III - Junho de 1978



III - Junho de 1978

Capítulo 15

Havia saído para caçar Cortman. Este era agora seu principal entretenimento, uma das poucas diversões. Nos dias em que podia deixar o bairro, e não havia reparações urgentes na casa, Capítulo 14 procurava desesperadamente. debaixo dos carros, nos matagais, nas chaminés, nos armários, sob as camas, nas geladeiras.

Em qualquer lugar onde um homem pudesse esconder-se.

Ben Cortman podia ser achado em qualquer um desses lugares, em um momento ou outro. Potter acreditava que Cortman trocava de esconderijo continuamente. Sentia, também, que amava o perigo. Se a frase não tivesse sido um contra-senso, poderia dizer que Cortman gozava da vida. Até havia chegado a pensar que agora era mais feliz que nunca.

Potter se dirigiu pausadamente para uma casa da Boulevard Compton. Era uma manhã como outra qualquer. Cortman não aparecia, embora não podia esconder-se muito longe. Pois sempre era o primeiro a chegar.

Enquanto avançava com passos rápidos, pensou outra vez o que faria se o encontrasse.

Seu plano era o de sempre: eliminação imediata. Mas não seria fácil. Oh, não sentia mais o mínimo afeto por Cortman. Nem sequer representava, para ele, uma parte do passado.

Porque o passado estava morto, e ele, Potter, tinha assumido essa morte.
Não, não se tratava disso. Possivelmente, pensou, não desejava terminar aquela
atividade recreativa. Outros eram criaturas inanimadas. Ben, pelo menos, tinha
mais imaginação. Podia ser, arriscava Potter, que Cortman tivesse nascido para ser
vampiro e seguir vivo depois de morto. Com estes pensamentos ficou sorrindo.

Em um alpendre próximo se sentou emitindo um grunhido. Logo tirou lentamente o cachimbo, e preguiçosamente o encheu de tabaco. Pouco depois uns fios de fumaça flutuavam no ar quente e tranqüilo.

Nesta época Potter havia se convertido em um homem mais corpulento e mais sereno.
A vida tranqüila de ermitão o havia feito ganhar alguns quilos, e agora pesava mais de noventa. Seu rosto havia arredondado; o corpo —sob as roupas largas— era forte e musculoso. Já fazia um tempo que havia deixado de barbear-se. Só de vez em quando aparava a barba espessa e loira. Estava com o cabelo comprido e solto.

Contrastando com a escura cor morena do rosto, seus olhos azuis pareciam mais serenos e claros.

Apoiou as costas no degrau de tijolos, jogando umas lentas baforadas de fumaça.
Naquele campo de em frente, no outro lado, ainda se conservava uma depressão onde havia enterrado Virginia, e aonde ela havia se desenterrado. Mas esta lembrança não entristecia Potter. Havia se amenizado. O tempo tinha perdido sua projeção de passado e futuro. Havia só o presente. Uma luta cotidiana sem topos de alegria nem profundidades de desespero. Sou fundamentalmente vegetativo, pensava freqüentemente de si mesmo. E por isso lutava.

Permaneceu ali um momento, olhando uma mancha branca no meio do campo. de
repente, percebeu que se movia.

Piscou. Os músculos ficaram rígidos. Um som de dúvida lhe saiu da garganta.
Logo, erguendo-se, elevou a mão esquerda para evitar o ofuscamento do sol.
Mordeu convulsivamente o extremo do cachimbo. Uma mulher.
Abriu a boca e o cachimbo caiu ao chão, mas não se incomodou em recolhê-lo. Durante um extenso momento ficou ali, de pé no alpendre, olhando.

Fechou os olhos, voltou-os a abrir. Todavia continuava ali. Sentiu que o coração lhe
golpeava o peito.

A mulher não o tinha visto. Cruzava o campo com a cabeça baixa. Potter conseguia distinguir os cabelos avermelhados, que se moviam com a brisa, os braços que caíam frouxamente aos lados. Piscou outra vez, imóvel. Era uma visão tão incrível, depois de três anos. Não podia acreditar.

Uma mulher. Viva. Sob a luz do sol.

Olhou-a, boquiaberto. Estava mais perto e via-se que era jovem. Não teria muito
mais de vinte anos. Levava um vestido branco, enrugado e sujo. A pele era morena, o cabelo avermelhado.

—Estou ficando louco... As palavras surgiram espontaneamente.

Levava tempo para se recompor de uma alucinação semelhante. O homem que morre de sede vê um lago em uma miragem.

Por que um homem que deseja desesperadamente uma companhia não tem que ver uma mulher que caminha sob o sol?

Potter moveu a cabeça de um lado a outro. Não, não era isso. Podia ouvir até suas
pegadas.

A mulher não era uma miragem. O movimento de seu cabelo, o dos braços. Seguia

olhando o chão. Quem era? Aonde ia? Onde tinha estado?

Deixou de fazer perguntas. Algum instinto saltou por um instante as barreiras defensivas levantadas pelo tempo.

Levantou o braço esquerdo.

—Ei! —gritou, dando um salto para a calçada—. Ei! Ei!

Um instante de silêncio, repentino e absoluto. A mulher levantou a cabeça e ambos se olharam.

Potter queria gritar outra vez, mas não lhe saía a voz, ficou com a mente em branco.

