IV - Janeiro de 1979



IV - Janeiro de 1979

Capítulo 20

Apareceram de noite. Chegaram em carros escuros, vinham providos de lanternas,
rifles, tochas e paus. Chegaram da escuridão com um rugir de motores, e os fachos de luz largos e brancos dos faróis virando a esquina procurando a rua.

Potter nesse momento estava espionando pelo buraco. Tinha parado de ler e olhava com curiosidade quando os raios de luz enfocaram as caras descoloradas.

Os vampiros se voltaram assustados, com os escuros olhos selvagens cravados nas luzes.

Potter retrocedeu bruscamente, afastando-se do buraco. Durante um
momento permaneceu ali, nas sombras da sala, tremendo, indeciso. O rugido dos motores atravessou as paredes acústicas Pensou nas pistolas da cômoda, no rifle, a
metralhadora da mesa de trabalho, pensou em entrincheirar a casa.

Mas não. Tinha-o decidido. Havia planejado tudo, escrupulosamente, durante os
últimos meses. Não os confrontaria. Aproximou-se outra vez da porta, e olhou.
A rua era um contínuo de cenas violentas e rápidas, iluminadas pelo potente
resplendor dos faróis. Homens que perseguiam a outros homens, ruídos de saltos
sobre o pavimento. Em seguida um disparo, o eco do disparo, e logo mais disparos.

Dois vampiros caíram pelo pavimento. Quatro homens os sujeitaram com os braços em cruz e outros dois lhes afundaram no peito as brilhantes pontas de umas lanças. A noite se encheu de uivos. Potter sentiu que se sufocava.

Os homens vestidos de negro tinham uma clara idéia do que faziam. Havia sete
vampiros na rua; seis homens e uma mulher. Rodearam-nos a todos, sujeitaram-nos pelos braços, e afundaram em seu corpo as lanças afiadas como facas. O sangue corria como mar pela rua, e os vampiros foram morrendo, um a um. Potter se estremeceu.

Era esta a nova sociedade da qual Ruth havia falado? E tinham que atuar assim,
enfurecendo-se de um modo tão cego e brutal? Por que vinham de noite, quando
era muito menos violento matá-los de dia?
Apertou os punhos. Não gostava daquela metódica carnificina. Esses homens pareciam assassinos, e não seres que defendiam sua existência. Havia percebido uma expressão de maligno triunfo nos rostos iluminados pela luz dos faróis. Eram rostos cruéis, sem emoção. De repente Potter se deteve a pensar. Onde estava Ben? Olhou para acima e para baixo da rua, mas não viu nenhum rastro dele. Não queria que matassem Bem Cortman, não queria que o destruíssem dessa maneira. Estupefato, deu-se conta de que sentia mais simpatia pelos vampiros que por esses seres.

Agora os sete vampiros jaziam inertes em seus atoleiros de sangue. Os faróis, sem
pararem de mover-se, iluminavam a noite. Um raio cegante enfocou o buraco.

Potter se retirou. Em seguida a luz se afastou, e olhou de novo.
Ouviu-se um grito. Os olhos de Potter seguiram a luz. Ficou tenso. Cortman estava no telhado da casa em frente. Subia lentamente tratando de alcançar a chaminé, com o corpo esmagado contra as telhas.

Potter compreendeu de repente que aquela alta chaminé tinha sido o esconderijo
de Cortman durante todo este tempo. Apertou as mandíbulas. Cortman não merecia
morrer em mãos daqueles desconhecidos. Objetivamente, era um absurdo; mas
assim o sentia. Aqueles seres não podiam apropriar-se do descanso de Cortman. Mas ele, Potter, não podia fazer nada.

Com um olhar de desalento, viu que os focos apontavam para o corpo encolhido de Cortman. As mãos pálidas procuravam lentamente algum apoio. Movia-se lentamente, como se tivesse todo o tempo do mundo. Se apresse!, pensou Potter, mas não o disse em voz alta. Sentiu que lhe contraía o corpo, que lutava junto com Cortman, imitando aqueles movimentos de agonia.

Os homens, sem pronunciar ordem alguma, elevaram de repente seus rifles e o ruído dos disparos rasgaram a noite.

Potter sentiu como se as balas entrassem em sua própria carne. Cortman se retorceu sob os impactos e Potter se estremeceu convulsivamente.

Cortman continuou retorcendo-se. Potter viu a cara branca e tensa. Chegou o fim do Oliver Hardy, pensou, a morte das comédias e as risadas. Não ouvia já o ruído
dos disparos. Nem sequer notava como as lágrimas lhe corriam pelo rosto.
Ben Cortman estava de joelhos agora, e tratava de agarrar-se à chaminé com dedos
inseguros. Retorceu-se ainda mais, alcançado por outras balas. Seus olhos escuros
brilhavam à luz dos faróis; sua boca deixava escapar um gemido silencioso.
Ao fim se colocou de pé, apoiado na chaminé, e Potter, empalidecendo, viu como
erguia a perna direita.

