Capitulo 3



CAPÍTULO III

Hermione soltou um grito ao examinar-se no espelho.

- Harry, parece que estou de pijama.

Ele abriu a porta do quarto e recostou-se no batente, cruzando os braços para melhor estudá-la. Ela usava o traje que haviam comprado naquela mesma tarde, quando ele fora apanhá-la após o expediente, conforme o que haviam combinado.

Tratava-se de um gi, o uniforme tradicional dos praticantes de caratê. Calças brancas de algodão e uma túnica da mesma cor, trespassada por uma faixa; no caso dos principiantes, a faixa era branca. As cores só podiam ser obtidas por mérito do aluno, que ao demonstrar ter adquirido novas habilidades, conquistava outras cores. O grau mais alto usava a faixa preta.

Hermione parecia frágil no interior da roupa larga, que era assim para não atrapalhar os movimentos. Sua aparência não era nada ameaçadora. A cabeça voltava-se para baixo e os ombros estavam curvados, deixando à mostra a curva graciosa da nuca.

- Deixe eu dizer uma coisa, primeiro – começou Harry, balançando a cabeça com desaprovação. – A primeira regra da defesa pessoal é nunca parecer vulnerável. Em ambientes selvagens, os animais escondem suas doenças e fraquezas, até estarem próximos à morte, para não serem atacados. As pessoas não são muito diferentes disso. Um atacante em potencial começa com uma vitima em potencial.

- E como posso fazer isso? – quis saber ela, olhando desanimada para sua imagem no espelho.

- O seu porte é o de alguém que já está derrotado, não sabia disso? Seus ombros estão curvados, e a cabeça fica baixa quando anda. Você agarra bolsa com todas as forças, o que não é má idéia em si, só que a forma como faz isso dá a impressão de que carrega uma verdadeira fortuna aí dentro.

- Então o que espera que eu faça? Que ande pela rua distribuindo golpes de caratê em cada árvore que passar?

- Se aprender a derrubar árvores, garanto que isso iria desencorajar qualquer atacante – sorriu Harry. – Se não for para derrubar, é melhor não tentar nada parecido. Falando sério, agora: a gente precisa andar como se fosse o dono do mundo. E como se pudesse quebrar todos os ossos do corpo de um atacante. Muitas vezes a postura basta para afastar encrenca. Agora endireite o corpo!

Foi o que ela fez, conferindo mais elegância ao porte esguio.

- Agora levante o queixo. Não fique olhando os outros durante muito tempo, porque um homem pode considerar isso um convite, mas também não fique com a cabeça baixa como se tivesse medo de olhar para as pessoas...

- Às vezes eu tenho – confessou ela, com um leve sorriso. – As pessoas me intimidam.

- Claro. Por isso realiza um trabalho na área de relações públicas, certo?

- Quando estou trabalhando não tenho problemas, sou até agressiva demais. O que me preocupa são as relações fora do horário de trabalho. Não me dou bem, com as pessoas...

- Você sempre foi tímida, a não ser com os que conhecia – lembrou Harry.

Os olhos verdes baixaram para a boca suave coberta de batom, o que provocou a recordação do corpo dela encostado ao dele, gemendo e provocando o controle dele até o limite. Harry não pretendia casar-se, e Hermione não era o tipo de garota que ele poderia seduzir sem sentir-se compromissado. Chegara a mencionar casamento, e sabia que era isso que ela queria, na época, porém as coisas não tinham funcionado muito bem. Tornara-se uma situação desagradável, e Harry não tinha orgulho da forma como se comportara. Ao invés de dizer a ela que não tinha intenção de casar-se, simplesmente se afastara. E seu melhor amigo lhe fornecera a desculpa que buscava para fazer isso. Em todo o incidente, provavelmente Hermione sofrera mais.

- Quer parar de olhar para mim desse jeito? – reclamou ela, levantando o olhar para ele. – É muito bonzinho, me ensinando a cuidar de mim mesma, mas gostaria que não fosse...embaraçoso.

