Dor



Capítulo 19. Dor


Acreditamos na felicidade eterna
E, muitas vezes, ela não passa de um pequeno tempo
Tempo suficiente para deixar uma saudade infinita
- Quando os sonhos acabam, Neon Chihiri


- Não fale sobre tudo acabar, eu quero viver - murmurou Tiago Potter, envolvendo mais uma vez Lílian num abraço apertado. A sala escura parecia se erregelar cada vez mais e a luz vinda de brasas quase mortas na lareira imprimia sombras inexpressivas no assoalho de lajotas coloridas.


Lílian retribuiu o abraço do marido e não conseguiu deixar de pensar que poderia ser a última vez. Ele tinha a voz embargada, mas queria parecer forte. Forte para ela. Forte para Harry. O nome ainda pairava na escuridão da sala fria, sua esperança e sua condenação. Por causa dele tinham passado os últimos meses em uma espécie de prisão domiciliar, tinham sentido todo tipo de impotência, tinham lutado e acreditado cegamente e, por causa dele agora, teriam que se separar.


- Vou ficar com você até o fim. Essa foi a minha promessa e nada que aconteça vai mudar isso. - Lílian o ouviu dizer em seu ouvido. Então afastou-a e, olhando bem em seus olhos verdes, falou: - Agora leve o Harry e vá!


- Então... eu tentarei proteger o Harry - ela disse. - Eu tentarei salvá-lo. Mas... Voldemort não vai te poupar, ele vai acabar matando você. Se isso acontecer...


- Eu estarei esperando por você. Agora corra, Lílian! Eu o atraso - Tiago apertou a mão dela com uma força que chegava a machucar. Ela o olhou no fundo dos olhos, como se quisesse gravar na memória o tom castanho-esverdeado, e lhe deu um beijo estalado, antes de correr escada acima em direção ao quarto de Harry.


- Até logo.


Ela andou em paços rápidoso, pisando em falso várias vezes na corrida desesperada pelo corredor do primeiro andar. Não queria pensar, não queria imaginar o que estava prestes a acontecer. Ouviu vozes gritando no térreo:


- Então ouça! Não importa o quão insignificante isso seja, nós ainda estamos vivos... - a voz de Tiago ressoava fazendo ecos nas paredes gastas da velha mansão, mas foi imediatamente abafada por uma gargalhada sinistra.


Repentinamente, os joelhos de Lílian cederam, como se tivesse perdido a noção exata de onde estava o chão. Ela cambaleou e teve que se apoiar na parede. Olhou para os degraus que levavam para o andar debaixo, tentando compreender o que tinha acontecido. Então se deu conta do enorme vazio que sentia por dentro, como se algo que sempre estivera ali houvesse simplesmente sumido... e soube que Voldemort acabara de matar Tiago.


Colocou-se novamente de pé e se apressou em direção ao fim do corredor. A porta se abriu sem que ela a tocasse e fechou à sua passagem. Ela deparou com Harry de pé no berço, sorrindo inocentemente com a presença da mãe. Vestia um macacão azum claro com um pomo-de-ouro bordado no peito e as mãozinhas se projetavam para frente pedindo colo.


Esbaforida, Lílian se adiantou para o berço e tomou nos braços o bebê, um segundo antes da porta voltar a se escancarar com um baque surdo.


Lílian olhou ao redor desorientada, esperando pelo que sabia que viria a seguir. A silhueta sinistra deu um passo para dentro, se projetando contra a luz fraca que vinha do corredor. Ela estreitou o abraço e Harry começou a choramingar assustado.


- O Harry não, o Harry não, por favor, o Harry não! - gritou, recuando para a parede à medida que a figura sombria avançava em sua direção.


- Afaste-se, sua tola... Saia da frente! - sibilou, a voz fina e dissimulada.


- Não, o Harry não, farei qualquer coisa! - Lílian se lembrava de ter tido certeza do que deveria ser feito quando presenciara a mesma cena em sua visão. Mas agora sua mente estava anuviada, não tinha sua varinha, não havia nada que pudesse fazer.


