Capítulo 8



Aquela madrugada prometia ser tediosa para os cinco comensais encarregados aquela noite de ficar na parte externa da cela de Harry Potter para vigiá-lo e não deixar que escapasse. Potter era tão apático, nem mesmo se irritava com os comentários maldosos que lhe lançavam. Vivia sempre num mundo estranho e distante e nada o fazia sair. Tudo prometia que seria apenas mais uma madrugada qualquer...


Um deles decidiu virar-se e ver como estava o prisioneiro. Intrigava-se cada vez que o fazia, pois via-o sempre deitado no chão frio de pedras, olhos fechados, os lábios dele mexendo-se freneticamente, formando o que deduziu ser uma única e repetitiva frase. No entanto, não era um exímio leitor de lábios para saber o que ele falava sem produzir som.


Foi por estar a observá-lo que não assustou-se com tanto afinco quanto os outros quando viu-o arregalar os olhos repentinamente, como se tivesse pensado em algo extraordinário, e quase gritado.


- Consciência! - sua voz ecoou pelo corredor, mas ele nem mesmo parecia ter notado.


Automaticamente, o olhar dos outros quatro que tinham entretido-se na conversa juntaram-se ao único que houvera visto a cena, perdidos e assustados. Cinco corações batendo descompassadamente, dois até mesmo tremendo pelo susto. Nesse tempo, Potter já estava sentado, de olhos arregalados, como se visse mais que tudo e todos ali. Ninguém entendia o que o fizera dar sinais de vida.


Numa excitação estranha, viram-no se levantar e começar a caminhar freneticamente de um lado para o outro da cela, num ar concentrado, quando novamente voltou a falar.


- Como pude esquecer isso?


As cabeças se juntaram automaticamente para comentar o fato estranho, formando um semi-círculo para poderem vê-lo andando, como se fizesse maratona contra si mesmo, a mão embaixo do queixo, olhando fixamente um ponto à sua frente. O primeiro a falar perguntou a dúvida de todos.


- Ele está ficando louco? - era um cochicho, com medo de que Harry Potter pudesse ouvi-los.


- É o que parece. - o outro comentou em resposta, todos os pares de olhos a perseguir cada movimento d'O-menino-que-sobreviveu.


- Dizem que a solidão faz isso. - sussurrara outro, aderindo a curiosidade do restante – Você fala sozinho coisas incompreensíveis. Parece até que você começa a ver os seus "eu's".


- Eu's? - os outros quatro falaram, erguendo as sobrancelhas.


- É. Como se fosse um tipo de "eu ruim" e um "eu bom". E você fica no meio, ouvindo as duas partes que só discutem, até você pender pra um lado. Foi o que ouvi falar.


- E quem você acha que está ganhando? - perguntou em tom curioso o que parecia o mais jovem.


Nesse momento, Harry Potter havia parado de caminhar, olhando a parede, parecendo adentrar em um dilema.


- Ou um ente querido? - ele deu uma pausa e fechou a cara, ainda mais concentrado, suas sobrancelhas ficando cada vez mais juntas sob a franja descuidada em sua testa – Por que não atacar? - continuou Harry Potter, olhando com ainda mais compenetração a parede logo a sua frente, fazendo todos se calarem, boquiabertos.


- Acho que o ruim. - falou um finalmente, quebrando o silêncio instalado entre os presentes, chocados.


- Achei que ele penderia pro bom, mas parece que o lado ruim é persuasivo. - o tom levemente jocoso fez a situação ficar menos tensa.


Riram baixinho e debochadamente, imaginando Harry Potter, o santo e grande herói, digladiando contra seus eu's, tornando-se tão ruim quanto um comensal ou talvez até do próprio Lorde das Trevas.


Porém um deles, talvez o mais inteligente, arregalou os olhos, fazendo os outros se intrigarem pela atitude sem fundamento do companheiro.


- Algum problema? - falou novamente o mais jovem, curiosamente.


- Pe-pessoal... e se... e se foi o... Lacbel? - assim que havia falado isso, todos se encolheram, arregalando os olhos, como se tivesse dito para se atirarem do penhasco.


- Lacbel? - disse um, seus estômagos estavam revirados de medo. - O que tem La-Lacbel?


Ficaram com tanto medo do que o colega havia pensado que todos esqueceram momentaneamente de Potter, que novamente voltou a falar, chamando a atenção.


- Nunca vigiou um prisioneiro. - sua fala parecia completamente vazia. Sem nenhum tipo de emoção.


