O menino que sobreviveu



Fazia um belo dia de verão quando Harry, Ron e Hermione chegaram ao número 4 da Rua dos Alfeneiros naquela manhã. Depois da morte de Dumbledore, tudo o que Harry tinha que fazer tornara-se mais claro e ir à casa dos Dursley pela última vez era uma das coisas que ele sentia que deveria fazer. Ron inclusive tinha melhorado sua aparatação, deixando apenas uma unha do pé ir parar na outra esquina.

- Você tem certeza mesmo que precisa voltar a este lugar horrível? - perguntou Rony, enquanto recolocava a unha no pé direito.

Harry não respondeu; apenas abaixou a cabeça e sorriu, pois tudo parecia incrivelmente correto naquele momento. Ter seus amigos com ele ali foi a melhor coisa que poderia ter lhe acontecido e ficou feliz que eles tivessem se oferecido a acompanhá-lo.

- Agora escutem - disse Harry, parando na frente de Ron e Hermione a poucos metros da porta dos Dursley - Vocês me ouvem reclamar deles há anos. Isso significa que eles não são normais. Não, Hermione - Harry interrompeu a amiga, que provavelmente repetiria que eles não deveriam ser tão diferentes de seus pais, que também eram trouxas - eles são muito diferentes de qualquer outro trouxa que você já tenha conhecido, mas nada que educação e um bom senso de humor não resolvam. Vamos!

Eles pararam na frente da porta e Harry tocou ansioso a campainha. Mal podia esperar para ver qual a reação de seu tio ou qualquer outro ao abrir a porta e topar com três bruxos na sua frente. A reação de tio Válter não poderia ser melhor e, logo que atendeu à campainha, arrependeu-se amargamente.

- Pois não. Ah, não, aaah! - E bateu a porta com um estampido.

Harry e Ron estavam se divertindo muito com a reação já esperada de tio Válter, mas Hermione não achava graça nenhuma e disse a Harry que ele deveria ter mais respeito por seus tios, que o criaram durante tanto tempo.

- Até parece que você não estava lá quando eu contei tudo o que eles já fizeram! - disse Harry, ainda rindo.

- Sim, mas já passou, e acho que todos temos assuntos mais importantes para se preocupar ao invés de ficar perdendo tempo rindo na porta da casa de parentes!

Harry e Ron se olharam e resolveram ficar sérios para não irritarem ainda mais a amiga, que estava tocando novamente a campainha. O tio Válter atendeu como se não soubesse quem estava lá e perguntou visivelmente irritado o que queriam.

- Bem, sr. Dursley, eu sou Hermione e este é Ronald, nós somos amigos do Harry e... bem, pensamos em passar aqui uma última vez para...

Mas foi interrompida pelos gritos impacientes do tio Válter virando as costas e chamando sua esposa para que ela desse um jeito naquilo tudo. Tia Petúnia chegou desajeitada e aflita, enxugando as mãos no avental e com o lenço de sua cabeça caindo à medida que andava, mas ela estava se esforçando de maneira anormal para agradar Harry, como nunca tinha feito antes.

- Ora ora, Harry querido, é você? Entre, entre... E trouxe dois amiguinhos? Ótimo... Sentem-se, já vou servir um café com bolachas. - E saiu andando rápido para a cozinha.

Os três ficaram sentados quietos e sem reação. O tio Válter não era bruxo, mas parecia ter aparatado com tal rapidez que sumiu de vista melhor do que muitos que passaram recentemente no exame de aparatação. Estava provavelmente aborrecido o suficiente por ter em sua casa não só um bruxo, mas três deles.

- Sua tia parece tão simpática, Harry, é óbvio que era tudo implicância sua e...

- Hermione, se você defender meus tios mais uma vez, eu vou dizer ao meu primo Duda que você veio aqui apenas para conhecê-lo.

Isso foi o suficiente para deixar Hermione emburrada e quieta enquanto a tia Petúnia trazia um prato cheio de bolachas e alguns copos de refrigerante.

- Podem se servir, meus queridos. Vou chamar o Duda para ver vocês. Ele está tão crescido, Harry, você tem que ver... Duda! Duuuuda?!

Harry ainda não estava assimilando direito toda aquela hospitalidade e se divertia vendo Ron olhando através do buraco das bolachas de trouxas procurando alguma coisa.


- São para comer - disse Harry, caçoando o amigo.

Ron fez uma careta em resposta e experimentou a rosquinha. Gostou tanto que fez um gemido qualquer e enfiou logo mais três na boca, quando ouviu o barulho de passos pesados descendo as escadas.

- Duda querido, venha ver quem está aqui, é o seu primo Harry e trouxe alguns amiguinhos que acho que você vai gostar...