Uma mulher viva. A palavra se repetia a si mesmo como um eco. Viva, viva, viva...
Girando rapidamente, a mulher pôs-se a correr através do campo.
Durante um instante, Potter não soube o que fazer. Ao fim sentiu que o coração lhe sufocava e se lançou à rua. Suas pesadas botas golpearam o pavimento.

—Espere! —gritou.

A mulher seguiu correndo. Potter viu como saltava afastando-se pelo terreno irregular.

E de repente se deu conta, compreendeu que não poderia detê-la com palavras. Pensou em sua própria estupefação ao vê-la. Como ela devia ter se surpreendido ao ouvir aquela chamada no silêncio e ver aquele homem barbudo gesticulando!

Potter saltou à outra calçada e correu. Estava viva! Não podia acreditar. Viva. Uma
mulher viva!

A mulher não podia correr tão depressa como ele. Potter logo chegou perto. Ela o olhou aterrorizada.

—Não lhe farei mal! —gritou Potter, correndo. De repente a mulher tropeçou e
caiu de joelhos. Virou o rosto e Potter e viu uma vez mais aquela expressão de terror.

—Não lhe farei mal! —gritou de novo.

A mulher se levantou de um salto e correu.

Não se ouvia mais som que o dos sapatos dela e as botas de Potter. Ele
começou a saltar sobre o mato, ganhando terreno. O vestido da mulher se enredava entre as plantas.

—Pare! —gritou Potter, embora temia que ela não o escutaria.

Não o escutou. Correu mais depressa ainda, apertando os lábios. Potter fez um esforço e correu ainda mais, em linha reta. A mulher corria em zigue-zague, com o cabelo ao vento.

Potter já estava tão próximo que podia ouvir a respiração agitada da mulher. Não queria assustá-la, mas tampouco podia perdê-la. Não havia nada no mundo, exceto ela. Tinha que alcançá-la.

Outra vez o campo aberto. Os dois ofegavam. A mulher se voltou e Potter viu o terror desenhado em seu rosto: um homem alto e barbudo, de olhos decididos, perseguindo-a.

Mas ao fim alcançou-lhe. Estirou a mão e agarrou-a pelo ombro.

Sufocando um grito, a mulher se retorceu e se cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu de lado. Potter deu um salto e tentou ajudá-la. Ela retrocedeu, arrastando-se, e tratou de ficar de pé, mas esta vez caiu de costas.

—Tome —ofegou Potter, lhe estendendo uma mão. A mulher afastou a mão de
Potter bruscamente e lutou para levantar-se. Potter a pegou pelo braço, mas a outra mão caiu sobre ele e suas afiadas unhas lhe cruzaram toda a testa e a têmpora direita. Potter gemeu e soltou o braço e ela se voltou rapidamente e pôs-se a correr de novo.

Potter saltou e a agarrou pelos ombros.

—Não tema nada, por favor...
Não pôde terminar a frase. A mão da mulher lhe tapou a boca, e se ouviu somente um arquejo e uma luta e os pés que escorregavam no chão, sobre as ervas.

—Basta! —gritou Potter enfurecido, mas ela não se importou.

Saltou para trás, e a mão fechada de Potter rasgou-lhe o vestido, deixando descoberto um ombro. A mulher quis arranhá-lo de novo, mas Potter a conteve pelos pulsos, enquanto recebia um pontapé no tornozelo.

—Maldita seja!

Furioso, esbofeteou-a. A mulher baixou a cabeça e o olhou aturdida. De repente
desatou-se a chorar. Ficou-se de joelhos e cobriu a cabeça com os braços, como que
protegendo-se de outros golpes.

Potter olhou ofegando a postura retorcida. Piscou e suspirou.

—Levante-se —disse—. Não lhe farei mal!

A mulher não levantou nem a cabeça. Potter a olhou confundida. Não sabia como lhe falar.

—Disse que não lhe farei mal —repetiu.

Ela o olhou então, mas se moveu para trás, como se o rosto de Potter a assustasse.
Ficou assim, olhando-o atemorizada.

—Por que tem medo?

Potter não reparou que a sua voz era dura e estéril; a voz de um homem que perdeu todo o contato humano. Não emanava amabilidade de nenhuma espécie.
Deu um passo adiante e a mulher tornou a retroceder, gemendo. Potter lhe voltou a oferecer a mão.

—Tome, levante se.

A moça se levantou lentamente, mas sem sua ajuda. De repente percebeu a
nudez de seu peito e se cobriu com o tecido rasgado.

Passaram um momento se olhando, recuperando o fôlego com dificuldade. E agora que havia superado o primeiro contato, Potter não sabia o que dizer. Havia sonhado esta cena durante anos. Mas seus sonhos não se pareciam com isto.

—Como... como se chama? —perguntou.

A moça não podia falar. Olhava fixamente Potter, tremendo os lábios.

—E então? —exclamou Potter, e ela se estremeceu.

—R-Ruth —titubeou.

Potter sentiu uma descarga que lhe corria por todo o corpo. A voz da mulher o havia afrouxado. Qualquer pergunta agora era inútil. Sentia vontade de chorar.

Estendeu uma mão, quase sem dar-se conta. O ombro tremeu sob sua palma.

—Ruth —disse Potter com uma voz inexpressiva. Sentiu um nó na garganta.

—Ruth —repetiu.

Os dois ficaram se olhando no meio do campo, aberto e quente.

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