- Desculpe. Vamos voltar ao que eu dizia. Quando andar na rua, caminhe sempre, em qualquer situação, como se soubesse exatamente aonde ir. Mesmo que esteja perdida. Mantenha o queixo para cima, e encare as pessoas apenas o tempo suficiente para que saibam que foram vistas. Quando entrar no carro, esteja sempre com a chave na mão, e não na bolsa. Examine o banco traseiro, e dê uma olhada em volta, antes de entrar no carro. Uma vez dentro, trave tudo na mesma hora. Nunca entre sozinha num estacionamento depois do escurecer, nem vá ao caixa automático à noite. Algumas mulheres que cometeram esses pequenos descuidos hoje em dia estão mortas.

Hermione estremeceu.

- Você está me assustando...

- Ótimo. É bom entender que as conseqüências de deslizes como esses podem se tornar drásticas. Já parou para se imaginar sozinha com Erikson num estacionamento à noite? Ou no banco traseiro do seu carro?

- Confesso que já pensei nisso – admitiu ela. – Aliás, foi um dos motivos que me levaram a aceitar o curso.

- Muito bem! Isso significa que está disposta a colaborar.

- Estou. Mas acredito que as mulheres deveriam, ter liberdade para irem onde quer que desejem...

- Não me venha com esse papo feminista. Estamos tentando proteger sua vida, lembra? Os homens e as crianças deveriam ter esse direito, garantido em nossa bela Constituição, só que, na prática as coisas não são bem assim. O problema está no mundo inteiro. Numa cidade grande, ninguém mais está perfeitamente seguro durante a noite. Os homens também são atacados, sabia? Ainda que nem sempre pelas mesmas razões, também morrem nas mãos dos delinqüentes. Principalmente os idosos.

- Nossa sociedade é um organismo doente – observou ela, numa inesperada tirada filosófica.

- Seja como for. É aqui que vivemos. Pretendo ensinar você a melhorar as chances de sobrevivência nessa selva, por isso não me venha outra vez com essa posição feminista. Vamos lá pegue seu casaco.

- Achei que íamos ficar aqui mesmo...

- Você quer experimentar cair de costas em cima das tábuas de madeira de lei no chão da sala?

- Como assim, cair de costas?

- Eu ainda não falei nada sobre isso, não é?

- Não. Não falou – disse ela, os olhos castanhos fuzilando.

- Certo. É que no caratê, a primeira coisa que precisamos aprender a fazer, é cair corretamente. Na verdade, as primeiras aulas são completamente dedicadas a esse aprendizado básico. Nas próximas horas vai beijar o chão muitas vezes, se me permite a expressão. De costas, de lado, de frente... vai ser divertido.

- Divertido?

- Pelo menos espero que sim.

- Harry, me diga que está brincando?!

- Acha mesmo? – indagou ele, passando-lhe o casaco.

Por um momento, Hermione ficou olhando o casaco, depois para o rosto dele, e percebeu que seria sua ultima oportunidade para desistir com dignidade. Depois disso, teria de ir até o fim, fosse o que fosse.
Suspirou e estendeu a mão para o casaco. Esperava não sair com nenhum osso quebrado. Pelo menos nas primeiras aulas.

Harry tinha um amigo que dirigia uma academia. Tratava-se de um homem de meia-idade, cujo físico avantajado parecia completamente em forma. Ele e Harry pareciam conhecer-se há muito tempo.

- Então a mocinha vai aprender caratê... – repetiu Tony, parecendo divertir-se com a idéia. – Ela vai agüentar?

Hermione inflou os pulmões e encarou diretamente o amigo de Harry.

- “Ela” vai agüentar, sim – respondeu, erguendo o queixo com ar de desafio.

Tony riu com a bravata.

- Ótimo. Porque se Harry vai ser seu professor, você vai precisar de toda resistência e força de vontade que conseguir juntar. Geralmente os alunos dele desistem depois da primeira aula; isso era comum quando ele estava na policia, dando aula nas horas vagas.

Depois que o homem se afastou, Hermione seguiu Harry até um canto, onde havia um tatame comprido próximo à parede.

- Não sabia que você dava aulas de caratê naquela época – comentou ela.

