por si só. Para ele, era fácil dizer, pensou Harry. Não eram os olhos da filha dele que lacrimejavam. Não era o bebê dele que estava com 37,8°C de febre.


Ela nunca ficara doente antes, lembrou ele enquanto esfregava os olhos cansados. Ah, uns resfriados, vez por outra, mas nada que um pouco de carinho, atenção e uma aspirina infantil não resolvessem. Enfiou os dedos nos cabelos. Lily gemia no sono e tentava encontrar um lugar frio no travesseiro.


A ligação de Mione não ajudara. Ele precisou ser enérgico para evitar que ela pegasse o avião e batesse em sua porta. Isso não a impediu de dizer que Lily, provavelmente, contraíra catapora por estar freqüentando a escola pública. Um absurdo, sem dúvida, mas, quando olhou para a filhinha, jogada na cama, o rosto vermelho de febre, a culpa era quase insuportável.


A lógica lhe dizia que catapora fazia parte da infância. O coração dizia que ele deveria ser capaz de descobrir um modo de curá-la.


Pela primeira vez, percebeu o quanto queria alguém a seu lado. Não para assumir o controle nem para poupá-lo das obrigações como pai, apenas para estar ali, para compreender o que significava ver a filha doente, machucada ou infeliz. Alguém com quem conversar de madrugada, quando as preocupações ou os prazeres o mantivessem acordado.


Quando pensava nesse alguém, só Ginevra lhe vinha à mente.


Um grande passo, lembrou-se e voltou para a cabeceira da cama. Um passo que não tinha certeza se seria capaz de dar de novo e se firmar nos dois pés.


Colocou um pano úmido, trazido por Vera, na testa de Lily para refrescá-la. Os olhos da menina se abriram.


- Papai?


- Sim, bonequinha. Estou aqui.


O lábio inferior tremeu.


- Estou com sede.


- Vou pegar algo para você beber.


Doente ou não, ela sabia como manipulá-lo.


- Quero um refresco. Posso tomar um Kool Aid?


Ele deu-lhe um beijo no rosto.


- Claro. De que tipo?


- Do azul.


- Do azul. – Ele deu-lhe outro beijo. – Volto já. – Estava no meio das escadas quando, simultaneamente, o telefone e a campainha tocaram. – Droga! Vera, atenda o telefone, por favor. – Irritado, escancarou a porta da frente.


O sorriso ensaiado por Ginevra a tarde inteira desapareceu.


- Desculpe. Cheguei em má hora.


- É. – Mesmo assim, puxou-a para dentro. – Espere um minuto. Vera, puxa vida! – acrescentou, quando viu a governanta chegar. – Lily quer um Kool Aid, o azul.


- Vou preparar. – Vera cruzou as mãos no avental. – A Sra. Barklay está no telefone.


- Diga a ela... – Harry calou-se, soltando um palavrão. Vera retorceu a boca. Ele não gostava de contar nada a Mione. – Está bem. Vou atender.


- Melhor eu ir embora. – Ginevra comentou, sentindo-se inconveniente. – Só vim porque você não foi à aula hoje e pensei que podia não estar bem.


- É Lily. – Harry olhou o telefone e pensou se poderia estrangular a irmã pelo telefone. – Ela pegou catapora.


- Ah, pobrezinha! – Ela precisou controlar a vontade de subir e olhar a criança. Não é sua filha, lembrou-se. Não é sua casa. – Não quero atrapalhar.


- Desculpe. As coisas estão um pouco confusas.


- Não precisa se desculpar. Espero que ela fique boa logo. Avise se eu puder fazer algo.


Nesse exato momento, Lily chamou o pai numa voz, ao mesmo tempo, anasalada e chorosa.


Foi a rápida olhada de Harry em direção às escadas, como se não soubesse como agir, que fez Ginevra ignorar o que julgava ser correto.


- Gostaria que eu subisse um minuto? Posso sentar com ela até você ter as coisas novamente sob controle.


- Não. Sim. – HArry deixou escapar um longo suspiro. Se não lidasse com Mione já, ela ligaria de novo. – Agradeço. – No limite das forças, atendeu ao telefone. – Mione.