A situação era assustadora. O-menino-que-sobreviveu encarava-os com um olhar vazio, parado igual a uma estátua de frente onde eles estavam. Sua aparência apática, concentrada, fez todos darem passos para trás, encostando-se à parede, como se houvesse algum tipo de vírus contagioso em Potter.


- É... deve ter sido obra daquele Demônio Conjurado. Lembra como, de repente, ele do pavor começou a ficar manso? - cochichou um deles, virando levemente a cabeça para que sua voz fosse ouvida pela maioria, mas não despregasse os olhos do prisioneiro ensandecido.


Todos concordaram, também sem deixar de encará-los.


- Será que foi a comida? - retornou a perguntar o mesmo comensal.


- Comida? - falou todos assustados, meio alto, mas parecia que mesmo isso não retirava o Potter de sua insanidade para analisá-los ou bradar xingamentos como alguns loucos com propensão à agressividade faziam.


- É, faz todo sentido. - explicava o comensal que dera a ideia, colocando seus argumentos - Lembra-se do que o Borgin falou? Que a comida tem que ser entregue na mão dele primeiro? Deve enfeitiçar a comida e ele, sendo obrigado a comer, deve estar sofrendo os efeitos do feitiço, que deve causar algum tipo de insanidade. Só que o efeito foi lento e hoje deve estar no auge. Tudo pra ninguém desconfiar que foi ele!


Naquele momento, viram o Potter pular na tábua e começar a bater a cabeça na parede, fazendo todos congelarem nos lugares enquanto o ouviam resmungar.


- Ajudar... mas como? Descobrir... para quê? É impossível... NÃO TEM COMO SER ISSO! - ele gritara, inconformado, dando uma última batida mais forte na parede com a cabeça.


O silêncio pairou no ar, enquanto Potter também fazia silêncio, parado igual a uma estátua. Foi quando finalmente um comensal quebrou o silêncio.


- Vou começar a fazer minha própria comida e minha própria bebida. - sua voz saiu levemente tremida, pois todos mal conseguiam manter-se em pé de pavor em imaginar-se no mesmo estado de insanidade que Potter demonstrava.


A resposta dos outros foi simplesmente balançar a cabeça afirmativamente, sem conseguir nem falar de tanto medo ao pensar no que já haviam comido e se já não estavam em lento processo de insanidade.


- Cansei, não vou conseguir fazer mais nada hoje. - Potter dissera num tom de desabafo consigo mesmo, suspirando enquanto pulava de cima de sua tábua e deitava-se relaxadamente. Tudo como se não houvesse tido nenhum ataque de loucura.




Harry sentia sua cabeça pesada pelo tanto que pensara naquela madrugada, mas não estava arrependido. Descobrira algo de extrema importância. Caminhara mais alguns quilômetros naquele terreno desconhecido que era Lacbel, apesar de agora estar perdido sobre o porque continuar a caminhar. No entanto, ao se virar, notara os comensais ainda ali, mas na parede logo abaixo do archote. Que olhares estranhos eles estavam lhe lançando aquela manhã...


Também, o que faziam ali!? Dormira tão pouco tempo? Pelo que calculara, devia ter dormido bem tarde e que acabaria acordando com Lacbel já em seu posto, próximo às grades, sentado. Algo devia estar estranho aquele dia. Pouco tempo depois, do corredor, ouvia passos ecoando, mas sabia que eram de apenas uma pessoa e não das normais quatro: Lacbel sendo guiado por um comensal e ladeado por dois. Lacbel finalmente pudera vir sozinho?


Porém, não era Lacbel. Era apenas um comensal qualquer que se aproximava dos demais, que também estavam confusos pelo que estava ocorrendo. Ao menos não parecia ser só ele o desinformado! Todos ficaram parados, esperando saber o que provavelmente ele devia estar fazendo ali ou a situação.


- O Lorde das Trevas está convocando todos. Vão. - ele dissera sem rodeios aos cinco comensais, numa voz grossa e autoritária.


Percebeu-os momentaneamente confusos, mas logo foram embora rapidamente, sem nem mesmo olhar para trás. Assim que ficaram à sós, o olhar do comensal que trouxe o recado recaiu sobre um Harry intrigado. Sorriu de modo debochado.


- Hoje terá paz, Potter. Ninguém para ficar te vigiando, pelo que soube... Acho que Lacbel até agradeceria pela nova tarefa que o Lorde das Trevas lhe deu. Deve ser entediante ficar vigiando um coelhinho assustado. - aquele sorrisinho cínico dele era irritante. Ele ia ver quanto tempo aquele sorriso perduraria se Harry tivesse uma varinha.