- Acho que existem muitas coisas que eu fazia e você não sabia – respondeu Harry. – Sabe se esticar, não sabe?

- Claro. Faço isso quando espreguiço, todo dia, de manhã.

- Então faça um pouco de alongamento enquanto eu vou me trocar – ordenou ele, voltando-se em direção ao vestiário.

Enquanto Hermione se acomodava sobre a superfície acolchoada, observou o andar dele a afastar-se.

Com o passar do tempo, ela tornou-se consciente dos olhares dos outros freqüentadores da academia. A maior parte trabalhava em máquinas volumosas, cheias de barras e pesos. Duas jovens levantavam halteres. Outra fazia exercícios isométricos.

Repentinamente escutou gritos, vindos dos lados do vestiário, na outra ponta do amplo aposento. Olhando naquela direção, Hermione reparou que vários atletas reuniam-se ao redor de um saco de areia. Alguém praticava chutes e golpes demonstrando coordenação fora do comum; ficou um pouco tonta ao seguir os movimentos do lutador. Parou os exercícios para observar a exibição. O corpo ágil subia, concentrando a força de um chute poderoso no pesado anteparo de areia, e produzindo um ruído seco ao acertar a superfície de couro. Tocou o chão, fez um giro, e veio caminhando na direção dela, como se nada houvesse acontecido. Sorrindo.

Só então ela reconheceu o lutador. Era Harry.

Ficou olhando enquanto ele conversava com os homens, depois continuava em sua direção. O traje de caratê caía bem nele, transmitindo a impressão de força. Quando os olhos recaíram sobre o cinturão, ela não ficou surpresa ao constatar que a faixa era preta, indicando o grau máximo na prática do caratê.

- É melhor a gente parar agora mesmo – disse ela, sem fôlego. – Porque jamais serei capaz de fazer o que acabou de fazer.

- Hoje pelo menos, não vai mesmo. Já esticou os músculos?

- Acho que sim – respondeu Hermione, com um olhar desconfiado. – Era séria aquela conversa sobre me derrubar no chão?

Harry acenou afirmativamente.

- Não se preocupe. Existe a maneira certa de fazer isso. Você não vai se machucar.

Isso era o que ele pensava. Só o fato de estar tão perto dele colocava todos os sentidos de Hermione em alerta.

- Pronta para começar? – indagou ele, olhando para o relógio dela. – Tire isso. Nunca use jóias quando estiver no tatame. Pode ser perigoso.

- Desculpe.

Hermione retirou o relógio e procurou na mente por outro objeto que precisasse retirar, porém não usava anel desde que ele lhe dera um com uma pequena esmeralda, como presente de aniversário. Jamais tornara a usá-lo desde a briga, mas o conservava guardado na gaveta.

Harry aproveitou para ensiná-la a entrar no tatame, pois existia um ritual para isso. Em seguida aprendeu a cumprimentar o oponente; depois aprendeu exercícios rigorosos de aquecimento para praticar antes de qualquer aula de caratê. Hermione ficou cansada só com o aquecimento. Só então foram para o centro da área, e Harry demonstrou como cair de lado e de costas.

Passaram a hora seguinte treinando os dois tipos de queda. Numa delas, Hermione errou o tatame e caiu com o quadril no chão de cimento. Doeu.

- Você disse que não ia doer – resmungou ela, esfregando o traseiro.

- Se você aterrissar no lugar certo, ainda posso garantir que não dói. Agora volte e faça a entrada certa.

- Sim, senhor – resmungou ela, com um olhar ressentido.

- Agora caia.

- Para que lado?

- Pode escolher.

- Acho que escolho um banho de imersão bem quente, depois cama – disse ela.

- Está cansada?

Hermione hesitou um pouco, depois assentiu.

- Muito bem, gatinha. Nesse caso, chega por hoje. Atenção! Cumprimentar.

Ela curvou-se, exatamente como aprendera a fazer. Harry partiu na direção do vestiário, e Hermione recostou-se na parede, exausta.
Realizaram em silêncio a maior parte do percurso até o apartamento dela. Foi ela quem quebrou o silêncio.

