A bruxa e o anel de poder



Capítulo 8
A bruxa e o anel de poder


A subida íngreme não fora fácil. Isobel já não era jovem e tivera de parar diversas vezes para descansar e massagear as pernas. Além do que o fardo não estava leve. Praguejara pelo trajeto inteiro contra Sigurd que arranjara-lhe aquela empreitada, enquanto ele ficara sossegado em sua caverna admirando o medalhão, o medalhão que era dela, afirmava para si, bufando de raiva. Mas o velho Sigurd não perdia por esperar, pensara Isobel, logo teria o que merecia pela ousadia. Logo, assim que ela voltasse com a poção de que precisava.

À entrada da caverna do dragão, Isobel esperou e escutou. Não vinham ruídos lá de dentro e ela entrou, com cautela. Percorreu uma galeria e encontrou uma abertura, à direita, que levava a uma câmara de teto mais baixo. Lá ela o viu. O dragão era um rabo córneo e estava adormecido. Ocupava quase metade da câmara, era enorme e parecia estar em sono profundo pois nenhum movimento era visível. Isobel parou, bem quieta e pronta para fugir, se necessário. Segurava sua varinha numa mão e, na outra, a sacola que trouxera consigo desde a aldeia e um saco com um pequeno caldeirão. Na sacola acomodara os ingredientes da poção, os que Sigurd lhe dera e os outros que recolhera pelo caminho. Agora devia preparar a poção e antes devia achar água. Saiu da caverna e voltou pelo caminho que percorrera há pouco. Numa curva encontrou o que procurava, entre folhagens, uma fonte que atravessava a parede de pedra da montanha e escorria num filete. Encostou o caldeirão na pedra e aguardou enquanto enchia pelo meio. Então voltou à caverna e começou o encantamento.

Agitando sua varinha, Isobel invocou as palavras do encantamento e garantiu que o dragão não acordaria, destruindo seu intento. Preparou o fogão de pedras ajuntadas, formando uma pilha, como o forno onde os dragões aqueciam seus ovos para fazê-los chocar. Sobre o fogão colocou o caldeirão e, com um gesto e palavras sussurradas, o dragão abriu a boca, mordeu uma vez e começou a lançar o fogo, em intervalos regulares, como uma criança que respira fortemente na febre alta. Isobel acrescentou as ervas e metais que levara consigo, na ordem e momento apropriados, enquanto a infusão borbulhava, chiava, mudava de cor, lançava vapores no ar carregado da caverna.

Ao cair da noite estava feito. A bruxa desceu a montanha, deixando o dragão no seu sono, ignorante do que sucedera, trazendo a poção e a determinação de resgatar sua jóia.

Encontrou Sigrud sentado à porta, bebendo de uma caneca velha um líquido qualquer, diante da fogueira acesa. As chamas faziam as sombras bruxulearem na parede, criando diferentes faces no rosto do velho. Àquela luz ele parecia assustador e Isobel repassou seu plano, de modo a não esquecer de nada e assegurar-se de que teria sucesso.

–Vejo que conseguiu preparar a poção, Isobel. – disse o bruxo, após um gole na caneca.
–Sim – disse a bruxa. – Está pronta. Se é que funcionará como você disse, respondeu grosseiramente.
–Funcionará, garanto. Mas você deveria pensar muito se deve fazer o que pretende. O que fizer e o modo como fizer pode resultar em conseqüências duradouras para aqueles elfos.
– E que isso importa? Estão atrapalhando meus planos! – vociferou Isobel, buscando com o olhar uma pedra onde se sentar.
–Será motivo suficiente para escravizá-los? – questionou o bruxo, pensativo.
–Você parece ter ficado preocupado com os elfos de repente. Não pensou nisso antes de me fazer a proposta?
–Não estou preocupado com os elfos, mas com tudo o mais que não será o mesmo desse momento em diante. Você, Isobel, não pensou nisso?
–Não. – disse Isobel. – Isso não me interessa. Que mude ou fique igual, não importa para mim. Quero o que é meu de volta, só isso vale, só isso merece minha atenção e meus pensamentos. Os elfos fizeram por onde receber esse castigo. Ou acham que são melhores do que os bruxos? Não são! São como animais que falam, nada mais que isso. Ninguém sentirá falta de suas tribos sujas, suas vestes de folhas, seus costumes tolos. Nem sua magia nos fará saudade. Que chafurdem na servidão, em trapos rotos; que durmam sob fogões entre as cinzas, que esqueçam os lares de onde vieram e lambam as botas dos bruxos para sempre!