Ginevra seguiu o brilho do abajur para encontrar o quarto de Lily. Encontrou-a sentada na cama, cercada de bonecas. Duas lágrimas escorriam-lhe pelo rosto.


- Quero meu pai – disse infeliz.


- Ele já vem. – Emocionada, Ginevra sentou-se na cama e abraçou Lily.


- Não estou me sentindo bem.


- Eu sei. Vamos, assoe o nariz.


Lily obedeceu e depois recostou a cabeça no peito de Ginevra. Suspirou, achando gostoso o peito acolchoado de Ginevra, diferente do peito duro do pai.


- Eu fui ao médico e tomei remédio, então não posso ir à reunião das bandeirantes amanhã.


- Não vai ser a única reunião e você poderá ir quando o remédio fizer você melhorar.


- Estou com catapora. – anunciou Lily, dilacerada entre o desconforto e o orgulho. – E estou quente e me coçando.


- Catapora é uma bobagem. – disse Ginevra confortando-a. Colocou os cabelos suados de Lily atrás da orelha.


Lily deu um sorrisinho.


- JoBeth teve a semana passada e Mikey também. Agora, não vou poder ter uma festa de aniversário.


- Você pode fazer a festa depois, quando todo mundo estiver bem de novo.


- Foi o que papai disse. – Uma nova lágrima caiu. – Não é a mesma coisa.


- Não, mas, às vezes, pode ser ainda melhor.


Curiosa, Lily olhou a luz brilhar na argola dourada na orelha de Ginevra.


- Como?


- Assim, você tem mais tempo para pensar em como vai se divertir. Gostaria de ir comigo para a cadeira de balanço?


- Sou grande demais.


- Eu não sou. – Enrolando Lily numa colcha, Ginevra a carregou até a cadeira branca de balanço. Tirou os bichinhos e colocou um coelho velho nos braços de Lily. – Quando eu era pequena e ficava doente, minha mãe me embalava numa grande cadeira de balanço que rangia e ficava perto da janela. Ela cantava músicas para mim. Não importava o quanto eu me sentia mal, mas, quando ela me embalava na cadeira de balanço, eu me sentia melhor.


- Minha mãe não me embalava na cadeira de balanço. – A cabeça de Lily doía e ela queria muito chupar o dedo, mas sabia ser muito grande para isso. – Ela não gostava de mim.


- Não é verdade. – Ginevra instintivamente abraçou mais forte a criança. – Aposto que ela amava muito você.


- Ela queria que meu pai me mandasse embora.


Comovida, Ginevra reclinou o rosto no topo da cabeça de Lily. O que podia dizer agora? As palavras de Lily tinham sido bastante diretas para considerá-las uma fantasia.


- Às vezes, as pessoas dizem coisas que não pensam, e depois se arrependem. Seu pai mandou você embora?


- Não.


- Está vendo?


- Você gosta de mim?


- Claro que gosto. – Ela balançou a cadeira, para a frente e para trás. – Gosto muito de você.


O balanço, o cheiro suave feminino e a voz acalmaram Lily.


- Por que você não tem uma filhinha?


A dor estava lá, profunda, sombria. Ginervra fechou os olhos para abafá-la.


- Talvez um dia eu tenha.


Lily enroscou os dedos nos cabelos de Ginevra, sentindo-se confortada.


- Você pode cantar como sua mãe fazia?


- Posso. E você vai tentar dormir.


- Não vai embora.


- Não. Vou ficar um pouco.


Harry as olhou da soleira da porta. Na luz fraca, pareciam tão lindas que seu coração ficou apertado: a criança de cabelos lisos nos braços da mulher de pele dourada, ruiva e cabelos encaracolados. Ouvia o som da cadeira de balanço ao mover-se para frente e para trás e a voz de Ginevra cantando antigas músicas folclóricas ucranianas de sua infância.


Isso o emocionou de forma tão intensa, tão absoluta quanto ter aquela mulher nos braços o emocionara. E ainda assim de um jeito tão diferente, tão calmo, que ele queria ficar parado ali olhando a noite inteira.


Ginevra levantou o rosto e o viu. Ele parecia tão esgotado que ela teve que rir.


- Ela dormiu.