- Que tipo de caratê é esse? – indagou, para puxar conversa.

- Você aprendeu rudimentos de Tae Kwon Do, uma forma coreana de arte marcial, especializada em chutes.

- Chutes?

- Você tem as pernas certas para isso, com todo respeito. Suas pernas são longas e fortes, e chutes geralmente produzem mais efeito do que golpes com a mão.

- Senti o ginásio estremecer quando você deu aquele chute no saco de areia, depois de vestir o quimono.

- Gi.

- Que seja. Gi. Estremeceu mesmo.

- Quando eu entrei para a polícia, não fazia mais nada além de treinar. Enquanto os outros caras bebiam, ou ficavam atrás de mulheres, eu estava no ginásio treinando chutes.

- Fiquei impressionada olhando para você – confessou ela, ruborizando.

- Está bajulando o professor?

- Claro que não.

- Pois se você treinar o suficiente, também vai poder fazer os mesmos movimentos – disse ele. – Muitas mulheres chegam até a faixa preta. Uma vez trabalhei com uma agente cujo grau era maior que o meu. Ela me ensinou alguns movimentos novos.

- É mesmo? – perguntou Hermione, olhando pela janela.

Harry sorriu internamente. A mulher que mencionara era uma veterana do exército, com sessenta anos. Mas não pretendia desiludir Hermione adiantando esse tipo de informação.

- Quer parar em algum lugar para tomar uma xícara de café? – ofereceu ele.

- Não posso tomar café – desculpou-se ela. – Preciso estar na cama às dez horas.

- Uau! Que tipo de vida está levando, garota?

“Nada muito excitante, com certeza”, pensou ela.

- Às vezes fico acordada, quando passa um bom filme na televisão.

- Mas você tem vinte e dois anos!

- Vinte e três.

- Dá no mesmo. Você é muito jovem para passar tanto tempo sozinha, não acha?

- Quem disse que eu fico sozinha? – retrucou ela, na defensiva. – Saio com rapazes.

Era verdade. A última vez que saíra, fora com um divorciado, que falara o tempo todo sobre a mulher. Chegara a chorar. Antes, fora um solteirão de cinqüenta, que propusera a ela que fosse morar com ele. A verdade é que nunca tivera muita sorte na escolha de companheiros, começando com o próprio Harry, cuja memora persistiu durante todos os relacionamentos posteriores.

Contudo, Harry não sabia desses detalhes, e imaginou Hermione nos braços de outro homem. Não gostou do que viu. Suas mãos apertaram com força o volante.

- Você fumava – observou ela.

- É verdade. Mas quando reparei que interferia com minha resistência física, parei completamente.

- Que bom para você – comentou Hermione.

Ele entrou na garagem do prédio dela, reparando que um carro atrás dele fazia o mesmo. Era um sedan azul.

Harry girou de uma vez só o volante, manobrando de forma a fazer a volta completa. Ficou de frente para o outro veículo, e acelerou. Não fez a menor menção de parar, e o vislumbre que Hermione teve da expressão do rosto do companheiro fez com que se segurasse com todas as forças.

Aparentemente a manobra surtiu o efeito desejado, porque o sedan engatou a marcha à ré, e cantou os pneus até sair do estacionamento e manobrar para fugir a toda velocidade.

- Miserável – resmungou Harry mais tarde, ao desligar a ignição do carro na vaga. – Talvez eu devesse dar uma surra nele, para deixá-lo no hospital algumas semanas. Aposto que ia sair bem mais calmo.

- Não! – discordou Hermione, com veemência. – Você não pode fazer isso. Ele poderia colocá-lo na cadeia.

- Pode ser, mais iria ter um trabalhão para me manter lá. Conheço muita gente na polícia de San Antonio.

- Eu pensei que estivesse fazendo a coisa certa quando contei toda para você... – disse ela.

- Você fez a coisa certa, Hermione. Os dias de gente como Erikson estão contados. Não há mais lugar para eles na sociedade. Só que seria necessário gastar um bocado de papel oficial, para não mencionar os honorários de um bom advogado, a fim de provar as acusações que todos sabemos serem verdadeiras.

