Capítulo 12



Capítulo 12

No dia seguinte tudo se estagnou.

A lâmpada solar destruía os germes da platina, mas isso não explicava grande coisa. Potter fez uma mescla de sulfureto de alho com sangue contaminado e não ocorreu nada.

O sulfureto foi absorvido pelo sangue, e os germes continuaram vivendo. Passeou
inquieto pelo dormitório.

O alho os afastava, e o sangue era imprescindível para sua existência. Entretanto se, se mesclavam estes dois elementos, nada ocorria. Potter apertou com fúria os punhos.

Um momento..., disse. Esse sangue era de um vampiro vivo.

Uma hora mais tarde trabalhava com outra amostra. Mesclou-a com sulfureto de alho e olhou atento pelo microscópio. Nada.

O almoço lhe engasgou.

E as estacas, então? As hemorragias, ao parecer, não eram o mais importante.
Aquela maldita mulher...

Passou meia tarde tratando de concentrar-se em algo. Ao fim, de um golpe
atirou o microscópio e se dirigiu aos tropeções para a sala. Jogou-se na poltrona e ficou ali, tamborilando com os dedos impacientemente.

Felicidades, Potter, é impossível, disse mordendo os punhos. Confrontemos o
problema, pensou, conseqüentemente. Perdi a cabeça faz muito tempo. Não posso
pensar mais de dois dias seguidos sem me aturdir. Sou um inútil, um estúpido, um trapo.

Bem, decidiu encolhendo-se de ombros. Voltarei ao problema.

Há fatos indiscutíveis. Há um germe, contagioso, que a luz solar mata; o alho é uma arma contundente. Alguns vampiros dormem na terra; as estacas cravadas no coração os destroem. Não se transformam em lobos ou morcegos, mas o contágio pode atingir a certos animais, que se convertem também em vampiros.
De acordo.

Fez uma lista. Uma coluna começava com a palavra Bacilos; a outra, com sinal
de interrogação.

Começou.

A cruz. Não, isso não podia guardar relação alguma com os bacilos. Era
possivelmente algo psicológico.

A terra. Haveria alguma substância no chão que afetava aos germes? Não.
Como chegava a terra até o canal sangüíneo? Além disso, só eram uma minoria os que dormiam na terra.
A água. Podia ser absorvida pelos poros e... Não, isso era absurdo. Os
vampiros saíam também com chuva. Outro conceito para a coluna da interrogação.

Potter escreveu com o pulso tremente.

O sol. Tratou inutilmente de alegrar-se ao poder incluí-lo na coluna da esquerda. A
estaca. Não. Tragou saliva. Atenção.

O espelho. Em nome de Deus, como podia guardar relação um espelho com os
germes? A apressada escrita na coluna da direita era ininteligível.
O alho. Potter se deteve, batendo os dentes. Tinha que acrescentar mais conceitos a
a coluna dos bacilos. Era quase uma questão de honra. O alho, o alho. Como devia afetar os germes.

Começou a escrever na coluna da direita, mas antes de terminar sentiu que a raiva crescia em seu interior como a lava em um vulcão.

Maldição!

Amassou a folha com raiva e a atirou a um canto. Levantou a cabeça subitamente,
olhando a seu redor. Queria quebrar algo, não importava o que fosse. Tinha concluído, acreditava, o período congelado! gritou-se a si mesmo correndo para o bar.

Deteve-se. Não, não vou começar de novo. Passou as mãos pelos cabelos. Um
movimento convulsivo lhe colocou um nó na garganta. Estremeceu-se contendo sua fúria.
O gorjeio do uísque lhe incomodou. Colocou a garrafa de barriga para baixo e o
uísque saiu em ondas golpeando as paredes do copo e espalhando-se na mesa.

Potter bebeu o uísque de um gole, jogando a cabeça para trás.

Sou um animal!, gritou. Um estúpido e torpe ignorante!
Esvaziou o copo e o atirou ao chão. O copo golpeou contra os livros e rodou pelo tapete. Potter saltou, pisoteando-o até fazê-lo pedacinhos.
Em seguida, girando sobre seus calcanhares, voltou para bar e se serviu outro
copo. Bebeu-o rapidamente. Encheu outro. Muito lenta maldição! Bebeu diretamente da garrafa, engasgando-se, queimando a garganta e sentindo desprezo de si mesmo.

Jogou a garrafa, que foi chocar-se contra o mural, fazendo-se em pedaços. O
resto de uísque que ficou correu pelos troncos das árvores e o chão. Potter cruzou a sala, recolheu um pedaço de vidro e rasgou o mural de acima á abaixo.
Deixou cair o pedaço de vidro. Sentia uma dor persistente nos dedos. Olhou. Tinha feito um corte.

Muito bem! gritou alegremente, e apertou as bordas da ferida. O sangue caiu
gotejando sobre o tapete.

Ao cabo de uma hora estava totalmente bêbado deitado de costas no chão,
sorrindo inexpressivamente.

O mundo se destruiu, pensou. Nada de germes, nada de ciência. O mundo foi vítima do sobrenatural, é já um mundo sobrenatural. Do Bizarro Harper, A Revista de Sábado das

Bruxas, O Lugar Sinistro, O jovem doutor Jekyll, A outra mulher de Drácula, A
morte pode ser formosa, Não seja cortado pela metade, e As Grandes Vendas de
Ataúdes. Potter seguiu ébrio durante dois dias, e havia decidido seguir assim até o fim do mundo, ou até o fim do uísque. E o teria cumprido se não tivesse sido por uma casualidade.