Quase como se lesse seus pensamentos, o comensal sacara a varinha, mas não fez menção de atacá-lo. Produziu um feitiço nas grades, que Harry identificou como uma barreira protetora anti-fuga. Preferia um milhão de vezes um cárcere do que aquilo. Com Lacbel, nem se comenta, passava dos zilhões.


- Mas ele não estar aqui não significa que sua fuga seja facilitada. - finalmente havia dado as costas, rindo dele e desaparecendo pelo corredor.


- Coelhinho assustado... olha quem fala... - resmungara pelas costas do comensal assim que este havia desaparecido.


Mas passado o momento de indignação, se intrigara das recentes informações adquiridas. Que raio de convocação repentina fora essa que Voldemort decidira dar? Se estivesse para anunciar qual era o novo método esquisito de tentar matá-lo, ele era realmente muito egocêntrico. Mas e se não fosse? Se seu cérebro já não estivesse tão cansado da noite anterior, teria ficado mais tempo pensando sobre aquilo. Mas não ficou, indo até a tábua para descansar mais um pouco.


Quando abriu os olhos mais uma vez, eles recaíram sobre o canto onde habitualmente Lacbel se encontrava todas as vezes que acordava. Mas ele não se encontrava ali, o que o fez lembrar-se do que ocorrera. Levantou-se e, vendo-se completamente só naquele local desolado, sentiu-se estranho. Vazio. Perdido.


Os próximos minutos lhe pareceram horas enquanto andava de um lado para o outro da cela. O que eu faço?, perguntava-se, porém sem obter qualquer resposta de sua mente.


Era tão estranho ver-se sozinho naquele momento. Mas era igualmente estranho constatar que se acostumara tanto a presença de Lacbel. Como se fosse um companheiro. Sua mente começou a divagar nas semanas que haviam se passado, tudo que havia feito, descoberto, compreendido... a utilização de seu cérebro sempre lhe lembrava Hermione e, com isso, Rony em sequência, seus melhores amigos. O que poderiam estar fazendo naquele momento?


Mas seus pensamentos uma hora, mesmo que quisesse continuar a viajar, sempre retornavam àquela cela desolada e vazia. Não podia deixar-se dominar por aquilo. Claro que devia durar apenas um dia, nada mais que isso... pelo menos, era no que queria acreditar. Talvez até os comensais fossem melhor companhia do que só aquelas pedras cinzas e lúgubres.


Após um tempo, tentando ver se seu cérebro se despregava daquelas paredes, pensou sobre a comida. Teriam se preocupado sobre isso? Obviamente não, iria passar fome. Um detalhe tão idiota... e era apenas por um dia. Não morreria de fome por apenas um dia. Mas aquele dia prometia ser ruim. Ele só não sabia que aquele dia prometia ser ainda PIOR do que esperava.


Em meio aos seus muitos devaneios, agora sentado sobre a tábua, tentando fazer aquele dia ser o menos ruim possível, ouvira passos no corredor. Seu primeiro pensamento otimista era que estivessem trazendo Lacbel. Levantou-se, correndo até as grades, esperançoso, sem notar de que os ecos eram de apenas uma pessoa.


Uma sombra se projetou no chão, estranha, que ele não reconhecia como sendo um dos comensais que já havia lhe visitado e já retirando qualquer esperança que fosse Lacbel. Nada em seu banco de memória – precário, diga-se de passagem – lembrava nem vagamente alguém semelhante a quem vinha. Esperou mais um pouco, dali a pouco a pessoa iria fazer a curva do corredor e ia ver seu rosto. A resposta não lhe fora nada agradável, quando viu quem se aproximava.


Voldemort vinha vindo até a cela dele com passos calmos. Uma bandeja vinha sendo levitada junto com ele, com apenas um lanche e um copo de suco. O mesmo de sempre, no entanto, não era a pessoa de sempre. Por que Voldemort se daria ao trabalho de levar a comida dele aquele dia? A cena era tão irreal que piscara várias vezes para ter certeza que não estava tendo alucinações por causa da solidão e seu querer quase desesperado por companhia. No entanto, a voz gélida e cínica era muito real. E, além disso, não achava que seu desespero estava tão extremo.


- Está gostando da sua hospedagem, Potter? - perguntara Voldemort assim que havia ficado em frente as grades, passando a bandeja pela portinhola até os pés de Harry.