Harry de repente percebeu porque sua tia estava simpática demais: era pela presença de Hermione. Logo suspeitou que via nela uma possível pretendente ao seu filho querido, que provavelmente nunca teve uma namorada por razões óbvias. Divertindo-se com a situação que adivinhara pouco antes ao zombar da amiga, Harry deu de cara com um Duda muito diferente daquele que vira pela última vez no último verão: estava bem mais magro, alto e forte, provavelmente devido às aulas de boxe que fazia há cerca de dois anos. Porém, a cara continuava a mesma e ele parecia um porco seboso como sempre.

- Você está vendo, Harry, como o nosso querido Duda está lindo, lindo? Ele faz musculação também agora, o que lhe dá essa aparência tão atraente a qualquer garota... - disse a entusiasmada tia Petúnia, olhando intencionalmente para Hermione, que deu um sorriso amarelo em resposta.

- Ah, oi Harry.

- Oi Duda. Você está mesmo diferente.

- É, como a mamãe disse, quer dizer... A minha mãe disse, digo...

- Ok, já entendi, você está fazendo musculação - Harry nunca tinha se divertido tanto na casa de seus tios; exceto, talvez, quando transformou sua outra tia em um enorme balão... - Mas deixe eu te apresentar: este aqui é meu amigo Ron e esta é Hermione.

Duda ficou vermelho ao olhar para Hermione, que não pôde ignorar a beleza física do primo de Harry, mas já tinha percebido que o tamanho de seus músculos era inversamente porporcional ao tamanho do seu cérebro. Ron não manifestou qualquer tipo de reação, pois estava muito ocupado tentando engolir a quantidade colossal de bolachas que tinha colocado de uma só vez na boca, fazendo tia Petúnia trazer desesperada um copo d'água e dando tapinhas em suas costas.

- Bem, acredito que queiram descansar um pouco de sua viagem, não é mesmo? - disse tia Petúnia afagando Ron, que agora estava vermelho e tentando respirar novamente - Subam, subam. Harry, em um instante arrumarei lugar para vocês três. Sugiro que a mocinha durma em seu quarto e vocês durmam com Duda, pois vocês sabem que não fica bem uma mocinha dormir com dois rapazes.

Hermione fingiu que aquilo não estava acontecendo e continuou subindo as escadas atrás de Harry e Ron, mas Duda insistia em ajudá-la com as malas.

- Muito obrigada, mas não precisa. NÃO PRECISA...




Mais tarde, eles desceram para jantar e tio Válter parecia ignorar a presença de todos, lendo seu jornal de maneira habitual e comentando com Duda o aumento do preço da gasolina mais uma vez. Tia Petúnia fazia um esforço tremendo para agradar a todos: tinha preparado um ensopado muito cheiroso, frango assado e um prato de trouxas que Ron adorou, chamado batatas fritas. Tia Petúnia fez questão de encher o seu prato com as batatas, que Ron comeu alegremente. Duda não tirava os olhos de Hermione, que passou a ignorar a situação para ver se o primo de Harry desaparecia. Concentrava-se unicamente em seu prato enquanto Harry se servia do frango e das batatas.

- Então vocês são amigos, não é? - disse Tia Petúnia para quebrar o gelo - Fico feliz que Harry tenha amigos tão... - E olhou para Ron brincando de jogar batatas para o alto e tentar acertar na boca - Alegres! - Virou-se para Hermione - Vocês já estão namorando? Você está, minha querida?

Hermione não pensou que a conversa chegaria a tal ponto, ficando mais vermelha que a cor do paletó de tio Válter. Harry percebeu que a amiga ficara sem fala e disse:

- Ela é namorada do Ron, tia.

No mesmo instante, toda a mesa ficou em silêncio. Ron se engasgou com a última batata que jogara para cima, Duda deixou cair a colher em seu ensopado, molhando toda a sua camisa nova, enquanto tia Petúnia parecia visivelmente decepcionada com a boca aberta e Hermione olhava Harry com o olhar mais raivoso que já tinha visto a amiga fazer até então. O único que não demonstrava qualquer reação era tio Válter, que continuava olhando o jornal enquanto comia lentamente uma enorme coxa de frango.

Hermione levantou irritada, jogando seu guardanapo na mesa e pedindo licença à tia Petúnia, que continuava de boca aberta e sem dizer nada. Harry sabia que tinha feito uma grande besteira, mas era o tipo de coisa que só se percebe depois que é feito, e ele não poderia fazer mais nada agora. Tudo o que percebeu é que de repente Duda parecia nutrir um ódio mortal por Ron, que também levantara e ia para o quarto, falar com a amiga. Quando Harry subiu, encontrou Ron encostado na porta, em silêncio.

- Ela trancou a porta - disse a Harry - Parece estar bem chateada.

