Dia das Bruxas



Capítulo 18. Dia das Bruxas


... até que não agüento mais, porque quando todo mundo começa a me chatear, fico irritada, e depois triste, a parte má do lado de fora e a boa do lado de dentro, e tento achar um modo de me transformar no que gostaria de ser e no que poderia ser se... se não houvesse mais ninguém no mundo.
- ultimas palavra de O Diário de Anne Frank


~~~


"Quanto tempo ainda vai durar?"


Foi o pensamento que ocorreu a Lílian enquanto observava Tiago vestir a capa de viagem para sair. O sol lá fora se erguia quente sobre o jardim, mas para ela o mundo estava sempre frio, sempre vazio, como se vivesse um dia após o outro arrastada por um corpo que ainda não tinha consciência de seus dias contados.


Harry havia tido uma noite ruim e agora dormia tranqüilamente em seu quarto após excluir qualquer possibilidade de um sono reparador aos pais. Só ela e Tiago estavam no quarto, ela esparramada numa poltrona, se sentindo frágil e pequena diante de seus próprios pensamento, e Tiago se vestindo para sair.


- Eu pensei que íamos ter uma festa hoje... - murmurou a jovem.


Tiago lhe lançou um olhar curioso, e então se virou para procurar a varinha entre as roupas que acabara de trocar.


- Talvez tenhamos, mais tarde - respondeu, voltando a mirar a esposa. E se deu conta do quanto ela parecia fraca, os olhos verdes, sempre tão brilhantes, agora estavam apagados e a cabeça pendia para trás no encosto da poltrona azul-turquesa. - Tudo bem? - perguntou com a voz rouca.


Era 31 de outubro, dia das Bruxas. Dia de todos se esforçarem para sorrir e se divertir um pouco nas festas. Há três dias atrás, o velho Aberforth aparecera na porta da casa dos Potter com uma pilha de caixas contendo dezenas de garrafas de cerveja amanteigada.


- Você tem certeza que podemos ficar com tudo isso? - Lílian olhou para o velho entrevado parado junto à porta. Ele tinha um ar rabugento, com uma espessa cabeleira e barbas grisalhas. - Você sabe, Aberforth, a herança de Tiago está retida no banco, nós não podemos pagar por...


O bruxo meramente sacudiu as mãos e respondeu:


- Tenho sim. Quero apenas que se divirtam. É reconfortante pra velhos como eu que os jovens ainda consigam pensar em festas. Nós precisamos de uma agora mais do que nunca... - e, olhando para o jardim vazio, completou: - Além do mais, eu prefiro dar minhas coisas a esperar que comensais venham levá-las.


Dessa forma, Lílian e Tiago estavam planejando reunir um pequeno grupo de amigos em casa, mas sabiam que a comemoração estaria mais ligada à melancolia do que à alegria da data. Eles mesmos tinham a nítida sensação de que estavam sendo ridículos, comemorando apenas por comemorar, mas não havia muito mais que pudessem fazer.


- Aonde você vai? - a voz dela soou ainda mais fraca.


- Dumbledore pediu pra eu ir falar com ele.


Lílian levantou o rosto e olhou para o marido, suplicante. "Eu quero ficar com você...", era como se ele pudesse ler o pedido mudo nos olhos verdes da esposa. Ultimamente era só assim que os dois conversavam - com os olhos -, porque Lílian já quase não falava mais. Era como se tivesse medo de proferir palavras.


Mas, à medida que Tiago, pacientemente, ouvia suas palavras inaudíveis, passou a entendê-la de uma maneira que nunca tinha entendido antes. A cada segundo do dia, ele podia ver a tristeza de Lílian aumentar, mesmo quando ela não derramava lágrimas. Ele era capaz de ouvir sobre o fim da esperança na recuperação daquele mundo miserável da voz silenciosa dela. E sobre tantas tragédias que não poderiam ter sido previstas por ninguém. Mas, acima de tudo, ele a via viver, por mais que se sentisse esmagada pela fatalidade, Lílian continuava a viver e era só isso que lhe dava forças para sair de casa dia após dia sem saber se ia voltar.


E ele via o quanto ela queria que ele ficasse, mas não podia simplesmente deixar Dumbledore esperando quando sabia que seu velho professor jamais o incitaria a sair de casa sem um motivo bastante forte.


Tiago abotoou o último botão da capa e saiu sem olhar para Lílian, uma culpa enorme o seguindo como uma nuvem cinzenta.


Assim que a capa esvoaçante do marido desapareceu pela porta do quarto, Lílian fechou os olhos contra as lágrimas e pôde senti-las escorrendo sob suas pálpebras, traçando linhas quentes em sua face.


~~~


- Você é minha, Lílian Evans, e eu nunca a abandonarei! É uma promessa - um Tiago Potter de dezessete anos estava ajoelhado à sua frente em meio ao alvoroço da comemoração da vitória grinfinória na taça quadribol. - Não importa o que aconteça, eu sei que serei feliz se puder te olhar assim para o resto dos meus dias...


