Capítulo Quatorze



O clima frio e a neve dessa época do ano não são suficientemente fortes para aplacar o desejo de um caçador. Especialmente os que não se contentam com aves ou pequenos animais.


Caçadores como eu excitam-se com os menores e significativos movimentos de suas presas. Gostam de analisar pequenos aspectos de sua vida, lugares que costumam ir, onde trabalham. Cada reação estudada carinhosamente, detalhadamente, como se nossa própria vida dependesse disso.


Não sei ao certo quando esse instinto poderoso nasceu em mim; acredito que seja uma herança autossômica, em que eu apenas desenvolvi, ou talvez tenha sofrido uma mutação que me transforme em alguém especial, provavelmente único.


De qualquer modo, não sinto vergonha de dizer que gosto de caçar. Isso é normal do ser humano, mas apenas poucos conseguem romper as barreiras impostas pela sociedade e admitirem tais pensamentos macabros, como a excitação ao vislumbrar o medo e o horror nos olhos de sua presa, o suor misturado ao medo. Sua conquista estendida ao chão, dominada. Aceitando o terrível fato de que fora derrotada, e que aquele era o momento de consentir com o desejo de seu dominador: a morte.


Anos a fio passei por essa experiência libertadora. Minhas presas inevitavelmente eram as consideradas fracas e dóceis criaturas, as mulheres, mas nego-me a dizer que algumas de minhas vitórias eram fraca ou facilmente subjugadas. Não. Jamais me contentaria com menos.


Sempre foram mulheres fortes, dotadas de uma inteligência perspicaz e um brilho sagaz e cativante em seus olhos. Bruxas talentosas.


Minha vitória era observar toda aquela força ser substituída pelo terror de saber o que viria a seguir quando eram capturadas: eu exigiria meu prêmio.


No ato da conquista eu não sei exatamente definir o que me dava mais prazer: os cabelos esparramados ou grudados na pele encharcada de suor, fruto do puro pânico e desespero, ou o contato com suas peles femininas, cada uma com seu cheiro único. Assim como o cheiro de seu sangue.


É perdido nessas lembranças doces que me sento em um dos bancos no St. James Park, próximo ao DICAT; apenas um homem solitário supostamente pintando uma bonita paisagem em sua tela de pintura.


Consigo me lembrar perfeitamente de cada vitima, e dos gritos de terror que emitiam quando meu corpo entrava em contato com os delas, ou quando suas peles eram cortadas com uma perícia que chegava a ser médica.


Com um suspiro de prazer, minha atenção se volta para a entrada do Departamento de Aurores, no momento exato em que um casal parecia pronto para voltar para o aconchego de seu lar.


O homem alto e de cabelos negros entrelaçou sua mão com a da mulher ruiva, que pareceu comentar alguma coisa com ele, que assentiu em silêncio. Não estamos tão distantes para que eu não possa perceber os traços delicados do rosto da Auror ruiva.


Ambos pareciam atentos, mas percebo que a mulher não nota a maneira como o corpo do homem se comporta perto dela. Ele se coloca próximo o suficiente para que sirva de escudo humano caso aconteça alguma espécie de ataque surpresa. Sabendo exatamente quem é o sujeito e a mulher, pergunto-me se essa reação se deve ao fato das cicatrizes de Guerra, estas nunca esquecidas. A sombra de que algo terrível e nojento sempre pode acontecer.


Noto, também, o olhar que ele dirigiu a mulher em seguida, que a mesma não percebeu. Uma superproteção, um olhar que imaginei beirar a dor íntima tamanha fora sua intensidade. Um olhar que apenas os tolos tinham.


Eles caminham o suficiente para estar próxima a entrada do parque, agora. As íris verdes do homem de cabelos negros encontram as minhas e eu, como um mero pintor naquela tarde de inverno, apenas sorrio como um cumprimento. Como um bom cidadão


Como quem reconhecia a vitória do famoso Harry Potter sobre o Lorde das Trevas.


Decidindo que talvez eu não fosse alguém digno de suspeitas, ele abraça a mulher pelos ombros e em poucos segundos depois ambos aparatam. Volto-me para a tela, quase pronta com a paisagem eterna do parque, mas com meus pensamentos na jovem mulher ruiva.


Oh, sim. Eu também sei quem ela é. Ela seria mais uma caça perfeita... Aquela que eu faria todos os esforços para conquistar. Imaginei por um momento como seria sua face contorcida pelo terror, seu cabelo vivo como fogo bagunçado e molhado, e me perguntei como seria seu cheiro. Abri um pequeno sorriso com tais pensamentos involuntários. Seu pescoço alvo, sua pele branca e de aspecto macio, seus olhos grandes e castanhos.


As circunstâncias que me trazem a Inglaterra dessa vez são um pouco diferentes do que foram durante toda minha vida. Receberei meus prêmiosé claro, meus méritos por tudo que tenho feito, mas os motivos agora são outros.


Vejo considerável ato de nobreza misturado com uma ligação mais forte que de amantes em minha nova relação, além de características em comum.


Encontrei um novo caçador, ambos com suas afinidades e diferenças. Mas que, de certo modo, se complementam.


E nesse complemento é que atingiremos ambos os nossos objetivos.




- Não teremos aula de anatomia hoje.


