Cleópatra e Meninos Perdidos

Cleópatra e Meninos Perdidos



Uma chuva fina caía lentamente sobre o castelo, e uma brisa gelada parecia persistir em entrar por casa fresta aberta na construção. Um raio riscou o céu, e Gina sentiu um arrepio percorrer a sua espinha. Levantou a gola do casaco, e voltou a sua atenção para o livro que lia.

As aulas daquele dia já haviam acabado, e Gina decidira que a melhor maneira de ocupar o seu tempo livre era lendo alguma coisa que distraísse seus pensamentos da maldita realidade em que vivia.

'Peter Pan e os meninos perdidos'. Gina não estava muito certa do motivo que a levou a escolher esse livro, entre tantos outros. Não estava muito acostumada a ler literatura trouxa, mas não podia deixar de reconhecer que aqueles caras tinham muita imaginação. Um menino que não queria crescer, e vinha da Terra do Nunca para ouvir as estórias que a doce Wendy contava aos seus irmãos. Era interessante. Um pouco infantil, porém, interessante.

Gina não pôde deixar de pensar que aquele livro fazia bem o estilo de Luna. Instintivamente, abriu a contracapa do volume para espiar a ficha de empréstimos. Conforme imaginara, lá estava registrado o nome de Luna, em sua caligrafia rabiscada, nada mais nada menos que seis vezes consecutivas.

Gina sorriu tristemente, e deslizou os dedos por sobre a folha. Oh, céus, sentia tanta falta...

- E então, o que está esperando? - Luna indagou, olhando distraidamente para o céu enquanto brincava com o cabelo de Gina.

- Esperando para quê?

- Para começar a contar a história da sua vida - Luna respondeu, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Era um fim de tarde agradável, e o sol se punha no horizonte sob os olhares das meninas, que haviam escapado da última aula da tarde para deitarem sobre a mureta da Torre Norte e observarem o dia morrer. Elas estavam dividindo displicentemente um cigarro - Gina segurava e Luna tragava -, apenas aproveitando o momento juntas.

- Não há nada de interessante na 'história da minha vida', Lu, você ficaria entediada - Gina retrucou, batendo com o indicador no cigarro para que as cinzas caíssem e levando-o outra vez para os lábios de Luna.

- Gina - Luna disse calmamente - Quantos anos você tem?

- Quinze. Você devia saber disso... - Gina falou um pouco magoada, mas Luna ignorou esse detalhe.

- Quinze anos. Então você certamente tem alguma coisa para contar. E Gin - Luna expeliu a fumaça lentamente. - Quando é que você vai aprender que tudo que tem a ver com você me interessa?

Gina suspirou.

- Ok. O que você quer saber?

- Qualquer coisa. Conte o primeiro episódio que lhe vier à cabeça.

Gina pensou um pouco e, antes de começar a falar, deu um trago no cigarro. Era curioso, mas já não se sentia tão aborrecida com relação ao fumo. Só pegava no pé da amiga por puro hábito, e também porque adorava quando Luna a calava cm um beijo. De fato, a garota até lhe dera algumas aulas sobre como fumar sem ter um acesso de tosse incontrolável.

- Uma vez, quando eu tinha seis anos, papai nos levou para acampar no lago. E eu estava apavorada, porque Fred e Jorge haviam me contado uma porção de estórias sobre os sereianos... Disseram que havia uma colônia cheia deles lá, e que era preciso tomar cuidado ao entrar no lago, pois os sereianos podiam se zangar com a agitação da água e puxar um de nós para o fundo. Então, eu fiquei observando todos nadando e se divertindo na água, de pé sobre uma pedra. De repente, Fred começou a se debater e a berrar "Socorro! Socorro! Eles me pegaram! Salve-se quem puder!", e eu acreditei e, oh, fiquei tão apavorada! Acabei escorregando no limo da pedra e caindo.

Luna deu uma risada.

- Ah, doce Gina bobinha...

Gina fechou a cara.

- Não é engraçado - resmungou. - Esse incidente me presenteu com uma cicatriz no joelho.

- É mesmo? - Luna indagou, surpresa e interessada - Nunca reparei.

- Então você não é muito observadora - Gina disse aborrecida.

- Sinto muito - Luna falou pensativamente. - Mas você há de convir comigo que, normalmente, estou ocupada com o que está acima dos seus joelhos...

Gina corou levemente, mas Luna não reparou.

"Posso ver a cicatriz?"

- Não - Gina respondeu, orgulhosa.

- Por que?

- Porque não.

- Não é justo. Você pode ver a minha, também tenho o direito de ver a sua! - protestou a menina.