- Afaste-se. Afaste-se, menina.


- Não, por favor, não! - tinha que haver alguma coisa, havia prometido a Tiago.


"Agora ouçam isso... esse é o tipo de magia muito antiga, não é necessário nem varinha para fazer. Basta o desejo pra que se realize... não, não é tão fácil... você tem que realmente querer, com cada fibra desesperada da alma concentrada nisso..."


Lílian abriu os olhos e mirou Voldemort através da penumbra, o par de olhos vermelhos a espiava com a varinha erguida, um facho de luz esverdeada se projetando da ponta. E foi então que ela finalmente entendeu o que deveria fazer. Enfim, tinha chegado a sua vez.


"Espere por mim, Tiago. Logo estarei aí com você..."


Abraçou Harry com todas as forças que lhe restavam, se agarrando desesperadamente à última fagulha de esperança que ainda havia nela. Sim, Harry ia viver, porque Lílian podia fazer isso.


"Me perdoe, filho... Eu nunca vou te esquecer, eu te amei muito. E obrigada. Obrigada por fazer meus últimos dias repletos de felicidade."


Um raio atravessou o pequeno espaço entre Lílian e o Voldemort e ela não conseguiu ver mais nada, um nevoeiro claro e denso rodopiou com velocidade a sua volta. A próxima coisa que sentiu foi a impressão de flutuar enquanto se desprendia de tudo, ao mesmo tempo em que deixava de sentir Harry em seus braços.


O choro do bebê ainda ecoava estridente no quarto, ele com as pequenas mãos agarradas aos cabelos ruivos da mãe, inerte, quando Voldemort brandiu sua varinha novamente - e se arrependeu. Todo o quarto foi destruído por uma onda de choque, assim como toda a casa que o continha, os fragmentos voando como se carregados por um furacão, até só restar um par de olhos verdes, brilhando na escuridão, e um vento agourento, como se algo estivesse escapando.


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Sírius abriu os olhos e se viu em meio a um verde infinito, banhado pelo sol ofuscante. Ele olhou ao redor, procurando algum sentido naquilo tudo, quando percebeu três balizas com aros na extremidade direita do verde. Havia três balizas semelhantes na extremidade oposta e ele teve a súbita consciência de que estava descalço e que seus pés tocavam algo irregular, como grama alta. Estava no centro do gramado de um campo de quadribol de proporções gigantescas.


Um forte vento começou a soprar e ele pôde sentir claramente o cheiro adocicado misturado com terra molhada, grama e vassouras de corrida. Sírius procurou a origem do aroma e se deparou com uma adolescente vestindo uma capa preta esvoaçante que se confundia com os cabelos abundantes caídos sobre o rosto, agitados pelo vento - Marlene McKinnon. Ela apenas ficou calada, mirando-o com um olhar indiferente como se não o reconhecesse.


- O que há com você, Marlene? - ele ouviu sua voz ecoar nos limites invisíveis do campo. - Não nos vemos há tanto tempo e isso é tudo que você faz?


O vento aumentou e Marlene foi erguida no ar. Ela abriu a boca e sibilou algo que ele não pôde entender, antes de seu corpo se dissolver no vento como se fosse feito de areia fina.


- Sírius, o que você está fazendo aí?


Sírius Black acordou num pulo, a lembrança do sonho com o campo de quadribol desaparecendo rapidamente de sua mente. Ele olhou mau-humorado para a silhueta esguia que se projetava contra a luz alaranjada da lareira.


- Dumbledore me pediu pra vir ver como você estava - a figura deu um passo à frente e ele pôde divisar os cabelos crespos muito volumosos que se erguiam como uma nuvem em torno do chapéu pontudo azul-claro. - Você está bem? Estava falando coisas enquanto dormia.


- Eu... eu estou bem, Alice - resmungou Sírius, ao que a bruxa ergueu a varinha, que se acendeu automaticamente, a luz amarelada destacando as sardas no rosto muito redondo.


