See the Day



Já era final de maio. Sarah vinha estudando exaustivamente para os NIEM’s, que seriam prestados em meados de junho. Ela tinha ambições de se tornar uma curandeira e para isso precisaria de “Excede as Expectativas” em absolutamente todas as matérias.


No fim das contas, entre estudos e aparências, ela mal via Severo. As coisas tinham melhorado consideravelmente entre eles, naqueles dias. Mas ela não saberia atribuir a melhora à conversa daquele domingo ou à separação forçada. Fosse o que fosse a única certeza que tinha era a de que tudo andava longe das mil maravilhas. Mas não apenas com ela, o que era, de uma forma meio egoísta e mórbida, um consolo. Era possível ver no rosto de todos, mesmo dos nascidos trouxas, as marcas daquela guerra.


Ia chegando atrasada para o jantar naquela noite, abraçada a dois ou três livros que pegara na biblioteca quando ele passou por ela. O professor sequer a encarou, quando se cruzaram. Ele estava lívido, andava a passos mais largos do que o normal, uma mão segurava o peito com força. Ela não pode evitar olhar rapidamente para trás, mas não hesitou em seu caminho.


Dirigia-se a seu lugar na mesa da Corvinal, frustrada, encarando as duas cadeiras vazias na mesa dos professores, a de Severo e a de Alvo, quando ouviu um forte estrondo a sua direita. Mal teve tempo de erguer os braços para proteger o rosto. Numa fração de segundo se viu jogada no chão. O braço e a bochecha doíam horrivelmente. Sentiu o cheiro nauseante de pele queimada. Os livros em seus braços estavam chamuscados e provavelmente só não foram consumidos em chamas por feitiços de proteção. Olhou para cima, onde um segundanista a olhava com uma expressão de arrependimento e choque que penalizou a loira. Ele tinha a varinha em mãos e provavelmente experimentava um feitiço quando ela teve a infelicidade de passar.


Levantou-se ao mesmo tempo em que Domi chegava correndo e gritando com o pobre menino que se encolhia cada vez mais. Alastair veio logo atrás, fazendo cara feia. Sarah calou a amiga:


- Pare com isso, Domi, o garoto não fez por mal! Mas seria bom – disse ela se virando para ele – que você evitasse testar novos feitiços no salão principal. E tente ser um pouco mais cuidadoso, sim?


Ela disse com uma voz dura, pegou os livros do chão, entregou-os a Domi e saiu para a Ala Hospitalar. Alastair queria acompanhá-la, mas Sarah recusou veementemente.


As queimaduras doíam muito então ela não demorou a alcançar a enfermaria. Madame Pomfrey estava ocupada administrando uma poção a uma lufa-lufa que parecia a beira de um ataque de nervos e tentando medir a temperatura de um primeiranista rebelde, que se recusava a ficar na ala durante a noite.


Sarah entrou sem fazer barulho. Foi posta sentada em uma cama enquanto explicava o ocorrido. Logo Madame Pomfrey chegou com uma pasta laranja que começou a passar gentilmente sobre as queimaduras, quando a lufa-lufa recomeçou o ataque de choro. A enfermeira estava a meio caminho, depois de ter certeza que Sarah conseguiria passar o remédio em si mesma com a ajuda de um espelho, quando, de repente, entraram duas figuras. Uma carregava a outra, cambaleante. Severo e Malfoy.


-Ditamno, Pomfrey! Rápido!


-Por Merlin, Snape, o que aconteceu?


-Ele foi atingido por um feitiço poderoso. Rápido com isso mulher!


Ele gritou enquanto depositava o fraco Malfoy em uma cama próxima. O garoto respirava com dificuldade. Mantinha os olhos fechados. Severo não tirava os olhos dele por nenhum segundo e Sarah não ousou nenhum movimento. Foi desperta de sua observação por Madame Pomfrey que vinha com um frasco de essência de ditamno nas mãos:


-Não pare de passar a pasta Srta. May, ou não fará efeito! Passe mais! Deve deixar numa espessura razoável!