- Eu posso ver a sua porque está acima dos joelhos - Gina retrucou, irônica. - Não é assim que funciona?

- Prometo não fumar por uma semana se você mostrar.

- Não, obrigada, Graças a você, eu também sou fumante agora, de modo que não me incomodo mais.

- Ah, Gin! Não seja má! - exclamou Luna.

Gina deu um último trago no cigarro, e deixou a ponta escorregar por entre seus dedos.

- Ok - disse, e abaixou a meia da sua perna direita.

- Não consigo ver - Luna reclamou.

Gina apanhou a mão dela e colocou sobre a cicatriz. Sentiu os dedos de Luna tocando-a gentilmente. "É, está aqui", a menina constatou.

Então, muito lentamente, foi deslizando os dedos para cima da coxa de Gina, entre as pernas da ruivinha. A respiração da caçula Weasley falhou por um momento.

- Quanto eu toco você aqui - Luna sussurrou em seu ouvido. - sua pele queima sob meus dedos.

- Ah - Gina exclamou, tonta - Luna, é melhor não...

- Ninguém vai chegar.

- Eu sei. Mas estamos em uma mureta no topo da torre mais alta do castelo, e, sinceramente, eu sei o efeito que você tem sobre mim. Vou perder o equilíbrio, e se eu cair você vem junto.

- Eu não vou deixar você cair - Luna afirmou com tranqüilidade - Gina, eu nunca deixaria você cair...

O último raio de sol desapareceu no poente.


- Lu... - Gina murmurou, os olhos úmidos sob a dor daquela lembrança maldosa que lhe abatera tão repentinamente. - Lu, eu sinto muito. Eu caí e puxei você comigo... Sinto muito...

***

Gina estava deitada em sua cama no dormitório feminino, sozinha. Conseguira se livrar das suas 'amigas' alegando uma dor de cabeça. Harry, compreensivo como sempre, ofereceu-se para lhe fazer uma massagem, mas Gina agradeceu e dispensou, recolhendo-se em seguida.

O clique da porta se abrindo lhe atraiu a atenção, e Gina espiou para fora da cama para ver de quem se tratava.

- Olá - disse Hermione.

O rosto de Gina se fechou.

- O que você quer? - perguntou, na defensiva.

- Quanta agressividade - comentou Hermione, sentando-se na beirada de uma das camas. - Só vim ver se você está bem.

- Eu certamente estava melhor até você chegar - Gina respondeu friamente, e voltou os olhos para o teto. Procurou ignorar Hermione da melhor maneira possível, mas não era uma tarefa muito fácil.

- Eh - Hermione sorriu lentamente. - Estava pensando nela, não é?

Gina voltou-se para a garota com irritação.

- O que foi? Agora vai querer controlar até os meus pensamentos?

- Eu não disse isso - defendeu-se Mione. - Só achei curioso você estar lendo um livro como... Peter Pan... Não achei que fosse o seu estilo. Mas Luna já alugou várias vezes, não é?

- Hermione, quando é que você vai aprender que a minha vida não lhe diz respeito? Eu leio o livro que eu quiser, e se você não gosta, estou pouco ligando.

- Ok, Gina, eu só...

- Você nada - Gina exclamou, levantando-se com violência. - Faça um favor a si mesma e pare de se intrometer no que não é da sua conta, antes que eu esqueça que algum dia tive qualquer consideração pela sua pessoa e quebre essa sua cara de sonsa.

E dizendo isso, Gina passou rapidamente por Hermione, empurrando-a, e bateu a porta atrás de si.

Inferno, será que não podia nem ficar sozinha? Quem diabos Hermione pensava que era para se achar no direito de controlá-la daquela maneira? Era um absurdo, Gina simplesmente não suportava mais. Gostaria de ter um pouco de pó mágico da fada Sininho, para poder voar para bem longe dali.

Enquanto caminhava pelos corredores do castelo, Gina tinha plena noção de que estava sendo imprudente ao extremo, e sabia que os riscos de ser apanhada por Filch eram enormes. Acabou decidindo por refugiar-se dentro do salão de inverno, onde sabia que o zelador raramente ia pois não conseguia suportar o calor das seis lareiras que aqueciam o ambiente.

Exausta, Gina largou-se em uma poltrona, e adormeceu ainda a remoer sua mais recente briga com Hermione.

***

A noite estava fria e escura, apesar de a chuva já ter parado de cair. O céu era preto, sem estrelas visíveis, e a lua estava oculta sob nuvens negras. E mais uma vez lá estava ela observando as trevas... sozinha.