Se suas pernas estavam bambas, ele esperava que motivo fosse ter subido e descido as escadas inúmeras vezes nas últimas 24 horas. Exausto, sentou-se na beira da cama.


Observou o rosto vermelho da filha, apoiado em paz na dobra do braço de Ginevra.


- Dizem que piora antes de melhorar.


- E isso mesmo. – Ela acariciou os cabelos de Lily. – Todos nós tivemos catapora quando criança. Incrível! Todos sobrevivemos.


Ele deixou escapar um profundo suspiro.


- Estou me comportando como um idiota.


- Não, você está muito fofo. – Ela o fitou ainda a se balançar, pensando como devia ter sido difícil para ele criar um bebê sem o amor da mãe. Muito difícil, pensou, e merecia crédito por garantir à filha felicidade, segurança e por não ter medo de amar. Sorriu de novo. - Toda vez que um de nós ficava doente quando criança, e ainda hoje, meu pai deixava o médico exausto, ia à igreja acender velas e depois recitava uma antiga reza cigana aprendida com a avó. Cercava por todos os lados.


- Por enquanto, só cansei o médico. – Harry conseguiu dar um sorriso. – Por acaso você se lembra da reza?


- Vou dizer por você. – Levantou-se com cuidado, com Lily nos braços. – Posso deitá-la?


- Obrigado. – Juntos cobriram-na com a colcha. – De coração.


- Sempre às ordens. – Ela olhou a criança adormecida e, embora o sorriso fosse sincero, começava a se sentir desconfortável. – Melhor ir. Pais de crianças doentes precisam repousar.


- Posso, ao menos, oferecer-lhe um drinque? – Ele estendeu o copo. – Que tal um Kool Aid? É do azul.


- Acho que dispenso. – Ela contornou a cama e dirigiu-se à porta. – Quando a febre baixar, ela vai ficar entediada. Aí, então, você realmente vai ter que dar duro.


- Que tal algumas dicas? – Ele pegou a mão de Ginevra e desceram juntos as escadas.


- Lápis-cera novos. Em geral, o melhor é o mais simples.


- Como alguém como você não tem uma penca de filhos? – Ele não precisou senti-la se contrair para saber ter dito a coisa errada. Podia ver a tristeza surgir e desaparecer de seus olhos. – Desculpe.


- Não precisa se desculpar. – Recobrada, pegou o casaco no corrimão da escada onde o pendurara. – Gostaria de visitar Lily de novo, se não se importar.


Ele pegou o casaco e voltou a colocá-lo no mesmo lugar.


- Se você não quer o negócio azul, que tal um chá? Eu gostaria de ter companhia.


- Está certo.


- Só vou... – Virou-se e quase colidiu com Vera.


- Eu preparo o chá. – disse Vera, dando uma última olhada para Ginevra.


- Sua empregada acha que eu tenho planos para você.


- Espero que não a desaponte. – disse Harry, conduzindo Ginevra à sala de música.


- Receio desapontar vocês dois. – Riu e caminhou até o piano. – Mas você deve estar ocupado. Todas as jovens na faculdade falam do dr. Potter. – Ela fez uma careta. – Você é um gatão, Harry. A opinião popular está igualmente dividida entre você e o capitão do time de futebol.


- Muito engraçado.


- Não estou brincando, mas é engraçado deixar você encabulado. – Ela sentou-se e deixou os dedos correrem pelas teclas. – Você compõe aqui?


- Costumava compor.


- É ruim não compor mais. – Ela tocou uma série de teclas. – A arte é mais do que um privilégio. É uma responsabilidade. – Tentava reproduzir a melodia. Com um som impaciente, balançou a cabeça. – Não sei tocar. Era muito grande quando tentei aprender.


Ele gostava de vê-la sentada ali, os cabelos caídos nos ombros, quase lhe cobrindo o rosto, os dedos repousando de leve nas teclas do piano no qual ele tocava desde criança.


- Se quiser aprender, eu ensino.


- Eu preferia que você compusesse uma música.


Foi mais do que um impulso, pensou. Hoje, ele parecia precisar de um amigo. Ela sorriu e estendeu a mão.


- Aqui, comigo.


Ele ergueu o rosto quando Vera trouxe uma bandeja.


- Pode deixar ali, Vera. Obrigado.