O velho bruxo fez silêncio. Ouvindo as palavras que Isobel cuspia com raiva e fervor, podia adivinhar que aquelas seriam as palavras do encantamento, os termos da maldição que Isobel estava prestes a lançar sobre os elfos da floresta. Apiedou-se das criaturas mas era tarde demais. Isobel sabia como fazer a magia e a faria, dissesse ele o que fosse; nada a deteria. A raiva que aquela mulher sentia não residia nesse mundo, pois nenhum coração humano poderia abarcar tanta mágoa e ódio. As raízes daqueles sentimentos deviam jazer em outra dimensão, uma dimensão ainda desconhecida. O sobrenatural não era estranho para Sigurd, ele vivera muito, imensamente, como nenhum outro homem, e conhecera lugares e criaturas sequer imaginados pelos bruxos comuns. Mas o ódio que Isobel destilava ele já vira antes, desgraçadamente, e lamentou que tivesse sido o instrumento de tal infortúnio. Lamentou mas não demasiado. Ele acreditava que o mal, tanto quanto o bem, tem sua hora de acontecer e ninguém sabe no que resultará, se em bem ou em mal. O futuro só pode ser previsto quando já está prestes a se realizar. Mas no redemoinho da noite dos tempos, quem poderia dizer o que é um bem ou o que é um mal? Não ele, Sigurd, que obtivera o medalhão que necessitava. Esta seria sua última aventura, se tudo desse certo e voz do poço se fizesse ouvir, e devia começar a qualquer minuto agora. Assim que Isobel erguesse o braço e buscasse a varinha no meio das vestes esfarrapadas, a apontasse para ele e tivesse a surpresa e o desapontamento de não encontrá-lo diante de si. Teria seu feitiço sido feito em vão e Sigurd já estaria em outro lugar, deixando Isobel atônita, pois não conhecia bruxo que fizesse essa magia. Isobel voltaria para casa e, depois de ter riscado um círculo no chão com a ponta de um bastão encantado, de dentro desse anel lançaria a maldição sobre os elfos da floresta, que passariam a servir os bruxos com adoração, vestindo trapos e por toda a vida, sem guardar lembranças de suas famílias, sem recordar sequer que um dia tivessem sido livres e orgulhosos. E quando Isobel tivesse invocado o entorpecimento, o perene sono da alma, o descaso da memória, uma fruta flamejante nas sombras da terra silenciada, uma espada que corta a noite, o ouro perdido e a boca amordaçada, o caminhante a esmo, a vitória das legiões, a lua refletida no lago, as brumas encarnadas, vinte anos num piscar de olhos, se faria noite e também seria dia, o gelo e o fogo, as águas e os ventos, o mundo e o tempo passariam a ser apenas algumas migalhas de pão na mesa de um mago velho que perambula à noite por um castelo frio em busca de um banheiro e a quem apenas lhe faz falta um par de grossas meias de lã, bem quentes, com que aquecer os pés solitários e cansados da longa e dolorosa jornada de decidir o destino de muitos, particularmente de um menino órfão de pai e de mãe, perseguido por um bruxo das trevas, cuja alma foi repartida em sete pedaços a fim de garantir-lhe a imortalidade, esse tolo, até que o menino, que recebeu uma cicatriz de um feitiço maligno quando ainda bebê, erguesse seu espírito acima de todas as terríveis adversidades de sua vida e, finalmente, derrotasse o bruxo das trevas para sempre.

Podia ser assim, pensou Sigurd. A vida tem estranhos e tortuosos caminhos e usa quem estiver à disposição para concretizar seus planos. Como a deusa, cuja face no poço veria brevemente.

Isobel ergueu o braço e buscou a varinha no meio das vestes.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.