Luna deu um último trago no cigarro e amassou a ponta na pedra fria do muro. Com um pulo, desceu para a segurança do chão e caminhou lentamente para dentro do castelo. Silenciosa, esgueirou-se escada a baixo, mantendo os ouvidos atentos a qualquer ruído suspeito.

Não conseguira dormir aquela noite, como de costume. Pode-se dizer que, de fato, Luna era uma insone. Durante a maior parte da sua vida, dormir sempre fora uma dificuldade. Simplesmente não conseguia, por mais que tentasse.

O sono costumava chegar somente quando o dia estava prestes a amanhecer, de modo que uma das suas características físicas mais marcantes era os olhos arregalados com olheiras escuras e profundas sob eles. Mas houve um tempo em que Luna dormia bem... quando passava a noite com Gina.

Mas pensar nesse passado era doloroso, e cada vez mais tinha a impressão de que tudo não passara de um sonho muito real.

A garota virou à direita na curva do corredor, caminhando a passos leves. Sob os braços, o livro que pegara na biblioteca para ajudar aquela noite a passar mais rápido. Precisava de um lugar para fazer sua leitura, e levando em conta o fato de ter esquecido de apanhar um casaco mais quente, decidiu que o salão de inverno era uma excelente opção.

Esgueirou-se para dentro daquela que era a sala mais quente e confortável do castelo, sentindo imediatamente o seu rosto corar com o calor do ambiente. Passou os olhos rapidamente pelo local, constatando que estava vazio, e então largou-se em sua poltrona preferida. Ajeitou-se aconchegada nas almofadas, e só então abriu seu livro.

Tratava-se de uma narrativa dramática, sobre o amor condenado de Cleópatra e Marco Antônio. Não era exatamente o tipo de livro que Luna gostava de ler. Sinceramente, quando entrara na biblioteca horas atrás, tinha a intenção de pegar mais uma vez a sua estória preferida, de Peter Pan e a Terra do Nunca. Mas alguém fora mais rápido e conseguira o livro antes dela, o que era bastante intrigante, já que quase ninguém lia escritos trouxas naquela escola. Luna, no entanto, não se importava.

Peter Pan sempre fora, desde cedo, o seu maior herói. Uma criança que não queria crescer! Luna sabia como era isso. Também não queria crescer. Nunca desejara. Crescer para se tornar mais uma hipócrita no mundo? Não, obrigada. Dispensava totalmente. Mas não era como Peter... Assim como ele, encontrara alguém para ensinar a voar. Uma ‘Wendy’. Mas, exatamente como a Wendy de Pan, a sua ‘Wendy’ também escolhera ir embora da Terra do Nunca. Peter conseguiu suportar a dor. Luna não conseguia.

E agora lá estava ela, lendo Shakespeare. Algo que, até há um tempo atrás, diria ser completamente monótono. Talvez porque não compreendesse o real significado das palavras do escritor, ou talvez porque era simplesmente... imatura.

Sim, crescera. Por Gina.

Luna folheou os páginas da obra aleatoriamente, passando os olhos pelas palavras distraidamente. “É então preciso que eu permaneça neste mundo estúpido que, privado de ti, valerá tanto como simples cocheira?” Luna entendia isso. Mais adiante, Cleópatra continuava: “Derreteu-se a coroa da terra (...) Planificou-se tudo, não ficando na terra nada mais que se destaque nas visitas da lua.” Maravilhada, Luna percebeu o quanto aquilo fazia sentido. “Agora sou uma mulher apenas, por paixões dominadas, como criada do estábulo, ocupada em vis misteres (...) Tudo é nada. A paciência é estúpida; a impaciência só fica bem para um cachorro louco.”

- Não era só um poeta, era um gênio! – Luna pensou em voz alta, extasiada. Naquele momento, JM Barrie encontrou um rival a altura no coração da garota.

Um ruído estranho despertou Luna de sua entusiasmada leitura. Ergueu a cabeça, espiando ao redor com os olhos apertados para identificar a presença de algum intrometido. Então percebeu que, de fato, havia mais alguém no salão de inverno além dela. Alguém que dormia.

Luna levantou-se e caminhou cuidadosamente até a poltrona onde se encontrava a pessoa. Ficou de joelhos. Era uma menina, a julgar pelo tamanho do cabelo. Mas estava de costas para Luna, de modo que não conseguia saber de quem se tratava. Aquele perfume, no entanto... Estendeu a mão para o ombro da garota, e delicadamente fez com que ela se virasse.

Gina.

Seu coração pulou como se tivesse levado um choque.