Nesse instante ouviu-se o ruído da metralhadora. Durante um momento, Cortman
recebeu de pé os impactos, com as mãos em alto e com expressão de desafio em sua cara branca.

—Ben... —murmurou Potter entrecortadamente.

O corpo de Cortman se dobrou pela cintura e caiu para frente. Perdeu o equilíbrio e rodou lentamente pelo telhado inclinado, e por fim caiu ao vazio. Seguiu um
silêncio, e Potter ouviu o corpo estatelando-se contra a rua. Fechou os olhos. Os
homens se aproximavam de Cortman empunhando suas lanças.

Outra vez o ruído de botas sobre o pavimento. Potter retrocedeu para a escuridão. De pé no meio da sala, esperou que os homens o chamassem e lhe convidassem a sair.

Tratou de recuperar a calma. Não vou lutar, disse. Embora queria fazê-lo, embora
odiasse suficientemente a esses homens com suas armas e suas ensangüentadas lanças.

Mas não ia lutar. Tinha-o bem decidido. Os homens atuavam como lhes parecia
necessário, apesar daquela violência inútil e aquela sanha. Ele, Potter, havia matado a muitos e agora eles tinham que capturá-lo. Não lutaria para salvar-se. Entregaria-se à justiça daquele novo mundo. Quando o chamassem sairia e se renderia.

Tinha-o bem decidido.

Mas não o chamaram. Potter retrocedeu ofegando para ouvir o ruído das tochas na
porta da rua. O que faziam? Por que não o chamavam e lhe convidavam a sair? Não era um vampiro, era um homem. Por que se comportavam assim?

Deu meia volta e olhou para a cozinha. Derrubavam também a porta dos fundos.
Ficou nervoso no meio do corredor. Olhou alternadamente a uma e outra porta.

Não entendia o que estava acontecendo! Não entendia!
Ouviu uns disparos. Assustado, correu ao vestíbulo e comprovou que os homens tinham feito saltar a balaços a fechadura da porta da rua. Um disparo mais, com ecos que ressoaram pela casa.

E, de repente, entendeu. Não iriam levar-lhe diante de seus tribunais para julgá-lo.
Foram lá acabar com ele.

Aterrorizado, correu ao dormitório e procurou, aturdido, na gaveta da cômoda.
Voltou-se, tremendo, com as pistolas nas mãos. Mas e se na verdade só queriam
capturá-lo? Não podia incomodar-se porque não o haviam chamado. A casa estava
às escuras. Possivelmente pensavam que não estava ali.

Ficou no dormitório, sem acender a luz e sem saber o que fazer. Por que não
tinha escapado? Por que não tinha escutado os conselhos de Ruth? Que idiota havia sido!

A porta da rua cedeu ao fim, e uma das pistolas caiu da mão de Potter. Um ruído de passos pesados cruzou a sala. Potter retrocedeu, empunhando a outra pistola. Não iam matar-lhe tão facilmente! Lançou uma maldição. Havia tropeçado em sua escrivaninha.

No vestíbulo um homem dizia algo que Potter não pôde entender. Em seguida cintilou a luz de algumas lanternas. Potter conteve a respiração. Sentiu que tudo a seu redor começava a girar. Assim, este é o fim. Não podia deixar de pensar. Este é o fim.

Os passos ressoaram no corredor. Os dedos de Potter apertaram com mais força o
punho da pistola, os olhos seguiam cravados na soleira.

Dois homens entraram.

Os raios das lanternas dançaram pelo quarto até dar com a cara de Potter. Os homens retrocederam imediatamente.

—Ele tem uma pistola! —gritou um deles, e disparou.

Potter ouviu como a bala se incrustou na parede, por cima de sua cabeça. Em
seguida a pistola começou a disparar, lhe iluminando a cara com breves lampejos. Não apontava. Só apertava o gatilho como um autômato. Um homem lançou um grito de dor.
Em seguida Potter sentiu um golpe no peito. Cambaleou-se, disparou uma vez mais e caiu de bruços soltando a pistola.

—Já o pegamos! —Ouviu que alguém gritava. Tratou de recuperar a pistola, mas uma bota lhe esmagou a mão. Potter a afastou gritando e ficou olhando o chão.

Umas mãos o agarraram com brutalidade por debaixo dos braços para levantá-lo.

Perguntou-se por que não lhe davam um tiro de misericórdia. Virginia, pensou,
Virginia, logo estarei contigo. Sentiu uma terrível dor no peito, como se alguém lhe
orvalhasse com chumbo fundido. Ouviu o sapateio de outras botas, e se dispôs a morrer.

Ao menos, vou morrer em minha casa, pensou. Os homens o arrastaram até a rua. Potter tratou de lutar quase sem forças.

—Não —disse—. Não!

Outro golpe. Desta vez na cabeça. Perdeu o mundo de vista.

—Virginia —murmurou Potter debilmente.

E os homens de negro arrastaram o corpo inconsciente para fora da casa. À
solidão da noite. A aquele mundo que lhes pertencia e que já não seria nunca mais, o mundo de Potter.

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