A garota se sobressaltou e voltou a espalhar o remédio laranja, mas sem tirar os olhos da cena que se desenrolava a sua frente. Severo, ao ouvir o nome de Sarah, ergueu os olhos pela primeira vez de Malfoy e a encarou. Ela não hesitou em deixar que as cenas do acidente passassem por sua mente, de forma que Severo as visse. Toda a manobra não durou mais do que poucos segundos e logo ele voltou sua atenção para o paciente, mas não sem antes deixar claro, em seu olhar: “me encontre mais tarde”.


Depois de seguir por alguns minutos as indicações de Severo, a enfermeira fechou os biombos em volta da cama do mais novo paciente. Logo depois o professor saiu, sem nem mesmo olhar para Sarah. Ela fingiu não se importar e se preocupou em conseguir a espessura certa da pasta sobre as queimaduras. Foi logo liberada, com a condição de que deixaria o remédio agir durante toda a noite.


Andava em direção ao salão da Corvinal, onde Domi e Alastair certamente a esperavam, quando viu Alicia vindo em sua direção, olhando para trás com uma expressão estranha:


-O que aconteceu?


A loira perguntou, fazendo a grifinória virar-se para ela.


-Ah, é que...


Ela, finalmente percebeu o remédio alaranjado cobrindo a bochecha e boa parte do braço direto e as costas da mão da colega. Arregalou os olhos em choque e torceu a boca de nojo.


-Minha nossa! Você está bem?


-Sim, não foi nada grave, tirando o fato de que eu vou ter que ficar com essa gosma nojenta durante toda a noite. Mas o que aconteceu?


-Ah, você pode achar que eu sou maluca, mas eu juro que acabo de ver o Harry Potter passar correndo todo molhado e sujo de sangue por aqui. Não adianta me perguntar! Eu não sei o que aconteceu!


-Bom, o Malfoy acabou de ser levado pra enfermaria. Será que tem alguma coisa a ver?


-Levando-se em consideração o amor que esses dois sentem um pelo outro... Não duvido nada! Bom, mas já vou indo, quem sabe alguém não dá notícias lá no salão?


-Ok, boa noite!


-Noite Sarita!


A morena gritou já a vários passos de distância.


Sarah seguiu pensativa seu caminho até o salão. Lá encontrou Domi que estava ainda com seus livros. Ela encarou-os, pensando se conseguiria lê-los naquela noite. Chegou à conclusão que não. Simplesmente subiu com eles e desceu as escadas novamente. Já estava a meio caminho da porta quando a voz de Alastair a chamou de volta.


Ele estava sentado em um sofá, ao lado de uma quintanista. Tinha os braços sobre os ombros dela e ela tinha as pernas passadas sobre o colo dele. Ela o encarou com certa censura, mas ele apenas deu de ombros:


-Onde você vai a essa hora? Faltam dez minutos para o toque de recolher!


-É, eu sei. Mas eu tenho uns assuntos urgentes a resolver.


-Ah – ele respondeu, entendendo de quais assuntos a amiga falava – Tudo bem, não planejava esperá-la mesmo.


A loira riu e saiu do salão descendo até o segundo andar, onde pegou o costumeiro atalho até os aposentos de Severo.


Ele chegou cerca de dez minutos depois, estressado. Foi direto até um armário, se serviu de uma generosa dose dupla de firewiskhy e sentou no sofá de frente a lareira. Fez todo esse movimento sem sequer olhar para Sarah, sentada em uma poltrona.


A loira viu o marido tomar quase a dose inteira de um só gole, se recostar no sofá e jogar as pernas encima da mesa de centro sem pronunciar uma palavra sequer. Ele passou os minutos seguintes na mesma posição, de olhos fechados.


Não suportando mais ser tão categoricamente ignorada, Sarah se levantou, roubou o copo das mãos do marido e bebeu o resto do conteúdo em um só gole, colocando o copo na mesa de centro e sentando ao lado de Severo. A estratégia deu certo, pois o professor finalmente a encarava. Ela deu de ombros:


-Eu também preciso de algumas doses de álcool às vezes!


Ela protestou.


-Maldito Potter – ele murmurou – Quase matou Draco. Eu bem estranhei as malditas notas dele em poções esse ano! Ele roubou meu livro! O idiota está seguindo as minhas instruções! Ele atacou Draco com um feitiço de magia negra! Aquele trasgo leu o feitiço e nem pensou duas vezes antes de usá-lo! Ah, ele é igual ao pai! Um obtuso, inconseqüente...