Harry não despregava os olhos dele, ainda absorvendo a realidade, nem mesmo prestando atenção à bandeja. Mas quando seu cérebro saiu do choque da situação quase irreal, sorrira falsamente.


- Hum, levemente agradável, mas poderia ter um travesseiro. - ele comentara com ar cínico, o sorriso alargando um pouco mais.


- Estamos com falta deles, ultimamente. - fora a resposta igualmente venenosa recebida.


- Pena. - respondera com tom cortante e fazendo seu sorriso desaparecer com a mesma rapidez com que aparecera, mostrando um ar enfadado. Mas seus olhos não se despregavam da íris vermelha.


Afinal, o que ele queria ali? Falar sobre travesseiros é que não era. Matá-lo? Teria deixado-o solitário para matá-lo? O lanche poderia estar envenenado ou o suco... Enquanto seu cérebro divagava, novamente na sua procura incessante por respostas coerentes, hábito pego com Lacbel, Voldemort retornara a falar.


- Vejo que se acostumou a presença de Lacbel. - seus lábios estavam levemente retorcidos num sorriso, também com os olhos pregados nele. Havia alguma coisa muito estranha. Um olhar... indefinível na íris vermelho-sangue.


- Eu não tenho muitas escolhas. - ele voltara a sorrir amarelo. De repente, teve um pensamento terrível de que aquela conversa poderia se prolongar por horas intermináveis e isso não era nada agradável.


- Compreendo. - respondera, desviando os olhos dele, com ar pensativo.


Harry percebeu que, de alguma forma, ele queria falar alguma coisa, mas a conversa era sempre cortada. Isso não era óbvio? Os dois eram como água e óleo, não haveria como ter uma conversa minimamente civilizada e duradoura entre ambos. Ao menos, não sem insultos e fosquinhas. Principalmente por parte dele. Mas como não sabia o nível de teimosia dele, era melhor já ir direto ao ponto.


- Por que não fala diretamente o que quer comigo e pronto? Sei que quer falar alguma coisa, então não precisa ficar nessa conversa fiada. - falara sendo bastante direto. Nem pensar que ia ficar o dia inteiro ali, falando um monte de porcaria, até ele decidir-se a fazer isso.


O que recebera fora um sorriso um pouco maior da parte dele, que olhava-o de esguelha.


- Vejo que você tem pressa. - ele comentara de modo venenoso enquanto se recostava na parede.


Ah, não. Era brincadeira que ia ter de aturá-lo o resto do dia? Mas, pelo que podia perceber, não parecia...


- Eu sou prático. Eu te detesto e quero te ver longe de mim. - fora a resposta nada delicada – Então, fala logo.


- Potter, que falta de educação você tem com as pessoas. - a voz aveludada irritava-o.


- Monstros. - corrigira Harry, com olhar rancoroso.


- Você não tem mais salvação. - fora o comentário dito com voz falsamente triste, juntamente com um suspiro e um cruzar de braços. Porém Harry sabia que estava se divertindo às custas dele. Maldito. - De qualquer forma, eu quero falar muita coisa, realmente.


- Ah é? Tudo pra mim? - ele falara com voz cínica - Ou será que esta sentindo falta de conversar com alguém que simplesmente não concorde com tudo que você ordena? - ele dissera venenosamente, estreitando os olhos e sorrindo maliciosamente.


- Você estava obedecendo bem rápido as minhas ordens na sua única tentativa de fuga, Potter. - ele parecia ter resposta para tudo. Mas, principalmente, uma resposta que fosse difícil de ser refutável. E a pior parte era receber aquele sorriso de lado que o desafiava a dizer o contrário.


Ele tinha de lembrar daquele dia!


- Eu te odeio. - a voz levemente mais gutural e baixa, o brilho de ira e suas expressões de fúria foram automáticos. Sabia não ter outra resposta a dar além daquela, o que só o fazia ficar mais enfurecido.


- A recíproca é verdadeira. - ele respondera, olhando-o mais sério, se poderia dizer indiferente, pela falta do sorriso, mas olhava intensamente nos olhos verdes.


Os dois ficaram se encarando por um longo tempo, fuzilando-se. Finalmente, Voldemort quebrara o silêncio instalado e perturbando a tensão no ar.


- Conhece lendas orientais, Potter?


- Hã? Lendas? - ele perguntara meio perdido com aquela pergunta repentina e sem sentido. Piscara muitas vezes, tentando novamente fazer seus pensamentos tomarem algum rumo, pois fora interrompido de seu afazer anterior, procurando insultá-lo de todos os possíveis nomes que pudesse lembrar.