Lílian sentiu o rosto esquentar rapidamente e murmurou um "sim" inaudível, de modo que os estudantes ao redor tiveram que deduzir a resposta ao pedido de casamento que Tiago fizera minutos antes - o que não foi difícil, porque o Maroto se levantou num salto e ergueu a ruiva no ar, girando loucamente como se não houvesse ninguém por perto.


- Você me libertou, Tiago - ela sussurrou junto ao ouvido dele.


- Não... não fui eu que te libertei - ele a afastou para poder mirar seu rosto. - Apenas te amei como você precisava.


Lílian lhe lançou um olhar reprovador, como sempre fazia quando ele vinha com sua mania de auto-congratulação.


- Eu não precisava - respondeu ela, desdenhosamente.


Os braços de Tiago se afrouxam em torno de sua cintura e ela quase pôde rir por dentro ao constatar que não tinha perdido a capacidade de ser cruel com ele quando era preciso.


Mas não era esse o caso agora. Então a garota envolveu o rosto fino de Tiago entre as mãos pequenas e deu-lhe um beijo estalado.


- Eu não precisava de você, eu preciso de você!


Ele levantou o rosto, e os olhos dos dois se encontram.


- Você sabe que nós somos dois loucos, não sabe? - perguntou Lílian, mas sua voz foi abafada por uma série de estouros e, em seguida, centenas de faíscas coloridas se espalharam pela sala comunal, ricochetando nas paredes e cascateando sobre as cabeças dos grinfinórios.


Ele deu uma risada sonora e a puxou para um novo rodopio.


~~~


"Você está arrependido de ter casado comigo, Tiago?"


- Esqueci minha capa da invibili... - Tiago interrompeu a frase no meio ao se deparar com a esposa encolhida na poltrona, grossas lágrimas vertendo pelo seu rosto, uma aura de desconsolo tão sólida que quase se podia tocar.


Ele avançou pela salo quarto e a envolveu nos braços, como faria com uma criança.


- Eu sinto muito - sussurrou ela, entre os soluços. - Sinto muito por você ter que ficar perto de uma pessoa covarde como eu.


- Você não é covarde - falou ele. - Você é muito forte, Lílian, você sabe que é.


- Eu morreria... eu prefiro morrer a perder você ou Harry.


- Não fale desse jeito.


- Eu falo porque não poderia viver sem vocês dois. Vocês são a minha vida.


- Você não vai ter que viver sem a gente, vamos estar pra sempre juntos, lembra? - Tiago passava os dedos pelas bochechas de Lílian, secando as lágrimas.


- Desculpe... - sussurrou ela, entrelaçando os dedos dele aos dele.


- Não precisa pedir desculpas.


- Preciso sim... eu fui tão dura com você, você não... você nunca mereceu.


- Até que eu merecia sim - ele forçou um sorriso consolador. - Se não fosse você pra murchar a minha bola, seria aquele idiota convencido até hoje.


- Eu sempre gostei de você, mesmo quando era um idiota convencido... - ela sorriu tristemente, mais lágrimas vertendo em seu rosto pálido. - Eu só achava que, se sempre estivesse sozinha, ia acabar me acostumando e não teria medo me machucar. Quando percebi o que realmente sentia por você... eu... eu tive medo de tudo mudar e perder você se me aproximasse.


- Nada vai mudar. Estaremos sempre juntos - falou Tiago, afagando os cabelos da esposa.


- Tenho que te dizer uma coisa - ela empurrou Tiago e ficou ereta na poltrona, mirando o fundo dos olhos castanhos do madido. - Eu sinto muito por ter cedido e voltado atrás, mesmo quando no fundo sabia exatamente como ia acabar e quanto sofrimento isso nos traria.


Tiago maneou com a cabeça, parecendo não saber do que ela falava. Até que a confusão de Gweena Tirésias lhe veio a memória e ele entendeu. E não soube o que dizer. Lílian estava dizendo que tomara a decisão errada ao voltar pra ele há meses atrás e Tiago de repente sentia como se algo enorme o estivesse esmagando.


Ela tocou seu rosto com as pontas dos dedos finos e completou:


- Mas eu também sabia que seria extremamente feliz todo o tempo que passasse ao seu lado, e nunca me decepcionei. Eu fui egoísta, eu admito, mas eu te amo tanto... - ela afundou o rosto no peito de Tiago, abafando os soluços. - Eu quis acreditar com todas as minhas forças que o amor sozinho poderia nos salvar, mas sei que não vai.


- Você não pode saber.


- Eu posso - Lílian o mirou com os olhos brilhantes de lágrimas. - É por isso que eu queria deixar você. Antes que tudo chegasse ao fim, eu queria que você se afastasse de mim. Pelo menos assim o meu poder poderia trazer alguma coisa boa. Mas você me fez lutar e desejar continuar vivendo. Você me fez querer amar até o final. Então, por favor, fique comigo até o final.


Ela abraçou Tiago com força e deixou as lágrimas rolarem livremente.


- Eu nunca te contei, - ela falou, após algum tempo - mas tive uma visão da nossa família no sexto ano. Foi assim que a idéia de ser mãe começou a tomar forma na minha cabeça. Mas na época eu achava que ia morrer de vergonha se você soubesse, você sabe, nós ainda nem estávamos juntos e eu nunca tinha... - ao dizer isso, Lílian ficou vermelha e abaixou os olhos. - Depois... veio a guerra, e eu não quis nem mais cogitar a idéia. Mas Harry resolveu vir de surpresa, e eu tive muito medo por ele, ainda tenho... Por que está sorrindo? Eu estou falando aqui de uma coisa séria e...


- Quero ter outro filho com você - antes que ela dissesse qualquer outra coisa, Tiago a puxou para junto de si e escorregaram da poltrona, caindo abraçados no tapete.


Nenhum deles queria saber nada sobre o futuro. Quase todos os seus amigos já tinham ido. Por que eles tinham sido poupados? O que tinham de tão especial pra continuar vivendo enquanto tantos caíam?


Não sabiam. Mas, naquele dia, sem trocarem uma única palavra, os dois decidiram esquecer - esquecer o mundo fora da casa em Godric's Hollow, o passar das horas, as pessoas esperando, a ameaça de Voldemort e a guerra que se desenrolava.


Naquela manhã de 31 de outubro de 1981, Lílian e Tiago dividiram um amor que, pela primeira vez, não estava preso a qualquer sentimento terreno, fosse ele desejo, prazer, alegria ou sobrevivência. Por isso ela chorou e, pela primeira vez, ele entendeu suas lágrimas. Era como se a felicidade que sentissem fosse um crime.


Mesmo assim, não lhes restavam muitas opções além de se prenderem um ao outro como se fossem realmente, mais que inseparáveis, indivisíveis, e ignorar a aproximação do fim, o fim de tudo e o fim de seu amor, com a esperança de que o tempo que passassem juntos pudesse durar para sempre.


Foi a primeira vez que Tiago faltou com um compromisso com Dumbledore. E ele não pôde deixar de se perguntar por que isso o deixava tão feliz.