- Querem algo mais?


Ele voltou o olhar para Ginevra. Sim, queria algo mais. E muito.


- Não. Boa noite. – Ele ouviu os passos arrastados da empregada. – Por que está fazendo isso?


- Porque você precisa rir. Venha, componha uma música para mim. Não precisa ser boa.


Ele riu.


- Você quer que eu componha uma música ruim para você?


- Pode ser uma música horrorosa. Quando você tocá-la para Lily, ela vai tapar os ouvidos e dar um sorriso amarelo.


- Uma música ruim é tudo o que posso compor ultimamente. – Mas estava satisfeito em sentar-se a seu lado. – Se eu concordar, preciso que você faça o juramento de não contar a nenhum de meus alunos.


- Juro.


Ele começou a dedilhar as teclas, Ginevra interferindo vez por outra para acrescentar alguma nota, segundo sua inspiração. Não foi tão ruim quanto imaginava, considerou Harry tocando alguns acordes. Ninguém a consideraria brilhante, mas tinha um certo charme peculiar.


- Deixe-me tentar. – Afastando os cabelos, Ginevra tentou repetir as notas.


- Aqui. – Como às vezes fazia com a filha, colocou as mãos por cima das de Ginevra para guiá-las. A sensação era totalmente diferente. – Relaxe. – murmurou em sua orelha.


Ela bem que gostaria.


- Odeio fazer alguma coisa malfeita. – conseguiu dizer. Com a palma da mão firme por cima da dela, ele tentou se concentrar na música.


- Você está indo bem. – O cabelo suave e cheiroso tocou-lhe o rosto.


Enquanto se inclinavam sobre as teclas, não lhe ocorreu que ele não tocava piano há anos. Bem, tocara Beethoven, Gershwin, Mozart e Bernstein, mas por obrigação... Há muito tempo não se sentava diante das teclas por prazer.


- Não, não, um lá menor talvez.


Ginevra, teimosa, voltou a tocar um si maior.


- Gosto mais desta.


- Essa nota faz ficar dissonante.


- Mas é essa a intenção.


Harry sorriu para ela.


- Você quer colaborar?


- Você se sai melhor sem mim.


- Eu não acho. – O sorriso dele desapareceu. Segurou-lhe o rosto com a mão. – Não acho mesmo.


Não era isso que pretendia. Queria deixá-lo um pouco mais animado, ser sua amiga. Não queria despertar essas sensações nele, sensações que seria melhor ignorar. Mas elas estavam ali, pulsantes. Não importa quão intensa fosse sua força de vontade, ela não podia negá-las.


Mesmo o leve toque dos dedos em seu rosto a fazia desejar, ansiar, recordar.


- O chá está ficando frio. – Mas ela não se afastou, não tentou se levantar. Quando ele inclinou-se para beijá-la, apenas fechou os olhos. – Isso não vai nos levar a lugar nenhum.


- Já levou. – A mão de Harry moveu-se em suas costas, forte, possessiva, em contraste com o toque macio dos lábios. – Penso em você todo tempo, em estar com você, tocar você. Nunca desejei ninguém como desejo você. – Devagar, passou a mão em seu pescoço, em seu ombro, ao longo do braço até os dedos se entrelaçarem sobre as teclas do piano. – É como uma sede, Ginevra, uma sede constante. E, quando estou junto de você, sei que você também se sente assim.


Ela desejava negar, mas a boca de Harry percorria-lhe o rosto com avidez, provocante, até ela tremer de desejo. E ela desejava ficar abraçada com ele, daquele jeito. No passado, havia sido fácil fingir não precisar ser desejada. Não, ela não precisara fingir. Até agora, até ele aparecer, havia sido verdade.


Agora, de repente, como uma porta se abrindo, como a luz sendo acesa, tudo mudara. Ela ansiava por ele e o sangue corria acelerado nas veias só de saber que ele a desejava. Mesmo que por um segundo, disse a si mesma, as mãos agarrando-lhe os cabelos para puxar a boca ao encontro da sua. Mesmo que só por esse segundo.


A sensação voltara; aquele redemoinho de sensações que se formava no instante em que ficavam juntos. Rápido demais, sensual demais, palpável demais para ser tolerado. Maravilhoso demais para resistir.


