Capítulo 18



Capítulo 18

—Virginia!

O dilacerador grito de Potter rompeu a silenciosa escuridão e a silhueta negra
se apertou contra a parede.

Potter saltou da cama e olhou ao seu redor com olhos sonolentos. O coração lhe
pulsava no peito, como um prisioneiro que golpeia as paredes de um calabouço. De pé, ainda em estado de sonolência, não sabia que hora era, nem onde estava.

—Virginia? — perguntou fracamente, estremecendo—. Virginia?

—Sou... sou eu —respondeu a voz na escuridão.

Potter avançou á passos inseguros para o débil raio de luz que entrava pela fresta
aberta. Piscou devagar. Estendeu uma mão e ouviu um ofegar.

—Sou eu, Ruth. Ruth —disse a silhueta em voz baixa.

Potter ficou ali, cambaleando-se na escuridão, com a expressão de que não
compreendia.

—Sou eu, Ruth —repetiu a silhueta em voz mais alta.

Potter despertou completamente. Algo frio lhe retorceu no peito e no estômago. Não era Virginia. Sacudiu a cabeça e esfregou os olhos com os dedos intumescidos.
Ficou olhando a jovem durante um bom momento, sentindo o grande peso de
uma repentina depressão que lhe esmagava.

—Oh! —murmurou fracamente—. Oh, eu...

A névoa que o havia envolvido se desvaneceu. Observou a fresta e em seguida, Ruth.

—O Que está fazendo? —Perguntou com voz sonolenta, e acendeu o abajur.

—Nada —disse ela, nervosa—. Não podia dormir.

Potter piscou diante da luz. Logo sua mão soltou o interruptor do abajur e se
voltou. A mulher estava apoiada contra a parede, com os braços pendurados e os
punhos apertados.

—Por que se vestiu? —perguntou Potter, surpreso.

A jovem respirava ruidosamente, olhando Potter. Ele esfregou os olhos e passou a
mão sobre as têmporas.

—Estava... estava olhando —disse ela.

—Mas por que se vestiu?

—Não podia conciliar o sono.

Potter a olhou, ainda um pouco chocado, mas sentiu que o coração lhe acalmava.
Através do buraco se ouviam os uivos da rua, e, por conseguinte escutou o grito de
Cortman:

—Saia, Potter!

Potter se aproximou da porta e fechou o buraco. Em seguida voltou-se para a Ruth.

—Perguntei-lhe por que se vestiu.

—Vesti-me, simplesmente.

—Ia partir enquanto eu dormia?

—Não, eu...

—Ia?

A jovem deixou escapar um gemido. Potter tinha agarrado seu pulso apertando-lhe. — Não, não —se apressou a dizer—. Como poderia fazê-lo, com eles aí fora?
Potter olhou o rosto aterrorizado da jovem. Estremeceu-se ao recordar a sensação que o tinha invadido ao despertar, acreditando que era Virginia.

Bruscamente, soltou-lhe o braço e se afastou. Estava convencido de que o passado
estava morto. Mas se perguntava: Quanto demora em morrer o passado?
A jovem não disse nenhuma palavra. Potter se serviu um pouco de uísque e o tomou de um gole. Virginia, Virginia, pensou desesperando-se, ainda em minha mente. Fechou os olhos e apertou as mandíbulas.

—Chamava-se assim? —perguntou ela.

Potter ficou tenso, mas relaxou-se em seguida.

—Bom —disse com voz cansada—. Volte para a cama. A jovem deu um passo atrás.

—Lamento —disse ela.

De repente, Potter compreendeu. Em realidade, não queria que ela se deitasse. Queria que ficasse com ele lhe fazendo companhia. Não sabia por que, mas não queria estar sozinho.

—Confundi-a com minha mulher —ouviu-lhe dizer—. Despertei de súbito e acreditei...

Bebeu outro gole de uísque, engasgou-se e começou a tossir. Ruth o olhava da
penumbra.

—Ela voltou uma vez —disse Potter —. A enterrei, mas uma noite voltou. Era como... como você esta noite. Uma sombra, um contorno. Estava morta. Mas voltou. Tratei de tê-la comigo, mas não podia ser a mesma de antes. Só queria...

Potter conteve um soluço.

—Minha própria mulher —disse com voz tremente—, voltando só para me beber
o sangue!

Golpeou com o copo a mesa do bar. Voltou-se, caminhou rapidamente até o buraco e retornou outra vez ao bar. Ruth não abriu a boca. Continuou na escuridão, escutando.

—Levei-a outra vez —disse—. Tive que tratá-la como os outros. Minha própria mulher. Uma estaca —acrescentou com voz terrível—. Tive que lhe cravar uma estaca no coração. Até então, não sabia outro método. Eu... Não pôde terminar. Calou-se por um longo momento, estremecendo dos pés á cabeça, apertando as pálpebras com força.

Ao fim falou outra vez:

—Aconteceu faz quase três anos. E eu ainda lembro, é como se tivesse acontecido
ontem — deu um murro sobre o bar—. Todo esforço é inútil. E não posso me
acostumar, me esquecer... Mexeu nervosamente nos cabelos e continuou:
—Sei o que você sente. Sei. No princípio não me dava conta. Não confiei em você.
Sentia-me protegido e tranqüilo em meu refúgio. Agora... —sacudiu a cabeça
lentamente, derrotado—. Em um segundo tudo desapareceu. A rotina, a segurança, a paz...