- Eles podem assassinar a gente.

- Pois eu garanto que ninguém vai assassinar você – afirmou Harry. – E tem mais: depois de um mês de aulas, se ele cruzar seu caminho vai se arrepender amargamente.

- É mesmo? O que vou fazer? Cair em cima dele?

- Você está ficando boa em cair – disse Harry, com uma certa dose de orgulho.

- Muito obrigada, mestre.

- Vou acompanhar você até lá em cima. Nunca se sabe...

Ele saiu do carro, trancou-o e deu a volta para abrir a porta. Ofereceu a mão para Hermione, que aceitou. Deveria ter evitado o contato, mas quando percebeu já era tarde. O toque trouxe todas as recordações do primeiro encontro, com uma força que a apanhou desprevenida. Da primeira vez sentira emoções intensas, que se repetiam com energia incomparável. Harry parecia ter as mesmas sensações.

- Era o seu primeiro encontro, e você estava tão nervosa que tremia quando levei você para casa naquela noite – lembrou ele, reparando na surpresa estampada no rosto dela. – Estou lendo seus pensamentos outra vez? Isso prova que você não é a única com capacidade de lembrar coisas agradáveis. Bons tempos, não?

Ela não respondeu. A porta do elevador abriu-se e os dois entraram. Harry apertou o botão.

- Podíamos ter ido pelas escadas – observou Hermione. – São só dois andares...

- Fique longe das escadas – avisou ele, com voz séria. – São um ótimo lugar para uma emboscada.

- Certo.

- Isso vale para as escadas no trabalho também – acrescentou Harry.

A porta abriu-se e os dois caminharam pelo corredor deserto, até a última porta, onde ficava o apartamento dela. Ele reparou que a chave estava na mão dela ao chegar em frente à porta. Harry sorriu. Sua aluna aprendia rápido.

- Hermione?

Ela abria a porta, de costas para ele.

- Quer o final convencional para o encontro? – insistiu ele.

A mão dela crispou-se sobre a maçaneta, ao recordar a sensação de beijar aquele homem.

- Acho que não seria uma coisa muito inteligente – comentou ela.

- É, provavelmente não – concordou Harry, enfiando as mãos nos bolsos e apoiando as costas contra o batente. – O que aconteceu com Rony?

Os olhos dela voltaram-se rapidamente para ele.

- Você não sabe? Ele era seu melhor amigo.

- Isso até conseguir nos separar. Ou será que ninguém contou meu rápido encontro com ele depois do que houve? Arranquei dois dentes dele com um soco.

- Não – respondeu Hermione, puxando o casaco de encontro ao corpo, impressionada com a frieza da expressão no rosto dele. – Foi um pouco tarde demais para fazer isso, não?

- Pode ser, mais me senti bem melhor depois.

O peito largo arfava sob a camiseta leve de algodão, e Hermione reparou na sombra escura abaixo. Os pelos do peito dele provocaram outra vez as sensações de esfregar o rosto ali. Recordou o cheiro da pele sob os lábios, e os pelos macios entre os dedos.

A tristeza instalara-se nos olhos castanhos quando ela levantou o rosto para encará-lo.

- Você não chegou a me conhecer de verdade, mas gostava muito de me beijar – afirmou ela inesperadamente. – Talvez por isso não quisesse escutar quando eu disse que Rony tinha preparado as coisas.

Ele não respondeu. Os olhos verdes baixaram para os lábios de Hermione, até que ela não suportasse mais o impasse, e girasse a maçaneta.

- Da primeira vez que beijei você, você se assustou com minha língua – lembrou ele. – Fiquei espantado que nunca tivesse beijado alguém antes.

Ela ficou sem graça. Os olhos castanhos emitiram um brilho de raiva.

- Também não precisa jogar na minha cara...

- Se você não fosse virgem, nossas vidas teriam sido diferentes – insistiu Harry. – Eu desejava tanto seu corpo que não conseguia nem pensar direito. Só que você era um pouco antiga nesse ponto. Não quis saber de sexo antes do casamento.