Era como se ele fosse o primeiro, embora não fosse Era como se ele fosse o único, embora não fosse possível Quando ela se entregou ao beijo, desejou desesperadamente que a vida recomeçasse naquele momento, com ele.


Havia mais do que paixão. As emoções que a invadiam quase o engoliram. Havia desespero, medo e uma generosidade sem limites que o deixavam atordoado. Nada voltaria a ser simples. Ao admitir isso, uma parte dele tentou recuar, pensar, raciocinar. Mas o gosto dela, quente, potente, só o fez aproximar-se ainda mais da chama.


- Espere. – Pela primeira vez, ela admitiu a própria fraqueza e deixou a cabeça repousar em seu ombro. – Estamos indo rápido demais.


- Não. – Ele passou os dedos nos cabelos de Ginevra. – Já está levando anos.


- Harry. – Debatendo-se em busca de equilíbrio, ela sentou-se ereta. – Não sei o que fazer. – disse, devagar, fitando-o. – É importante, para mim, saber o que fazer.


- Acho que podemos chegar a uma conclusão. – Mas, quando ele voltou a tocá-la, ela se ergueu e se afastou.


- Não é simples para mim. – Irritada, puxou os cabelos para trás com as duas mãos. – Eu sei que pode parecer fácil, devido ao jeito como correspondi. Eu sei que é mais fácil para os homens. De alguma forma, vocês se envolvem menos.


Ele levantou-se com cuidado, propositalmente.


- Por que não me explica isso?


- Só quis dizer que sei que os homens acham atitudes, como essa, menos difíceis de serem justificadas.


- Justificadas? – repetiu, girando nos calcanhares. Como ele podia ficar zangado tão rápido, quando minutos atrás se sentia tão enfeitiçado? – Do jeito como fala, parece um tipo de crime.


- Nem sempre encontro as palavras exatas. – retrucou. – Não sou professora universitária. Não falei inglês até os 8 anos e não sabia ler até então.


Ele controlou a raiva ao observá-la. Os olhos dela estavam sombrios com algo mais do que raiva. Parada, imóvel, a cabeça erguida, mas ele não saberia dizer se a postura era de altivez ou autodefesa.


- O que isso tem a ver com o resto?


- Nada. E tudo. – Frustrada, dirigiu-se ao saguão para pegar o casaco. – Odeio me sentir tola, odeio ser tola. Não pertenço a este lugar. Não deveria ter vindo.


- Mas veio. – Ele a agarrou pelos ombros. O casaco escorregou e caiu no degrau inferior. – Por que veio?


- Não sei. Não importa.


Harry apertou-lhe o ombro, impaciente.


- Por que me sinto como se estivesse conversando com duas pessoas ao mesmo tempo? O que se passa em sua cabeça, Ginevra?


- Eu quero você. – disse, em tom apaixonado. – E não quero querer você.


- Você me quer. – Antes que ela pudesse escapulir, ele a puxou para mais perto. Não havia paciência no beijo, nem persuasão. Demorou um tempo até ela ter certeza de não ter mais nada a fazer. – Por que isso a aborrece? – murmurou, os lábios colados aos seus.


Incapaz de resistir, ela passou as mãos em seu rosto, emoldurando-o.


- Tenho minhas razões.


- Fale-me sobre elas.


Ela sacudiu a cabeça e, dessa vez, ao se afastar, ele a soltou.


- Não quero mudar minha vida. Se algo acontecesse entre nós, sua vida não mudaria, mas a minha poderia mudar. Quero ter certeza de que nada vai mudar.


- Essa conversa nos leva de novo àquela teoria de os homens e as mulheres pensarem diferente?


Ele pensou em quem teria magoado seu coração e não sorriu.


- Você parece mais inteligente. O que sinto por você já mudou minha vida.


Isso a assustou, porque a fez desejar acreditar.


- Sentimentos aparecem e desaparecem.


- Sim, é verdade. Alguns. E se lhe dissesse que estou me apaixonando por você?


- Eu não acreditaria. – A voz vacilou e ela curvou-se para pegar o casaco no chão. – E ficaria zangada com você por dizer isso.