-Eu estou muito bem, obrigada, Severo. 


Sarah o interrompeu com a voz algumas oitavas acima do normal, demonstrando sua raiva mal contida. Ele a encarou. A impaciência estampada em seu rosto:


-Um aluno quase morreu hoje, Sarah! Você nem precisou de ajuda para chegar a Ala Hospitalar. Não venha me cobrar...


-Te cobrar? Eu? Porque eu faria isso? Talvez porque um idiota de um segundanista tenha explodido Merlin-sabe-o-que encima de mim, talvez porque eu tenha ganhado algumas queimaduras feias e fui parar na enfermaria, talvez porque o meu marido tenha, por acaso, passado na enfermaria e nem sequer se dignou a me dirigir o seu importantíssimo olhar na hora de sair, talvez porque ele está me ignorando completamente...


-Pare com essa criancice, Sarah! Eu tinha que voltar! Potter estava no sexto andar...


-Potter, Malfoy... Honestamente Severo! A qual dos dois você vai pedir em casamento, hum?


Ele se levantou de súbito, e ela o imitou:


-Não seja ridícula! Sei que isso pode ser um choque, Sarah, mas o mundo não gira em torno do seu umbigo!


-Ah! É claro que não! Ele gira em torno do umbigo do Potter! Ou deveria dizer, em torno do umbigo da mãe do Potter!


Uma expressão estranha tomou conta do rosto de Snape. Embora fosse uma expressão de dor, ela apenas serviu para ferver mais ainda o sangue da loira


-A Lily...


Ouvir Severo pronunciar o nome da mãe do garoto que sobreviveu com tanto carinho não ajudou em nada o mau-humor da moça:


-VAI A MERDA, SNAPE!


Ela virou bruscamente para pegar sua capa quando ambos notaram uma figura alta na porta. Ele ainda vestia uma capa de viagem empoeirada, denunciando que acabara de chegar. Dumbledore tinha a expressão de quem queria cavar um buraco no chão e sumir por ele, mas apenas perguntou:


-Severo, você queria falar comigo?


-Sim.


O professor respondeu com voz baixa, mas firme.


Sarah simplesmente continuou o movimento de pegar a capa jogada em uma cadeira e se dirigiu à porta. Alvo, porém, a parou antes que ela saísse:


-O que aconteceu com seu braço, Sarah? Você está bem?


Ela se virou para o diretor, um brilho de fúria trasbordando de seus olhos e o sarcasmo embotando em cada palavra:


-Um garoto acidentalmente resolveu experimentar um feitiço em mim, mas não foi nada grave, eu estou bem. Quer dizer, as queimaduras ainda doem um pouco e eu vou ter que dormir com essa pasta, mas acho que vai ser uma noite suportável. Obrigada por se preocupar, Dumbledore. Boa noite para você.


Ela respondeu e saiu batendo a porta da passagem com força.


Precisava de álcool. Foi a primeira coisa que pensou depois de bater a porta. Ela vinha bebendo muitos nos últimos tempos. Foi a sua segunda constatação. Mas não se importava. Não mesmo. Muito pelo contrário achava que tinha todo o direito. Então não se sentiu nem um pouco culpada quando usou um accio para a garrafa de firewhisky que ela, Al e Domi tinham contrabandeado de Hogsmeade.


Enquanto andava pelos corredores escuros do castelo, achava graça do fato de que, depois de tantos anos em Hogwarts, andar por aí depois do toque de recolher não lhe causava mais frios na barriga. Na verdade, acreditava que conhecera mais aquele castelo em suas voltas noturnas do que nas horas de estudo. Sequer pensava em Filch ou Madame Norra e realmente não se importava muito em ser pega fora da cama com uma garrafa de bebida alcoólica. Na contagem geral das coisas, ser pega fazendo algo errado na escola era o menor de todos os seus problemas.