—Harry. —A voz da jovem parecia tão angustiada e triste como a sua—. Por que nos castigaram assim? —perguntou.

Potter suspirou entrecortadamente.

—Não sei. Não há resposta. Não há motivo aparente. Simplesmente, é assim.
A jovem havia se aproximado. E de repente, sem hesitações, sem resistências, Potter a apertou contra ele e se transformaram em dois seres que se fundiam na profunda solidãoda noite.

—Harry. Harry.
As mãos da Ruth acariciavam os ombros da Potter, uma e outra vez, e Potter a
apertava contra ele com força e fechando os olhos se perdia naqueles cabelos mornos e suaves.

Beijaram-se por um longo momento, e suas mãos abraçavam com força o pescoço de Potter. Sentaram-se em seguida, a tênue luz da sala.

—Sinto muito, Ruth —disse Potter.

—Sente mesmo?

—Sim. Sinto ter sido tão cruel quando te encontrei, não ter acreditado em você. Ela
calou.

—Oh, Harry—disse logo—. É tudo tão injusto. Tanto! Por que continuamos
vivos? Por que não morremos como outros? Seria melhor que todos tivéssemos
desaparecido.

—Quieta, quieta —disse Potter, sentindo que já não podia controlar as emoções que o invadiam—. Tudo ficará bem.

Um calafrio percorreu o corpo da jovem.

—Sim, sim. Tudo ficará bem —repetiu Potter.

—Mas como?

—Ficará —disse Potter, embora não estava seguro de nada e sabia que as
palavras brotavam só graças aquela tensão liberada.

—Não —disse ela—. Não.

—Sim, Ruth. Sim.

Potter ali, no sofá, tinha perdido a noção do tempo. Havia esquecido tudo, o tempo e o lugar. Estava com ela, estavam sozinhos no mundo e necessitavam-se; eram os únicos sobreviventes de um obscuro terror.

E de repente sentiu a necessidade de ajudá-la o quanto antes.

—Vêm —disse—. Vou lhe analisar agora. O corpo da jovem ficou tenso.

—Não, não —disse Potter rapidamente—. Não tema nada. Se encontrarmos algo, lhe curarei. Juro que lhe curarei, Ruth. Mas verá como não encontraremos nada.
Ruth o olhava na escuridão, sem dizer uma palavra. Potter se levantou e a pegou na mão. Sentia uma excitação totalmente distinta. Queria curá-la, ajudá-la.

—Me permita —disse—. Não vai doer. Prometo-lhe isso. Quero que estejamos seguros. Assim poderemos planejar nossa vida e trabalhar. Salvarei você, Ruth. Ou morrerei contigo.

A jovem resistia, com o corpo tenso.

—Vem, Ruth.
Agora que tinha revelado suas emoções, Potter não tinha no que se apoiar e não
podia controlar seus tremores.
Levou-a ao dormitório. E quando viu pasmado o terror naquele rosto, aproximou-a dele e acariciou-lhe o cabelo.

—Tudo ficará bem. Não entende?

Ajudou-a sentar-se na banqueta. A jovem estava pálida. Potter desinfetou a agulha
queimando-a com um isqueiro Bunsen. Em seguida se inclinou e a beijou na bochecha.

—Tudo ficara bem —disse docemente—. Tudo ficará bem. Não se preocupe.
Ruth fechou os olhos e Potter cravou a agulha, sentindo a dor como se tivesse cravado no seu próprio dedo. Extraiu o sangue e o colocou na platina.

—Aqui está —disse, e passou um algodão com álcool pela ponta do dedo, tremendo. Não conseguia controlar-se. Quase não podia preparar o microscópio, e olhava a Ruth e sorria, tentando lhe apagar do rosto aquela expressão de terror.

—Não tenha medo —disse—. Por favor. Curarei-lhe se estiver doente. Farei-o, Ruth, prometo-lhe isso.

A moça se sentou em silêncio, olhando-o trabalhar com os olhos perdidos, movendo nervosamente as mãos no colo.

—E o que fará se... se eu estiver? —disse ao fim.

—Não sei ainda —disse Potter —. Não tenho certeza. Mas há muitas coisas.

—Que coisas?

—Vacinas, por exemplo.

—Disse que as vacinas não dão resultado —comentou a jovem com voz fraca.

—Sim, mas... — Potter se interrompeu para colocar a platina no microscópio.

—Harry, o que poderá fazer?

A jovem se levantou da banqueta e se aproximou da Potter, que se inclinava já sobre o microscópio.

—Harry, não olhe! — suplicou de repente. Mas era tarde: Potter já havia visto. Sem
dar-se conta-se o havia entrecortado o fôlego. Olhou a jovem, confundido.

—Ruth —sussurrou apenas.

A estatueta lhe golpeou em plena testa.

Potter sentiu que a cabeça lhe explodia de dor e caiu de lado, sobre o
microscópio. Surpreso, olhou aquele rosto contraído pelo medo. A estatueta golpeou outra vez. Potter gritou e caiu de joelhos para diante. A mil quilômetros de distância, ouviu um soluço contido.

—Ruth —murmurou.

—Supliquei-lhe para que não o fizesse! —gritou a jovem.

Potter a agarrou pelas pernas e a jovem deixou cair a estatueta pela terceira vez, agora na nuca.

—Ruth!

As mãos de Potter perderam força. Caiu de bruços e fechou convulsivamente os
dedos no ar, afundando-se nas sombras.

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