- Ainda pode me chamar de antiga, “nesse ponto” – respondeu Hermione, abespinhada. – Meu corpo é um assunto que só diz respeito a mim. Posso fazer com ele o que bem entender, e isso inclui o celibato se eu quiser.

- Deve sentir frio nas noites de inverno – comentou Harry, com uma ponta de sarcasmo.

- Tenho um cobertor elétrico, meu bom homem, e sou perfeitamente saudável – informou ela, em tom frio. – Durmo como uma pedra. E você?

A verdade é que ele não dormia bem. Há muitos anos. As recordações de acontecimentos violentos não o deixavam em paz há muito, provocando crises de consciência e pesadelos. Principalmente nos últimos meses, com o agravamento que o levara por fim a deixar o tipo de trabalho que fazia.

- Não durmo como uma pedra, se é isso que quer saber.

- Não me admira. Com todas aquelas mulheres...

- Hermione...

Ele não podia negar. Ela engoliu a onda de ciúmes que sentia, e sorriu.

- Obrigada pela aula.

Harry baixou a cabeça, procurando acalmar-se o suficiente para evitar o assunto, que só poderia levar a uma discussão.

- Tudo bem. Vamos repetir daqui a três dias. Lembre de fazer os exercícios todos os dias, sim? – Uma sombra de medo passou pelos olhos dela, e Harry percebeu. – Não deixe ele perceber que está assustada.De jeito nenhum, em situação nenhuma. Olhe direto para ele, e mostre que não tem medo. E saia de casa sempre perto de outras pessoas. No trabalho, também.

- Certo.

Ele sorriu de forma encorajadora.

- Você é durona! Lembre-se disso.

- Vou tentar.

- Tentar não adianta. Precisa acreditar nisso.

- Certo. Obrigada, Harry.

- Estarei por perto. Se precisar, pode me chamar.

Hermione concordou, com um gesto de cabeça.

Ele afastou-se da parede e dirigiu-lhe um último olhar direto, antes de voltar-se e caminhar em direção ao elevador.

A cena pareceu despertar alguma coisa nela. De repente percebeu que não gostava de vê-lo afastar-se, numa repetição da mesma cena que tanto a traumatizara. Ainda ficava magoada, e era como se nada tivesse mudado.

Ao atingir o elevador, Harry girou para apertar o botão e deparou com ela a observá-lo. Teve vontade de voltar e tomá-la nos braços. Conteve-se, pensando que antes do curso acabar, ele mesmo iria fazer pós-graduação em controle hormonal.

Hermione levantou o braço num movimento tímido, e entrou no apartamento, fechando e trancando a porta atrás dela. Ela também lutava contra o desejo que sentia por Harry. Aquilo só iria conduzir a uma situação parecida, se ela permitisse. Não se repete o mesmo erro uma segunda vez. Resistiria a seus instintos, e seria forte.

Movida pela decisão firme de não se entregar, ela prosseguiu com sua rotina. No dia seguinte, ao sair de casa, percebeu que o odioso carro azul encontrava-se estacionado em frente. Seguiu-a durante todo o percurso até o prédio da Lancaster. Ao descer do próprio carro, Hermione olhou diretamente para Erikson, sem sorrir ou baixar os olhos.

Aquilo pareceu deixá-lo desconcertado. Harry tinha razão, pensou ao entrar em seu escritório. Funcionava mesmo. Sentiu-se segura e confiante em si mesma, como há muito tempo não acontecia.

Hermione promovia um seminário público para um negociante local, especializado em decoração de interiores. Ela conseguira a presença de um famoso arquiteto europeu, projetista do maior shopping center de San Antonio, e ainda promovia um concurso entre os moradores da cidade, onde seria escolhida e premiada a melhor decoração de ambiente. Uma das atribuições do arquiteto europeu seria julgar os ambientes inscritos; as redes locais haviam sido avisadas com antecedência para cobrir o evento, e Hermione comprara espaço na mídia para fazer a divulgação.