- Talvez fosse melhor esperar até poder convencê-la. E se eu lhe dissesse que até conhecê-la não sabia me sentir solitário?


Ela abaixou o olhar, bem mais emocionada do que ficaria se ouvisse palavras de amor.


- Eu teria que pensar.


Ele voltou a tocá-la, apenas passando a mão em seus cabelos.


- Você reflete sobre tudo?


Os olhos eram eloqüentes ao fitá-lo.


- Sim.


- Então, reflita sobre isso. Não era minha intenção seduzir você. Não que eu não tenha pensado a respeito um bocado, mas não podia imaginar que acontecesse com minha filha doente no andar de cima.


- Você não me seduziu.


- Agora, você está tentando destruir meu ego.


As palavras a fizeram sorrir.


- Não houve sedução. O que implica em persuasão planejada. Eu não quero ser seduzida.


- Não vou me esquecer. De todas as maneiras, acho que não quero dissecar nossa relação como um estudante de música acerca de um concerto de Beethoven. Arruinaria o romance do mesmo jeito.


Ginevra voltou a sorrir.


- Eu não quero romance.


- É uma lástima. – E uma mentira, pensou, lembrando-se de como ela reagira ao receber a rosa. – Já que a catapora vai me manter ocupado por uma ou duas semanas, você vai ter tempo para pensar. Você vai voltar?


- Para visitar Lily. – Ela enfiou o casaco e rendeu-se. – E você.


 


Ginevra cumpriu a palavra. O que começou com uma passada rápida para trazer um presente de incentivo para Lily transformou-se, na maior parte, em cuidados com uma criança infeliz, cheia de erupções na pele e um pai exausto e histérico. Surpreendentemente, ela gostou e, nos dez dias seguintes, manteve o hábito de passar para visitá-los no intervalo do almoço para dar uma folga à ainda desconfiada Vera, ou depois do trabalho, para dar a Harry uma merecida hora de paz e calma.


Quanto ao romance, dar banho com permanganato numa menina cheia de coceira deixava muito a desejar. Apesar disso, Ginevra sentia-se cada vez mais atraída por Harry e cada vez mais apaixonada pela filha dele.


Ela viu-o fazer o possível para alegrar a paciente, desconfortável e triste em seu aniversário, depois o ajudou um bocado com um casal de gatinhos, presente pedido por Lily. Quando a coceira desapareceu e o tédio se instalou, Ginevra substituiu as histórias, pois a imaginação começava a falhar, com suas próprias histórias.


- Só mais uma história.


Ginevra cobriu a menina até o pescoço.


- Você disse isso três histórias atrás.


- Mas você conta umas muito boas.


- Elogios não vão levá-la a lugar nenhum. Já passou da minha hora de dormir. – Ginevra levantou a sobrancelha e olhou o grande relógio vermelho. – E da sua.


- O médico disse que eu podia voltar à escola na segunda-feira. A doença não está mais "fecciosa".


- Infecciosa. – corrigiu Ginevra. – Você vai ficar feliz em encontrar de novo as amigas.


- Mais ou menos. – Envergonhada, Lily brincou com a ponta da colcha. – Você vem me visitar quando eu não estiver mais doente?


- Acho que sim. – Ela curvou-se e ergueu um dos gatinhos, que miava. – E para ver Lucy e Desi.


- E papai.


Cuidadosa, Ginevra acariciou as orelhas do gatinho.


- Sim, suponho.


- Você gosta dele, não gosta?


- Sim. Ele é um ótimo professor.


- Ele também gosta de você. – Lily não contou ter visto o pai beijar Ginevra no pé da cama na noite anterior, quando eles acharam que ela já estava dormindo. Olhá-los despertou uma sensação esquisita no estômago dela. Entretanto, após um minuto, notou ser a sensação esquisita algo bom. - Você vai se casar com ele e morar com a gente?


- Bem, isto é uma proposta de casamento? – Ginevra conseguiu sorrir. – Acho ótimo que você queira, mas sou apenas amiga de seu pai. Como sou sua amiga.


- Se você morar aqui, a gente vai continuar amiga.


A criança era tão inteligente quanto o pai.


- Não vamos ser amigas se eu morar na minha casa?


