Capítulo 19



Capítulo 19

Quando voltou a si, o silêncio reinava na casa.

Durante um momento seguiu ali, deitado, olhando confusamente o chão. Em
seguida, com um lamento de dor, levantou-se. Sentiu como se um milhão de agulhas lhe atravessassem a cabeça, e tornou a cair sobre o chão frio, agarrando a cabeça com as mãos.

Minutos depois tratou de se levantar lentamente agarrando na borda da mesa. O chão se movia sob seus pés, e Potter teve que fechar os olhos. Esperou um momento.

No fim conseguiu chegar rastejando até o banheiro. Lavou a cara com água fria e se sentou na borda da banheira, com uma toalha úmida envolta da testa.

Que tinha acontecido? Olhou piscando para os brancos ladrilhos do chão.

Levantou-se e chegou até a sala. Estava vazia. A porta da rua estava aberta
permitindo a entrada da luz cinza da manhã. A jovem tinha ido embora.

Começava a se lembrar. Retornou ao dormitório, apoiando-se nas paredes.
Sobre a mesa, junto ao derrubado microscópio, tinha uma carta. Pegou o papel com dedos intumescidos, e aproximando-se da cama, sentou-se. Ergueu o papel até os olhos. Mas lhe dançavam as letras. Sacudiu a cabeça brandamente e voltou a fechar os olhos. Ao final de um momento pôde ler:

“Harry: Agora já sabe. Já descobriu que lhe espionava e sabe que quase tudo o que
disse era falso”.

“Escrevo-lhe esta carta porque quero te salvar, na medida do possível”.

“Quando me pediram que lhe espionasse, não me interessava sua vida. Porque
eu tinha um marido, Harry, e você o matou”.

“Mas agora as coisas são diferentes. Eu sei agora que você não escolheu este modo de vida, como nós não escolhemos os nossos. Estamos infectados. Mas apesar de suas descobertas, continuaremos vivos. Descobrimos um modo, e vamos criar uma nova sociedade, sem pressa, mas sem tardar. Nos livraremos desses miseráveis castigados pela morte. E embora eu não o queira, decidimos lhe matar, a você e a seus semelhantes.”

—A meus semelhantes?, Pensou Potter, aturdido. Mas seguiu lendo.

“Tentarei lhe salvar. Explicar-lhes-ei que está muito bem protegido para que o ataquemos agora. Aproveite o tempo que lhe dou, Harry. Saia da casa, fuja para as
montanhas e se salve. Agora somos uns tantos. Mas nos aumentaremos cedo ou
tarde, e então não poderei impedir sua destruição. Repito-lhe isso Harry, salve-se
enquanto pode!”

“Sei que lhe custará acreditar. Não acreditará que podemos viver à luz do sol, embora só o seja durante curtos períodos. Não acreditará que minha cor é natural e não produto da maquiagem. Não acreditará que podemos viver com o germe no sangue”.

“Por isso lhe deixo uma de minhas pílulas”.

“Todo o tempo que passei aqui as estive tomando. Escondi-as em meu cinto.
Descobrirá que estão compostas por sangue coagulado e uma droga. Não sei
exatamente qual. Mas sei que o sangue alimenta o germe e a droga impede sua
reprodução. O descobrimento desta pílula freou nossa eliminação, nos ajudando a
reconstruir o mundo. Acredite-me, tenho certeza. E por favor, fuja!”

“Me perdoe também. Não queria lhe fazer nenhum mal. Mas me aterrorizava pensar o que faria quando soubesse a verdade”.

“Me perdoe por lhe haver enganado tanto. Mas, por favor, acredite só uma coisa:
quando estávamos abraçados, na escuridão, não estava lhe espionando. Eu lhe queria”.

“Ruth.”

Potter leu outra vez a carta. Em seguida deixou cair a mão, abatido, e ficou olhando o chão. Não podia acreditá-lo. Movia a cabeça, tentando compreender, mas era difícil.

Aproximou-se da mesa com passos inseguros. Pegou a pílula alaranjada, sustentou-a na palma, e a cheirou. Sentia que a segurança o havia abandonando.
Como podia, entretanto, negar a evidência? A pílula, o encontro à luz do sol, sua reação diante do alho.

Sentou-se na banqueta e olhou a estatueta caída no chão. Lentamente, as lembranças foram amontoando em sua mente.

Quando se encontraram no campo, a jovem tinha fugido assustada. Estava-o
enganando? Não, assustou-se seriamente. Seu grito a havia surpreendido sem dúvida, embora ela estivesse esperando-o. Logo, mais tarde, controlando mais a situação, havia argumentado que sua reação perante o alho se devia a um estômago delicado. E tinha mentido, fingindo uma aceitação sem esperança, e o havia surrupiado habilmente toda a informação possível. E quando queria ir embora, não podia, por culpa de Cortman e dos outros.

Tinha despertado naquele momento e se abraçaram, e... Potter deu um murro na mesa. “Eu lhe Queria”. Mentira. Mentira! Amassou a carta e a jogou longe.
A dor cresceu com a raiva e teve que segurar a cabeça entre as mãos, fechando os
olhos.

Ao cabo de um momento se recuperou e colocou o microscópio em seu lugar.

O resto da carta não era mentira, devia reconhecer. Até sem a pílula, até sem
aquelas lembranças, devia reconhecer. Ficava algo que Ruth e os seus amigos
pareciam ignorar.

Olhou pelo microscópio um longo momento. Sim, havia-o encontrado. E admitir o que via, mudou todo seu mundo. Que estúpido e incapaz se sentia! Como não o tinha previsto?

E entretanto, havia lido a frase cem, mil vezes. E nunca se havia detido a entender todo seu significado. Era uma frase muito simples:

As bactérias também podem ser mutantes.

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