Oh, céus, como era linda a sua Gina... A mais perfeita flor de todo e qualquer jardim. Luna sabia reconhecer uma quando via, e aquele tremor que percorria seu corpo ao olhar para ela não lhe deixava qualquer dúvida.

Sentiu um impulso doloroso de tocá-la e sentir novamente, nem que por alguns breves segundos, a sensação do contato morno com a pele macia da ruivinha. Uma mecha de cabelo cor de fogo escorregou para a bochecha de Gina, e num reflexo Luna a afastou. Seus dedos roçaram o nariz pontilhado de sardas da garota.

- É então preciso que eu permaneça neste mundo estúpido que, privado de ti, valerá tanto como simples cocheira? – Luna sussurrou tristemente, e tocou com o indicador os lábios rubros da sua amada.

Então Gina Weasley acordou.

***

Gina levantou-se bruscamente, quase colidindo com Luna, e se sentou. A garota loira estava olhando para ela com seus olhos arregalados e uma expressão indecifrável no rosto. Nenhuma das duas conseguiu pensar em nada para dizer, e durante um longo tempo elas apenas se encararam. Gina tinha a leve impressão de que Luna a tocara, mas não estava certa de que aquilo não fora apenas parte de seu sonho. Por fim, conseguiu quebrar o silêncio.

- O que você está fazendo aqui? – perguntou, e na mesma hora desejou que não tivesse parecido tão inquisidora no seu modo de falar.

- Lendo – Luna respondeu simplesmente. – E você estava dormindo.

- É, eu estava – Gina confirmou, erguendo uma sobrancelha.

- E eu acordei você. Desculpe. – acrescentou Luna.

- Não.

- Não aceita as minhas desculpas?

- Não... você não me acordou.

- Ah... – Luna disse, pensativa. – Achei que tivesse...

- Não.

- Não? Eu achei sim, de verdade... você está mentindo?

- Não! – exclamou Gina.

- Não o quê?

- Não, não estou mentindo, e não, você não me acordou – Gina falou franzindo o cenho.

- Não mesmo?

- Não... Ah! Ok, Luna, você já conseguiu me deixar confusa – Gina concluiu com um suspiro – Portanto, vamos mudar de assunto.

Luna fitou-a, parecendo intrigada. Gina mordeu o lábio inferior. Aquele olhar... por quê ela não podia simplesmente ignorar...? Tentou evitar encarar a garota o máximo que conseguiu, mas a certeza de que os olhos azuis de Luna estavam fixos na sua figura era uma agonia. Virou-se para a menina, afinal, e sentiu suas bochechas ficarem rosadas quando seus olhares se encontraram.

- Você está diferente – Luna disse. Não era uma afirmativa, soava mais como uma constatação ou algo do tipo.

- Mudei o corte de cabelo – Gina murmurou.

- Não estou falando disso – Luna disse, inexpressiva. – E você sabe.

- Luna – Gina suspirou, desviando os olhos outra vez para um ponto qualquer na parede. – As pessoas mudam.

- Certas coisas nunca mudam – a garota disse com convicção, sacudindo a cabeça. – Só parecem ter se modificado. Como a lua, por exemplo. Passa por todas aquelas fazes ao longo do mês, e você pára, olha e pensa: diferente, está diferente. Mas, na realidade, é só o modo como a luz do sol está refletindo nela. A lua, em si, permanece sempre a mesma.

Gina precisou de algum tempo para compreender o que Luna dissera. Então sacudiu a cabeça e levantou-se bruscamente.

- A gente se esbarra, Luna – disse sem olhá-la, e fez menção de passar pela garota. Luna segurou-a pelo pulso.

- Espere.

Elas se encararam longamente. A respiração de Gina falhou por um breve segundo, mas a menina conseguiu se recompor rapidamente.

- Desculpe, Luna. Não tenho mais cabeça para os seus papos estranhos – e dizendo isso, Gina caminhou em direção à porta.

- Você prometeu que nunca iria me deixar.

As palavras de Luna soarem afiadas como uma navalha, e Gina sentiu que seus joelhos estavam prestes a fraquejar. Ela se virou para a garota, que estava de pé a poucos centímetros de distância. E foi com um choque que percebeu uma única lágrima escorregando pela bochecha de Luna, iluminada pelo fogo das lareiras.

Então não houve racionalidade ou autocontrole. As palavras morreram, e a lógica desapareceu. A máscara caiu, e os olhos de Gina se encheram de água. Correram uma para a outra e se envolveram num abraço apertado, quase sufocante.

Depois de tantos anos, Luna Lovegood finalmente reaprendera a chorar.

***

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