- Acho que sim. – Ela fez biquinho. – Mas eu preferia que você morasse aqui, como a mãe de JoBeth mora como ela. Ela faz bolinhos.


Ginevra curvou-se esfregando o nariz nela.


- Então, você me quer aqui só por causa dos meus bolinhos?


- Eu amo você. – Lily atirou os braços em volta do pescoço de Ginevra e apertou-os. – Eu vou ser uma menina comportada se você vier.


Surpresa, Ginevra abraçou a menina bem apertado e balançou-a.


- Ah, meu bebê, eu amo você também.


- Então, case com a gente.


Colocado dessa maneira, Ginevra não tinha certeza se devia rir ou chorar.


- Eu não acho que casar agora seja a solução para nenhum de nós. Mas vou continuar sendo sua amiga, visitar você e contar histórias.


Lily deu um longo suspiro. Ela sabia quando um adulto tentava esquivar-se e percebeu ser mais inteligente recuar um passo. Especialmente quando já tomara sua decisão. Ginevra era exatamente a mãe que queria. E havia um bônus extra: Ginevra fazia seu pai rir. Lily decidiu, naquele instante, que seu desejo de Natal mais secreto e solene seria que Ginevra se casasse com seu pai e trouxesse para a casa uma irmãzinha.


- Promete? – pediu Lily.


- Juro. – Ginevra beijou-lhe a sua face. – Agora, é hora de dormir. Vou procurar seu pai para ele subir e lhe dar um beijo de boa noite.


Lily fechou os olhos, os lábios curvados num sorriso misterioso.


Com o filhotinho no colo, Ginevra desceu as escadas. Pusera de lado a contabilidade e o inventário mensal da loja para visitá-los hoje. Ia ficar acordada até altas horas, decidiu, esfregando o gatinho contra o rosto.


Teria que tomar cuidado com Lily e consigo mesma. Uma coisa era ter se apaixonado pela pequena, mas outra bem diferente era a menina amá-la o bastante para querê-la como mãe. Como esperar de uma criança de 6 anos a compreensão de que, com freqüência, os adultos tinham problemas e medos que lhes tornavam impossível pegar uma estrada simples?


A casa estava quieta e a luz da sala de música, acesa. Ela colocou o gatinho no chão, sabendo que ele correria em disparada para a cozinha.


Encontrou Harry na sala de música, deitado no sofá de dois lugares, as pernas penduradas para o lado de fora. De moletom surrado e descalço, lembrava apenas vagamente o brilhante compositor e professor de música. Também não se barbeara, e Ginevra foi forçada a admitir que a sombra da barba apenas o deixava ainda mais atraente, principalmente porque os cabelos estavam desalinhados, sem ver o toque de um barbeiro há uma ou duas semanas.


Dormia profundamente, um travesseiro amassado embaixo da cabeça. Vera havia lhe contado que Harry permanecera duas noites acordado, durante o pior período de febre e desconforto da filha.


Tinha conhecimento, também, que ele fizera malabarismos para respeitar os compromissos na faculdade, alternando-os com idas em casa durante o dia. Mais de uma vez, em suas visitas, encontrara-o ocupadíssimo com o trabalho.


No início, via-o como um homem mimado, cujos talentos e posição herdara. Talvez ele tivesse nascido com talento, pensava agora, mas dera duro tanto por ele quanto pela filha. Não havia nada que admirasse mais num homem.


Estou me apaixonando por ele, admitiu. Por seu sorriso e seu temperamento, sua devoção e sua energia. Talvez, quem sabe, um dia pudessem dar algo um ao outro. De forma cautelosa, cuidadosa, sem promessas.


Ela queria ser amante dele. Nunca antes desejara tanto algo. Com Miguel, simplesmente acontecera, atordoando-a, uma montanha-russa, para depois destruí-la. Não seria assim com Harry. Nada voltaria a feri-la tão profundamente. E com ele havia uma chance, apenas uma, de felicidade.


Não deveria agarrá-la? Movendo-se com lentidão, desdobrou a manta de lã azul-claro, dobrada nas costas do sofá, para cobri-lo. Fazia muito tempo que não se arriscava. Talvez a hora houvesse chegado. Curvou-se e roçou os lábios na testa dele. E o homem também.


 


 


 


 

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