- Eu... Eu sinto muito, Rony.

- Não, tudo bem, pra mim - e soube na mesma hora que tinha ficado vermelho com a declaração - Mas acho que não deveria ter dito algo que não é verdade.

- Não é verdade mas deveria ser! Eu acho que vocês deveriam estar juntos há muito tempo.

- Harry, cala a boca! - gritou Hermione lá de dentro, o som abafado pela porta de madeira - Por favor, não torne a situação pior do que você já conseguiu!

Ron olhou para Harry como quem diz "vamos embora" e eles desceram as escadas, dizendo à tia Petúnia que Hermione não estava se sentindo bem. De repente, parece que toda a hospitalidade tinha desaparecido e seus tios, assim como Duda, voltaram a tratar Harry como sempre fizeram. Ele deu as costas e foi se sentar com Ron na calçada. Estava escurecendo e as brigas com os Dursley tinham se tornado momentos de paz em sua vida depois de tudo o que tinha acontecido e ainda estava para acontecer. Eles conversaram sobre quadribol, o namoro de Tonks e Lupin, o casamento de Gui e Fleur e qualquer outro assunto que não envolvesse a morte de Dumbledore, a traição de Snape ou Voldemort. O tempo passou rápido e nem perceberam quando tia Petúnia gritou da porta:

- Já é quase meia-noite, entrem e venham dormir.

Ao entrarem, viram dois colchões jogados de qualquer forma na sala, com os lençóis meio sujos e travesseiros velhos com cheiro de naftalina. Pareciam guardados na garagem há séculos.

- Bom, eu não esperava algo melhor depois da decepção da tia Petúnia - disse Harry - Vamos dormir logo então, amanhã o dia é longo.

Cada um deitou em seu colchão e logo Ron estava dormindo profundamente - Harry percebeu isso depois que o amigo começou a roncar alto como nunca. Todos eles tinham mudado muito desde que entraram em Hogwarts pela primeira vez; eram tão inocentes... Por um momento, apenas por um momento, Harry desejou voltar naquele tempo quando não existia nada de guerra, mortes e comensais por todos os lados. Porém, lembrou-se que eram apenas lembranças de um tempo que não voltava mais e caiu na realidade. Ficou pensando se existiria uma hora, no futuro, quando desejaria estar de volta àquele momento, na casa dos Dursley, ouvindo o ronco de Ron e preocupado com o que aconteceria quando encontrassem Voldemort...




Já eram quase duas horas da manhã quando Harry levantou impaciente, chegando à conclusão de que não conseguiria dormir naquela noite. Resolveu ir até a cozinha pegar um copo de leite quente para ver se relaxava e conseguia dormir, o que naquela altura do campeonato parecia impossível. Enquanto abria a geladeira para pegar o leite, levou um susto ao olhar para trás e ver sua tia Petúnia parada na porta, com cara de sono e branca como uma assombração.

- Ai!

- Desculpe, Harry, se te assustei - disse - Mas... Está tão tarde, por que ainda não está dormindo?

Era a primeira vez em quase dezessete anos que sua tia lhe perguntara algo assim. Por um momento, sentiu uma pontinha de preocupação nela por ele ainda não estar em um sono tão profundo quanto o de Ron, cujo ronco podia ser ouvido alto até mesmo da cozinha. Em uma fração de segundo, ele sentiu um enorme carinho pela sua tia, irmã da sua mãe, que estava ali na porta agora mesmo perguntando por que ele não conseguia dormir.

- Ãhn...

- Eu sei o que é - disse tia Petúnia - Você está preocupado com o seu futuro agora que se tornará maior de idade, não é?

- Ah, bem, eu...

- Você quer conversar um pouco, querido?

Harry achou que finalmente estivesse dormindo e sonhando, mas queimar a mão no fogão quente o fez perceber que estava bem acordado. Sua tia sentou-se à mesa da cozinha e fez um sinal simpático para que Harry sentasse perto dela. E, quando ele fez isso, ela segurou suas mãos de uma forma agradavelmente carinhosa, como Harry jamais tinha experimentado de um parente. Por um instante, lembrou-se de sua mãe e queria que fosse ela ali sentada, segurando sua mão.

- Harry, Harry... Tem tantas coisas que nunca conversamos...

- Acredito que sim, tia.

- Você nunca teve curiosidade de saber como era a vida da sua mãe antes de conhecer o seu pai? Ou mesmo depois que começou a namorá-lo, e depois se casaram?

- Claro que sim. Sempre quis saber qualquer coisa de meus pais.

- E você nunca se perguntou, Harry, o motivo de tanto rancor de minha parte?