Ocorreu na terceira manhã, quando saiu cambaleando-se ao alpendre para saber se o mundo se mantinha firme.

Havia um cão vagabundeando na calçada.

Quando ouviu o ruído da porta da rua, deixou de farejar, elevou a cabeça e
saiu sacudindo suas magras patas.

Por um momento Potter, surpreso, ficou imóvel, petrificado, com os olhos cravados no cão. O animal se afastava com o rabo entre as pernas.

Estava vivo! À luz do sol! Potter saltou para frente, afogando um grito e
tropeçando. Recuperou o equilíbrio e pôs-se a correr atrás do cão.

—Ei! —gritou, e sua rouca voz rompeu o silêncio da rua—. Vem aqui!
Cruzou a calçada.

—Ei! —chamou de novo—. Vem aqui, criatura.

O cão, pela outra calçada, corria com a pata esquerda no ar e as negras garras
arranhando as lajes.

—Veem, criatura, não lhe farei mal! —chamou Potter.
Sentiu dor no flanco e a cabeça estourando. O cão se deteve um instante e olhou para trás. Logo se meteu entre umas casas e Potter o pôde ver bem. Era castanho e branco, mestiço, com a orelha esquerda rasgada e caída.

—Não se vá!

Potter não percebeu o estremecido grito de histeria que lhe saía da garganta. O cão
desapareceu entre as casas. Gemendo, Potter correu mais depressa, sem ter em conta os efeitos da ressaca.

Mas quando chegou ao pátio o animal havia desaparecido.

Correu até a cerca e olhou ao outro lado. Nada. Voltou-se. Possivelmente o cão estava na rua.

A rua parecia deserta.

Durante uma hora vagou pelo bairro, procurando em vão e chamando de quando
em quando.

Ao fim voltou para a casa seriamente deprimido. Cruzar-se com um ser vivo,
encontrar um companheiro depois de tanto tempo, e perdê-lo tão depressa. Embora só se tratasse de um cão. Só um cão? Para a Potter era o cúmulo da
evolução planetária.

Não pôde tomar nada. Sentia-se tão débil e doente que teve que se deitar. Mas não
dormiu. Permaneceu estirado, estremecendo febrilmente, agitando a cabeça a um
lado e a outro, sobre o travesseiro.

—Vem, criatura —murmurava no delírio—. Vem, não lhe farei mal.

Pela tarde, voltou a procurá-lo. Por duas horas examinou todos os pátios, todas as ruas, todas as casas.

Quando voltou, por volta das cinco, deixou um prato de leite e uma salsicha na calçada, e os rodeou com um colar de alhos, com a idéia de que os vampiros não se
aproximassem.

Mais tarde lhe ocorreu que se o cão estava contaminado o alho o afastaria
também. Mas, então, como vagava pelas ruas à luz do dia? Possivelmente ainda
não estava doente. Mas como havia sobrevivido aos ataques noturnos?

De repente, lhe ocorreu: e se vier esta noite atraída pelo leite e eles lhe atacarem? Não poderia suportar. Suicidaria-se, pensou.

Outra vez o inexplicável enigma de sua gana de viver. Agora se entretinha com alguns experimentos, mas a vida era ainda uma viagem estéril e sem sentido. Apesar do que lhe rodeava ou podia conseguir (exceto companhia humana), aquela vida não podia melhorar, nem sequer mudar. Sempre viveria como até agora. Durante quantos anos? Trinta possivelmente quarenta, se não se destruísse antes, bebendo.

A idéia de agüentar quarenta anos mais nestas condições o estremeceu.

E, entretanto ainda não havia se suicidado. Na verdade, seguia sem comer, nem beber, nem dormir adequadamente; a saúde não lhe ia durar muito tempo. Estava fazendo armadilhas com as percentagens, suspeitou.

Mas descuidar da saúde não era suicídio. Por que não havia tentado suicidar-se?
Não sabia o que responder. Não havia se resignado ainda, nem aceitava aquela vida.
Entretanto, seguia ali, oito meses depois de que a praga tinha aniquilado a sua última vítima, nove meses desde que tinha falado pela última vez com uns seres humanos, dez desde que aconteceu a morte de Virginia. Ali estava, sem futuro e sem presente, mas ainda se mantinha na luta.

Instinto de sobrevivência? Estupidez? Excesso de imaginação? Por que não havia
se suicidado no princípio, quando estava absolutamente arrasado? O que o havia
levado a entrincheirar-se na casa, instalar um refrigerador, um gerador, uma cozinha elétrica, um reservatório, construir um estufa, um ambiente de trabalho, destruir as casas vizinhas, colecionar discos e livros, e armazenar montanhas de latas de conserva, e até — parecia incrível— colocar um mural?

Era a vida algo mais que palavras, uma força incontrolável que governava a
consciência? Tentava a natureza sobreviver á despeito dele?
Fechou os olhos. Por que tratar de raciocinar? Não havia resposta. Sua sobrevivência era um mero acidente. Muito obtuso, simplesmente, para terminar de repente.

Mais tarde reparou as partes rasgadas do mural. Os cortes ficavam dissimulados, se não se olhava de perto.

Tentou por um instante voltar a pensar no problema dos bacilos, mas lembrou que só tinha na sua imaginação o cão. Assombrado, tirou o chapéu desejando humildemente que o animal não sofresse nenhum dano. Nesse momento sentia a desesperada necessidade de acreditar em um Deus protetor. Embora, de um momento a outro, começaria a desiludirse de si mesmo.

Entretanto, conseguiu ignorar sua mente iconoclasta e seguiu rezando. Porque
queria o cão, necessitava-o.

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