A organização de eventos simultâneos revelou-se um trabalho exaustivo e exasperador, e quando tudo ficou pronto, Hermione ficou a ponto de ter um ataque histérico. Irritada, encerrou o expediente tardio e saiu, desejando acima de tudo poder relaxar e dormir.

O fato de deparar com o sedan azul estacionado próximo ao próprio carro não ajudou em nada. Como um abutre, Erikson espreitava atrás do volante, num olhar desrespeitoso e desafiador.

Furiosa, Hermione regressou ao prédio e telefonou para a polícia. Foi encaminhada pela telefonista ao departamento correspondente, onde um oficial jovem conversou com ela.

- Esse veiculo está dentro do estacionamento do seu prédio srta. Granger?

- Bom, na verdade, não está. Mas está na rua, logo depois da grade do estacionamento.

- Uma via pública?

- Bem, acho que sim...

Um breve silêncio do outro lado.

- Senhorita, não gosto de dizer isso, mas sou obrigado. Não existe lei alguma contra um homem ficar sentado em seu carro, olhando para o lado que quiser, não interessa que ameaças tenha feito. Se ele na verdade nunca chegou a atacá-la, não existe coisa alguma que possamos fazer.

- Mas ele fica me seguindo!

- Se quer minha opinião, acho que a lei precisa ser mudada – disse o policial. – E tenho certeza que será. Só que, no momento, não existem meios legais para que possamos agir. Por outro lado se ele disser qualquer coisa obscena, ou encostar um só dedo na senhorita...

- Ele é um ex-policial militar, e agente de segurança – explicou ela. – Acredito que conheça a lei ao pé da letra, e não vai fazer nada que o possa comprometer...

- Desculpe por não poder ajudá-la. Gostaria muito de poder fazer alguma coisa.

- Eu também. Obrigada por me escutar.

Hermione desligou, e sentou-se com a cabeça entre as mãos. Podia telefonar para Harry, mas sabia exatamente o que ele faria. Se Erikson conseguisse apresentar queixa e provocar a prisão de Harry, ficaria com o campo livre para agir. Ela não queria que isso acontecesse. Por enquanto o miserável queria só assustá-la. Não iria arriscar-se a fazer alguma coisa que o comprometesse. Se perdesse o controle, estaria fazendo o jogo dele.

Ficou imaginando o que fazer por alguns instantes, depois tomou uma resolução, apanhou a bolsa e retornou ao estacionamento. Entrou em seu carro sem olhar para os lados, trancou as portas e deu a partida.

Mal conteve um sorriso quando olhou pelo retrovisor e percebeu que Erikson a seguia. Desta vez tinha uma surpresa reservada para ele. Avistou um carro de policia no centro da cidade, e manobrou de modo a ficar atrás dele, observando o perseguidor Erikson deixar-se ficar cada vez mais para trás.

A verdade então é que ele não estava tão confiante em sua imunidade quanto aparentara. Uma descoberta útil.

Quando o carro patrulha dobrou uma esquina, Hermione manteve-se atrás dele. Seguiu-o por toda zona central, com o carro de Erikson à distância. Repentinamente, sem dar sinal, ela virou numa travessa estreita, fez a volta no quarteirão e saiu dois carros atrás de seu perseguidor.

Reparando em Erikson, percebeu que ele virava a cabeça para todos os lados, procurando por ela, sem lembrar de olhar para o retrovisor. Ótimo. O truque funcionara.

O carro azul virou à direita, e Hermione dobrou à esquerda na rua seguinte. Despistara-o, pelo menos temporariamente. Foi um verdadeiro alívio saber que era capaz de fazer isso.

Dirigiu-se para o prédio sem perda de tempo, estacionou o carro e subiu para casa. Trancou todas as portas, e alegrou-se por ter levado a melhor.

Alguns minutos mais tarde, Hermione enxugava-se, sentindo os efeitos relaxantes do longo banho quente, quando o telefone tocou. Convencida de que se tratava do irado ex-segurança, deixou que a secretária atendesse.

A voz, contudo, não era a de Erikson.

- Você está em casa, Hermione? – indagou a voz de Harry.