Harry ficou envergonhado. É claro que já se perguntara isso. Aliás, essa era a maior dúvida a respeito de sua tia - não conseguia entender como uma irmã poderia odiar tanto a outra. Como se tivesse lido seus pensamentos, tia Petúnia continuou falando:

- Sabe, sua mãe desde pequena era especial. Sim, ela fazia coisas que eu não conseguia fazer, como fazer flores desabrocharem em suas mãos e seu cabelo crescer mais depressa - Harry lembrou-se da ocasião em que fizera o mesmo, quando lhe fizeram um corte e penteado horríveis - Quando ela recebeu a carta de Hogwarts, foi uma alegria geral... Nossos pais ficaram tão felizes e orgulhosos de ter uma bruxa na família. Eu me senti a pior das pessoas, sabe, por não ter sido chamada. Achei que estava fadada a ser uma pessoa comum para sempre, vivendo uma vida normal, estudando em uma escola normal, casando, tendo filhos... Eu queria ser diferente também, ter uma vida diferente, Harry. Foi por isso que durante tanto tempo eu não fui madura o suficiente para deixar de sentir inveja de sua mãe... E quando ela apareceu em casa com aquele Tiago, er, desculpe, seu pai, foi uma alegria maior ainda. Ele era muito bonito, vinha de família bruxa e era também muito simpático. Logo de cara eu fiz questão de dizer à mamãe e papai que ele não parecia confiável, mas eles não ligavam, pois Lilly estava tão feliz com ele... Pareciam feitos um para o outro. Sua mãe era muito bonita também, além de simpática e inteligente, o que tornava fácil de imaginar como deveria ser admirada por todos na escola.

Harry não estava acreditando no que estava ouvindo. De repente, uma noite de insônia se tornou uma noite de agradável conversa com a pessoa menos provável do mundo, sua tia Petúnia, irmã da sua mãe, e ao mesmo tempo ela era a única pessoa com a qual deveria ter conversado há anos... Afinal, ela conviveu com a sua mãe mais do que convivera com seu pai ou qualquer outra pessoa no mundo.

- Você está bem, querido?

- Estou sim... Continue, tia, por favor.

- Pois então. Aí aconteceu aquilo que todos nós sabemos, não é verdade? Ela se casou e teve você, e um ano depois foi morta por... Por Aquele-Você-Sabe-Quem.

- Voldemort.

- Isso. Eu fiquei sabendo no dia seguinte, pois Dumbledore tinha deixado um bilhete na porta da minha casa, acompanhado por uma cesta e um bebê dentro: você. E você era tão pequeno, Harry... Tão meigo e tão inocente! A reação de seu tio foi o que eu já esperava - ele odiava o mundo bruxo, abominava tudo o que era relacionado, e eu acabei me tornando ressentida assim também. Mas, quando você apareceu, Dumbledore me pediu... Para que cuidasse de você.

- Quando? - perguntou Harry espantado.

- Na mesma época. Ele disse que o único lugar em que você poderia crescer seguro era aqui, pois eu era a sua única família. Grande responsabilidade, não? Então você ficou, e eu tive que acostumar seu tio Válter aos poucos. Como você deve imaginar, ele odiou a idéia. Porém, apesar de tudo, Harry, você era filho da minha irmã, e ela tinha morrido brutalmente. Como é que eu poderia recusar tomar conta do meu sobrinho querido?

- Eu nunca fui muito querido aqui.

- Oh, Harry, não fale assim! É claro que foi! Não como demonstramos com o Duda, é claro, mas tente entender o seu tio, ele sempre foi desse jeitão dele - achei que você já estivesse acostumado.

Harry não queria discutir. Ele percebeu que não havia mais nada a falar sobre a sua mãe e que a conversa não teria qualquer rumo agradável a partir de então, então resolveu pegar o seu leite e dizer que ia dormir. Amanhã teria que viajar de novo e, por isso, uma boa noite de sono seria o ideal. Já que isso não era mais possível, ele queria ao menos dormir as poucas horas que ainda lhe restavam. Já ia caminhando para a porta quando sua tia lhe chamou novamente.

- Ah, Harry.

Ele virou-se e perguntou:

- O que foi, tia?

- Durma bem, meu querido.

Harry sorriu e sua tia lhe retribuiu, desta vez da forma mais sincera que já tinha visto-a fazer na vida, e foi dormir sentindo-se pela primeira vez amado e feliz na casa dos Dursley. No dia seguinte, quando acordou, achou que nunca tivera dormido tão bem. No entanto, Ron e Hermione estavam ao seu redor, preocupados. Ele estava com sono e mal conseguia enxergar sem os seus óculos, mas sabia que alguma coisa estava errada.

- O que... o que foi? - perguntou aos dois, que pareciam aflitos.

- Harry... - disse Hermione - Sua cicatriz está sangrando.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.