Abriu a porta de uma sala qualquer. Esperou no escuro por um tempo, para ter certeza de que o lugar já não estava ocupado. Não ouvindo nada entrou. A sala estava escura, embora as janelas estivessem abertas. Era uma noite de lua nova e Hogwarts não era exatamente o lugar mais bem iluminado da Grã-Bretanha. As carteiras estavam empilhadas em um canto. Ela fez uma delas flutuar até perto de uma janela e sentou ali. Abriu a garrafa e não se importou em conjurar um copo. Bebeu direto dela.


Se ela entendia? Não, ela não entendia. Ou pelo menos não queria entender. Porque seu marido tinha mesmo que se meter naquela merda por causa do filho de uma mulher que estava morta há quinze anos, sendo que ele era, no presente momento, casado com ela, Sarah, por livre e espontânea vontade.


Aquilo simplesmente não fazia o menor sentido! Suspirou.


Como se qualquer guerra fizesse algum sentido afinal de contas. Como se eles sequer tivessem a chance de fugir dali. Era tudo o que ela mais queria. Mudar dali. Ir para uma tribo africana, que seja! Mudar de identidade, de aparência, mas não ter que viver tudo aquilo.


Mas ela sabia que Severo nunca faria isso e mesmo que fizesse, o Lorde das Trevas os encontraria e mataria antes mesmo que tivessem a chance de dizer “África”.


O que não fazia nada daquilo menos frustrante. O que não fazia com que ela não se corroesse de ciúmes, sabendo que principal motivo para seu marido fazer o que estava fazendo, a ser um espião duplo e a arriscar a vida, era o amor eterno que cultivava por uma mulher que o desprezara e já estava morta há tantos anos. Uma mulher que ele talvez amasse muito mais do que a ela, Sarah. O que não era de se espantar a julgar pela reverência com que todos falavam daquela ruiva. Doce, gentil, boa, monitora-chefe certinha... Vaca! Totalmente o oposto de si: loira, geniosa, egoísta, fã de uma boa farra.


Tomou um grande gole da garrafa em sua mão. Como competir com a perfeição? Como competir com um fantasma? Notou que chorava.


Outra coisa que ela vinha fazendo com alarmante freqüência. Chorar. E ela detestava chorar. Mas às vezes simplesmente não podia evitar. Não guardando tantos segredos, vivendo sempre tão tensa.


Bom, mas ela sempre soube que não seria fácil. Não se casou ignorando nada do que estava acontecendo e do que estava por acontecer. Não se casou ignorando o fato de seu marido ter uma marca negra no braço, nem que ele trabalharia como espião duplo, e que ele poderia morrer a qualquer instante. Não se casou ignorando que não poderia contar a ninguém sobre as alegrias e angústias de seu casamento porque isso poderia implicar não apenas na sua morte como a de seus amigos.


Mas não era fácil! Mesmo sabendo de tudo o que estava por acontecer. Ainda lhe doía fundo. Tanto quanto saber que teria que dividir o amor de seu marido para sempre com o fantasma de Lilian Potter.


Mais ou menos nesse ponto de suas divagações, Sarah começou a perder a noção do tempo. Suas pernas foram ficando moles, seu corpo formigava de leve. Já não sentia mais a ardência ou o gosto da bebida que consumia e muito menos notava que o conteúdo da garrafa ia diminuindo cada vez mais rápido. As estrelas que vinha encarando passaram a se embaralhar.


Depois de muito chorar e divagar, sem realmente chegar a nenhuma conclusão a não se de que talvez ela realmente tivesse feito uma pequena tempestade em copo d’água hoje, ela notou que a garrafa estava vazia. Bufando, decidiu que era hora de voltar para seu dormitório, já que teria que acordar cedo no dia seguinte.


                Mas assim que se ergueu sentiu a sala toda rodar. E ficou enjoada. Ficou muito enjoada. Tanto que mal teve tempo de desviar o rosto da mesa. Ainda tentou limpar o chão da sala, mas descobriu que “Evanesco” se tornara um verdadeiro trava-língua. E também descobriu que estava cansada demais para ir embora dali. Simplesmente sentou de volta na carteira e dormiu apoiada em um braço. Enquanto o outro permanecia dependurado, derrubando a garrafa vazia de firewhisky com um barulho relativamente alto, que ela não escutou. 


 


 

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