Ela apressou-se a apanhar o telefone no quarto, deixando a toalha felpuda no chão do banheiro, e atirando-se na cama.

- Alô! Harry? Acabei de chegar.

- Eu sei. O que você estava tentando fazer, incitar aquele homem à violência? – perguntou Harry, zangado. – Não se pode brincar com um desequilibrado, Hermione.

- Você me viu? – espantou-se ela.

- Claro que vi você – resmungou ele.

- Mas eu não vi você...

- Essa é a primeira regra para se seguir alguém. Não ser visto.

Ela sorriu.

- Não sabia que estava cuidando de mim. Obrigada, Harry.

- Não posso estar sempre por perto, portanto faça um exercício de bom senso e pare de despistar Erikson. Ele não é idiota. Vai perceber o que você fez, e o orgulho machista dele vai deixá-lo ainda mais irritado. Esse tipo não suporta ser derrotado por uma mulher. Leva a coisa como um desafio à hombridade!

- Pobrezinho dele... E quanto a mim? Eu odeio quando ele Fica me seguindo pela cidade inteira. Será que não tenho direitos também? Liguei pára a polícia, e eles disseram que não podem fazer nada. Foram muito educados para dizer isso, mas dá no mesmo. Vamos ter que esperar ele me matar para poder fazer alguma coisa a respeito?

- Calma, Hermione. Você está ficando nervosa, e é exatamente isso que ele quer – ponderou Harry. – Use a cabeça...você é mais inteligente, certo? Se ele pretendesse machucar você, teria feito isso logo depois de ter sido despedido. Ele só está tentando levá-la ao desespero...

- Você acha pouco?

- Não é isso. Quero dizer que o intuito dele é deixá-la alterada o suficiente para fazer papel de boba.

- Não foi isso o que você disse...

- Eu ainda não sabia. No começo não tinha certeza. E ainda não tenho certeza suficiente para arriscar sua vida sem necessidade. Vamos lidar direito com o caso. Não vou deixar que ele machuque você.

A confiança no tom de voz dele infundiu novas esperanças em Hermione.

- Sei disso.

- Além do mais, quando eu terminar, você será perfeitamente capaz de tomar conta de si mesma. Nenhum valentão do tipo dele vai conseguir aproximar-se o suficiente para tirar vantagem de você, a menos que você queira.

- Quanto a isso, pode ficar descansado. Se depender de vontade...

- Amanhã mesmo vamos ter outra aula noturna, combinado?

- Combinado – concordou ela, com um suspiro.

- Agora vá descansar. Pode deixar que eu fico em contato.

Ela desligou com um sorriso. O fato de ter Harry por perto era mais do que uma garantia: era uma tranqüilidade. Afinal, as coisas estavam caminhando bem, e no final conseguiria ultrapassar essa fase ruim. No momento estava mais calma, e isso era o principal.

O telefone tocou.

Imaginando o rosto preocupado de Harry, ela atendeu.

- Esqueceu de dar algum conselho, foi?

- Foi sim – respondeu uma voz rouca e familiar. – Esqueci de dizer que os truques baratos que usou essa noite não vão funcionar de novo.

- Me deixe em paz, Erikson! – gritou Hermione, perdendo o controle. – Você não tem o direito de...

- Você vem me falar de direitos? Esqueceu que suas mentiras me tiraram o emprego, sua vagabunda? Fui despedido do meu emprego por sua causa, entendeu agora? Nenhuma vagabunda faz isso comigo. Estou cheio de ficar brincando com você.

- Escute bem, seu maníaco... – começou ela, interrompendo-se ao escutar o estalido do outro lado da linha.

Vermelha de raiva, Hermione bateu o telefone, sentiu o rosto quente. Acontecera exatamente o que Harry dissera. Que diabos será que Erikson pretendia agora?



Obs:Pessoal desculpem a demora, mas tive que fazer um trabalho enorme para a aula de economia da faculdade. Por ter feito vocês esperarem tanto, hoje vou postar dois capitulos da fic e até a noite eu atualizo "O Senhor da Paixão"!!!Espero que gostem dos capitulos!!!!Bjux!!!!

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