~~~


- Eu já disse, Mestre, ele é inútil. Se o senhor permitir, eu o mato agora mesmo - falou Bellatrix, mirando Rabicho encolhido no chão como um rato acuado.


Voldermot não disse nada. Matinha-se quieto na poltrona, com o queixo apoiado na mão ossuda.


- Eu... - guinchou Rabicho. - Eu sei onde eles estão, eu sei! Já estive lá, eu juro.


- E do que isso ia me adiantar? - sibilou a voz aguda de Voldermot. - Sabemos que eles estão protegidos pelo Fedelius, mesmo se você nos contasse, não conseguiríamos encontrá-los.


- O que devemos fazer então, Mestre? - perguntou Malfoy, num tom untoso.


- É óbvio que Sírius Black é o fiel do segredo dos Potter. Capturem-no e terão alguma chance - interveio Bellatrix, sorrindo largamente e com os olhos brilhando de expectativa. A varinha girava vagarosamente em seus dedos finos, ansiosos por poder dar um fim em Pedro. Mas toda a alegria foi varrida de seu rosto pelo novo apelo de Pedigrew:


- Sírius? Vocês caíram mesmo nesse truque? Acham que eles fariam algo assim tão óbvio? - e forçou um riso esganiçado.


Belatrix perdeu a paciência e seus olhos se acenderam em fúria enquanto ela avançava para o bruxo com a varinha erguida:


- Ah, é, senhor Pedigrew? - sibilou ela, com o rosto perigosamente perto do dele - Então suponho que você saiba quem é o fiel do segredo dos Potter.


- Suponho que sim - confirmou, com a voz trêmula.


- Então diga. Quem é o fiel do segredo?


- Eu mesmo.


~~~


- Lílian, escute - Tiago segurou Lílian pelos ombros. Ela olhava ao redor alucinada, o céu lá fora tinha escurecido subitamente em pleno dia, haviam sido traídos e Voldermot se aproximava. Nem se dava ao trabalho de se esconder, caminhava calmamente pela calçada em frente à casa, emanando sua energia negra em todas as direções.


- Eu sabia, eu disse... - gaguejou ela.


- Eu sei! - ele tampou a boca dela com a mão. - Agora escute: não importa o que me aconteça, você tem que sobreviver. Eu jamais conseguiria me perdoar se algo de mal acontecesse com você e com Harry.


Lílian sacudiu a cabeça com ar de desolamento e afastou as mãos de Tiago.


- O que você quer que eu faça? - perguntou, escondendo o rosto nas mãos.


- Eu não vou desistir. Vou ganhar tempo, você sobe e pega o Harry.


- Você prometeu... - Lílian engoliu os soluços e olhou revoltada para o marido. - Nós prometemos ficar juntos até o fim!


- Lílian, é preciso!


- Isso não é justo! Como eu vou continuar vivendo sem você?


- Harry - falou Tiago, num fio de voz.

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