Alice o mirou desconfiada e então contornou a poltrona em que ele ainda se estirava, bocejando sonolento, e mirou o céu sem estrelas através do vidro empoeirado da janela.


- Tem alguma coisa errada... - murmurou, mais para si mesma do que para Sírius. - Tiago não foi ao encontro com Dumbledore essa manhã, todo mundo está preocupado.


- Por que simplesmente não dão uma espiada na lareira deles pra ver se está tudo bem? - perguntou ele,bocejando largamente e se espreguiçando como um cão sonolento.


- Esse é o problema - Alice lhe lançou um olhar apreensivo. - A lareira deles parece ter sido desligada da rede de flú... Ou isso, ou... ou ela não existe mais.


Ao ouvir isso, Sírius saltou da poltrona como se tivesse levado um choque, procurou a varinha no meio das almofadas cor-de-abóbora bastante desbotadas e se dirigiu para a lareira. Ignorando totalmente a expressão de surpresa da bruxa, ele atirou um punhado de pó de flú no fogo, que instantaneamente ficou esverdeado, e passou por ele, dormente às chamas que lambiam seu corpo.


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- Aconteceu alguma coisa, professor? - perguntou Hagrid por entre as barbas escuras, desgrenhadas. Usava um gorro cinza sobre a cabeça maciça e uma camisola de algodão desbotada. Seus olhos de besouro estavam parcialmente fechados e bocejava largamente enquanto posicionava um par de toscas xícaras brancas na mesa de madeira escovada. Lá fora o sol não dava sinal de estar nem próximo de nascer.


Dumbledore se mostrava inquieto, tinha o chapéu torto sobre os cabelos prateados e uma expressão de cansaço muito incomum para o usualmente otimista e cativante diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.


- Sim, aconteceu - respondeu. Hagrid esfregou os olhos e se sacudiu como que tentando espantar o sono e começou a encher o bule com água de uma chaleira. - Eu fui avisado de que aconteceu algo terrível.


O guarda-caça parou imediatamente o que estava fazendo no meio e arregalou os minúsculos olhinhos brilhantes para Dumbledore. Entrementes, o bule de chá transbordava água fervente sem que o meio-gigante percebesse.


- Q-quem foi... dessa vez...? - gaguejou. A água quente escorregou pela mesa e queimou sua mão, fazendo-o parar de despejar água da chaleira no bule.


- Lílian e Tiago Potter - murmurou Dumbledore, com um longo suspiro.


Hagrid se deixou cair na cadeira com um estrépido que pareceu sacudir a cabana inteira na orla da floresta e empurrou para Dumbledore uma xícara cheia de água quente com açúcar.


- Como ele conseguiu? Vocês não tinham...?


- Não tenho certeza, preciso descobrir primeiro. Mas antes preciso lhe pedir um grande favor. Foi por isso que tive que vir tão cedo.


Hagrid fungou alto e esfregou a manga do pijama nos bigodes selvagens antes de murmurar:


- C-claro, q-qualquer coisa que precisar, professor... - tomou um grande gole do suposto chá e fixou os olhos de besouro num ponto remoto da parede, desolado.


- Preciso que vá até Godric's Hollow e pegue o Harry.


- Harry? - Hagrid saltou na cadeira. - O bebê? Mas ele não...?


- Tudo indica que ele está bem. Mas a casa deve ter sido totalmente destruída. É preciso tirá-lo de lá antes que os trouxas cheguem...


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Hagrid aparatou em frente de onde deveria estar o jardim bem cuidado da casa de Lílian e Tiago. As flores ainda estavam lá, assim como o gramado verde e o velho salgueiro com um balanço de madeira. Tudo transmitiria a mesma atmosfera de paz de sempre se não fosse pelo fato de que a fachada da casa jazia tombada sobre o caminho do jardim.


Tudo que restavam eram escombros do que um dia fôra o luxuoso casarão de uma das mais tradicionais famílias bruxas do Reino Unido.