- Isso, lendas... - ele reafirmara, observando as feições confusas de Potter, sem sair da sua postura calma e relaxada da parede.


- Não muitas... ou nenhuma. - ele respondera, dando de ombros, como se aquilo não tivesse nada a ver - E daí?


- Não deve conhecer a lenda do Tigre e o Dragão, imagino... - ele comentara bem levemente, fazendo Harry ficar ainda mais confuso.


- Não. - respondera com sinceridade.


- Ah, Potter... quanta ignorância... - ele dissera, fazendo um ar reprovativo – Dar-lhe-ei o prazer de contá-la para você. - ele dissera, finalmente, com ar muito solícito. Tão solícito que era quase óbvio que existia segundas intenções por baixo daquela solicitude. O que realmente ele queria lhe contando aquilo?


- O que você quer contando uma lenda sem sentido? - Harry dissera cruzando os braços, observando-o desconfiado.


- Não quero nada, Potter. Apenas quero compartilhar essa lenda singular. - Harry percebeu que não ia arrancar as razões dele ao fazer aquilo e teria de perder seu tempo ouvindo a melodiosa voz dele a contar histórias pra dormir.


- Comece logo, que não quero ficar ouvindo idiotice o dia todo. - falara de mal-humor, já que não ia ter escapatória. Obviamente, ele não iria deixar de contar a história, por mais que ele não quisesse ouvi-la.


A situação era propícia. O que adora falar com o que não tem outra escolha senão ouvir.


- Muito bem, muito bem... - ele dissera, sorrindo, pigarreando um pouco, voltando seus olhos para o corredor vazio.


"Há muito tempo, quando os Deuses e Demônios ainda andavam sobre a Terra, o Deus Supremo dos Dragões gerou um filho com uma humana. Ele nasceu muito forte e por isso foi apelidado de ‘Pequeno Tigre’. Sua força descomunal chamou atenção de centenas de lutadores pelo mundo, mas jamais foi vencido por nenhum deles. Os 7 Deuses Demônios, preocupados com a recente ameaça desse Príncipe, filho do Deus Dragão, decidiram por matá-lo, enquanto ainda não fosse adulto. Porém nenhum demônio foi páreo para suas habilidades e forças descomunais.


Em sua adolescência, porém, encontrou um adversário à sua altura. Filho de um dos Deuses Demônios, tinha aparência de um dragão. Este explicou que isso se devia por ter vencido 100 dragões sagrados e aprisionara dentro de si suas almas. Foi uma luta difícil, mas o Pequeno Tigre havia vencido, por pouco, libertando as almas sagradas dos 100 dragões.


O Líder dos 7 Deuses Demônios, irado com a morte de seu filho, mandou que eles cuidassem por matá-lo.


O primeiro líder, no entanto, não teve qualquer dificuldade nesta tarefa. Os demônios comemoraram sua vitória espalhando caos e destruição pela Terra. O Deus Supremo dos Dragões, vendo seu filho morto, não pôde fazer nada, retirando-se aos Céus. No entanto, não esperava que um Tigre se sacrificasse para devolver a vida ao jovem morto. O Pequeno Tigre se reergueu e os 100 espíritos sagrados de Dragões se colocaram a guardá-lo. Seu pai, como não poderia voltar à Terra, lançou-lhe do Céu uma lança e um par de rodas flamejantes para que este pudesse se locomover aos Céus. Então, Pequeno Tigre havia se tornado quase um Deus.


Com todo seu poder, matou 6 dos Deuses Demônios e confinou o último. Seu esforço foi visto pelo Deus Primordial da Longa Vida como algo de real valor para um Deus, elevando-o aos Céus, onde lá ficou, deixando sua parte física na Terra na forma de um Tigre Sagrado guardado por 100 Dragões."


Houve certo silêncio.


- E? - a voz de Harry soou pelas paredes, com desprezo, depois de obter a certeza de que havia acabado.


- Não esperava outra coisa de você, Potter. Até parece que não viveu em uma casa trouxa. - ele comentara com ar sarcástico, havia um sorriso malicioso que brincava em seus lábios - Você tem muito ainda o que aprender sobre a Magia e as leis que as regem. Mas quem sabe surta efeito? - havia um brilho divertido em seu olhar, como se a situação fosse divertida.