Consternado, Hagrid ficou vários minutos parado diante da tragédia, fungando e esfregandoos olhos diminutos sem parar. Foi quando viu uma silhueta sair de um buraco nos escombros e se mover agilmente de um lado a outro, como se procurasse algo. Ele franziu as sobrancelhas e forçou a vista para reconhecer Sirius Black, em vestes imundas, revolvendo os restos da casa incansavelmente.


Sirius o percebeu antes que ele se manifestasse. O jovem tinha um semblate sério, como se sua mente estivesse a mil enquanto seu corpo se concentrava no trabalho.


- Dumbledore ficou sabendo? - perguntou o rapaz, antes de qualquer cumprimento ou sinal de cordialidade.


Hagrid apenas acenou com a cabeça e se pôs a ajudar Sirius na busca. Em pouco tempo, tinham encontrado o corpo de Tiago, pálido, mas sem nenhum ferimento. O corpo de Lílian foi encontrado quando o sol começava a lançar seus primeiros raios na vila, tingindo o céu de rosa-claro. Ela ainda tinha os braços em volta de Harry, que se mechia incomodado. Tinha o pequeno rosto muito vermelho e parecia ter chorado por tanto tempo que tudo que conseguiu foi agitar os pequenos braços na direção de Sirius assim que o viu. Um machucado profundo cortava verticalmente sua testa.


Sirius aninhou o afilhado junto ao ombro e ficou tentando fazê-lo se acalmar, mas Harry não parava de jogar olhares chorosos para a mãe como se pedisse uma explicação.


- Melhor levá-lo ao St. Mungos. Pode ser que esse machucado seja sério - falou Sirius, afagando a cabeça de Harry.


- Não - respondeu Hagrid. - Dumbledore me pediu para levá-lo à casa dos tios assim que o encontrasse.


- Tios? - Sirios lançou um olhar ao guarda-caça e depois a Harry, pensando em como o filho de seus amigos ia ser recebido na casa de Petúnia Dursley. - Você não quer dizer aquela irmã maluca da Lílian, quer? Ela ODEIA bruxos,devia ver como ela se comportou no noivado de Lílian e Tiago, parecia que queria nos matar com a faca de destrinchar o assado!


Mas Hagrid estava impassível, sempre refutando os argumentos de Sirius com as mesmas palavras:


- Estou seguindo as ordens de Dumbledore.


- Ok - cedeu Sirius, finalmente, passando o afilhado aos braços macissos do gigante. - Você pode levar a minha moto se quiser. Está lá nos fundos. Não preciso mais dela.


Hagrid assentiu e carregou Harry para o quintal do casarão, onde a grama aparada era subitamente interrompida pelo início de uma floresta fechada. Do outro lado das árvores, Sirius sabia, havia uma clareira aberta magicamente para servir de campo para jogos de quadribol. O quintal e a floresta atrás da casa dos Potter tinham sido provavelmente os lugares onde Sirius mais se divertira na vida - exceto, talvez, pelas noites de lua cheia em Hogsmead.


Hagrid montou na gigantesca motocicleta de Sirius e, pela primeira vez, ela pareceu ter se ajustar ao tamanho de seu condutor. Ele acomodou Harry na frente, escondendo-o dentro do casaco como um embrulho, só deixando o rosto pálido do menino para fora.


O gigante acenou para Sirius e Harry imitou o gesto, sacundindo a pequena mão, rindo brevemente para o padrinho e mostrando os dentes pequeninos. Sirius beijou o rosto do afilhado e, em seguida, um ronco alto e forte cortou o silêncio da madrugada e a moto empinou para cima, levando para longe Hagrid e aquela criança que em pouco tempo estaria sendo chamada de "o menino que sobreviveu".


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N/A: O trexo do início do capítulo é parte de um poema que eu vi num forum que participava. Gravei no pc, mas não sei o nome de verdade do autor. De todo modo, encontrar esse poema um dia foi crucial pra que essa fic existisse, pq o título dele simplesmente era o título perfeito pra a fic n.n"
Quando os sonhos acabam - a história de uma geração que não teve tempo de sonhar.

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