A expressão facial de Harry já dizia por si só. Seu corpo rígido com os braços cruzados na altura do peito apenas acentuava o aborrecimento que demonstrava em cada traço de suas feições. Não acreditava que estava se sujeitando a ouvir desaforos, histórias e lições de etiqueta do seu pior inimigo. Devia ter feito algum terrível pecado pra merecer aquele encontro inusitado e irritante.


- Próximo assunto, por favor. - falou, após um tempo. Cada traço de cada palavra demonstrava sua irritação. A presença daquele insuportável já era suficiente para irritá-lo.


- Vamos escolher... - havia um toque natural e distraído quando voltou os olhos vermelhos para os longos dedos brancos, contando-os calmamente.


Harry horrorizou-se ao observá-lo a contar os próprios dedos, calculando que acabaria por ter de suportá-lo pelo resto do dia e, ainda por cima, seria pouco! Qual era a dele ao querer fazer discurso exclusivo para ele?


Colocou as mãos sobre a cabeça, desesperado, seu coração batendo descompassado, retirando a franja de sua testa, mostrando bem a fina cicatriz em forma de raio que se formava ali.


- Eu mereço... - Harry estava inconformado com a sua desgraça, imagens de um tipo de cinema mudo passando em sua cabeça com ele, sentado, quase dormindo e Voldemort a continuar a falar incessantemente.


- Eu estava brincando, Potter. Não vou aturar ficar falando com você o dia todo. - Voldemort sorria, divertindo-se com o desespero dele, parando com a encenação.


- Pare de ler a minha mente. - Harry sibilou, entredentes, ao perceber que tinha vacilado na sua Oclumência. A pior parte é que não sabia por quanto tempo e o quanto ele já havia retirado de informações dela.


- Sugiro que treine sua Oclumência deploravelmente precária antes de exigir uma proibição que não será seguida. Você terá muito tempo durante sua estadia aqui. - Voldemort sorrira divertidamente, fazendo Harry só ter mais raiva. Como era insuportável com aquelas respostas cínicas!


- Vá direto ao ponto. - Harry sibilou ainda mais baixo, entredentes, os punhos fechados.


- Eu quero lhe dar um conselho, Harry Potter. - foi como se mudasse da água para o vinho. Ele era estranho, mudando de temperamento tão repentinamente. O ar divertido desvanecera do rosto ofídico para dar lugar a algo mais sério.


Harry estava pasmo. Voldemort conseguia ser uma pessoa literalmente surpreendente.


- Conselho? E pra que você daria um conselho pra mim? - Ele poderia imaginar qualquer coisa. Mas aquilo era ridículo!


- Vou lhe dar um conselho porque eu quero. - novamente o divertimento de seu olhar retornara ao dar aquela resposta insatisfatória, lotada de segundas intenções nas entrelinhas. Harry já tinha aberto a boca para falar algo, mas foi interrompido quando o rosto viperino se aproximou das grades, tornando a distancia entre ambos mínima. Um ar de ameaça e ao mesmo tempo de aviso tomou conta de suas feições. - Cuidado com o que pode descobrir. - a voz viperina dissera com um sussurro. - Você pode acabar se machucando...


Seu primeiro pensamento foi Lacbel, sua amizade ilícita e suas descobertas acerca dele. Foi automático desviar seus pensamentos para isso, quando ouvira aquelas poucas palavras. Sentiu-se paralisado, descoberto, flagrado. Mas percebeu que poderia ser de qualquer outra coisa. Por que seria necessariamente sobre aquilo? Tentara sorrir, mas não conseguira com tanta firmeza quanto deveria, enquanto seu coração batia descompassado.


- N-não ente-tendo... - Harry tentou disfarçar, mas sua maldita gagueira fora delatora. Apesar de não estar declaradamente falado, sabia que o motivo daquelas falas eram Lacbel. E aquela gagueira delatava seu entendimento e preocupação.


- Sei que entende, Harry Potter. - ele dissera calmamente, enquanto voltava a sua postura normal. - Tenha um bom dia. - finalizara, repentinamente, sorrindo novamente com aquele olhar indefinível, antes de virar-se e seguir pelo corredor, sem esperar qualquer resposta de Potter. Porém parara antes da curva e olhara para trás, na direção de Harry. - Ah, Potter... a obediência é uma arte. É uma pena que seja tão difícil de alguns serem ensinados. - Após essas últimas palavras, finalmente desaparecera na curva do corredor, deixando para trás um Harry perplexo e paralisado, com uma bandeja de comida ainda largada aos seus pés, esquecida.

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