 


Sarah estava sentada em uma cadeira encostada à parede no pequeno pub na Londres bruxa, próxima ao Caldeirão Furado, quando ergueu seus olhos do seu café com chantilly e encarou Malfoy quando o mesmo se aproximou com este comentário sarcástico.


Ali costumava ser o point de todos os que trabalhavam no DICAT, depois de um dia exaustivo de trabalho. Como o tempo estava naturalmente gelado para aquela época do ano, a Auror havia sugerido aquele local que, apesar de ser simples, era aconchegante e serviam o melhor café e derivados do país. Como metade de sua vida em que passara na Inglaterra Draco nunca fora de sair muito por causa do hábito de seus pais sobre "ralé", ele simplesmente concordara, mesmo que odiasse admitir que o local, por mais simples que fosse, era interessante de se ficar.


Sarah colocou a caneca sobre a mesa, ainda que suas mãos estivessem sobre a caneca. Ela franziu o cenho e perguntou:


- O que quer dizer com isso?


Draco sentou-se à sua frente e encolheu os ombros.


- Parece que a esposa de Neville entrou em trabalho de parto.


A mulher arregalou os olhos, antes de soltar uma pequena exclamação de prazer.


- Meu Deus, eu não sabia que já estava na hora.


- Seu chefe não pareceu gostar muito disso, mas Neville disse que diferentemente do filho dele, o morto não iria criar uma nova vida, ou nascer, ou alguma coisa do tipo.


- E Nathalia? Nathalia Fernandez também é legista.


- Ao que parece, saiu de férias com a família.


Sarah girou os olhos, mas ainda conservava o sorriso sobre a notícia do nascimento do filho de Neville. Depois de tudo que havia passado no ano anterior com a quase morte de sua esposa, Neville merecia ser feliz.


Uma das garçonetes apareceu com um bloco de anotações em mãos. Os cabelos quebrados e castanhos estavam presos em um coque desajeitado e ela tinha a aparência de estar na casa dos quarenta. Não havia nada de extraordinário em sua aparência além do sorriso simpático.


Ela abriu um pequeno sorriso para Sarah, como de alguém que já a conhecia um pouco, mas que pareceu sumir quando seus olhos encontraram o acompanhante da Auror naquele dia.


- Vai querer mais alguma coisa, Sarah? – ela perguntou, seus olhos exibindo uma simpatia educada.


A Auror olhou para Malfoy, como quem perguntava se ele gostaria de algo. Como Draco negou com um gesto pequeno, ela sorriu para a garçonete e agradeceu.


Conservando ainda a expressão educada e simpática para Sarah, a garçonete olhou profundamente para Malfoy antes de voltar para o balcão.


Draco Malfoy balançou a cabeça com uma sensação depreciativa que invadiu a boca de seu estômago, mas logo a esqueceu quando dirigiu sua atenção para Sarah mais uma vez e viu o riso estampado em sua face.


- Ela gostou de você. – Sarah comentou casualmente, mas seus olhos brilhavam em pura malícia. Malfoy apenas encolheu os ombros e disparou desdenhoso:


- É o charme Malfoy, você sabe. – aquilo pareceu diverti-la sinceramente, porque soltou uma gostosa risada antes de voltar a tomar seu café.


Enquanto observava os pequenos gestos e atitudes da Auror, Draco se sentia impressionado com aquela mulher que inicialmente desgostara com todo seu fôlego.


Realmente, no primeiro momento nenhum dos dois haviam realmente admirado o fato de que trabalhariam juntos, e o sentimento de desgosto havia subitamente aumentado quando as respostas grosseiras disparavam de ambos os lados desde o início. Entretanto, por mais que existisse um ar de irritação entre os dois, ele admitia amargamente – ou talvez não – ter um pensamento positivo em relação a ela.


Ele gostava do modo que ela trabalhava. Adaptava-se com facilidade com as pessoas que trabalhava em parceria, isso ficara estupidamente óbvio quando conseguiram se safar dos Confundidos do Restaurante como se atuassem em dupla há muito tempo. Não apenas isso, mas estava impressionado com toda a intensidade que ela colocava agora sobre a investigação de Rostova.


Intensa, passional. Facetas de Madison que ele não conhecera logo de primeira, e que agora iam sendo descobertas aos poucos.


E, obviamente, ele não poderia negar o que era mais claro; a mulher era diabolicamente linda.


Seu interior aos poucos ia convencendo-o de que não adiantava negar o que era tão claro: qualquer homem com sangue nas veias a veria primeiro como a mulher estonteantemente bela que era e finalmente depois perceberia o que a capa vinho sobre seu corpo significava. Tanto fora quanto dentro do DICAT, ele pensou com um surto de aborrecimento ao se lembrar de David Connor e os olhares que lançava sobre Sarah. Olhares provando a marca deixada por ela, onde ele sentia falta da mulher que talvez um dia tivera.


Sem contar o peso que sua personalidade fazia. Seriam poucas as mulheres que teriam a força que ela tinha, a determinação a intensidade depois de tudo que haviam passado na infância. Isso ele era obrigado a admitir também. Até ele próprio fora covarde, e por certo tempo fora um tremendo de um idiota até decidir fugir com sua mãe para um local seguro dos Comensais, mesmo que isso significasse pedir ajuda a Potter.


Ele a observou aninhar a caneca em suas mãos e observar o líquido escuro em silêncio, com o cenho franzido, perdida em sua linha de raciocínio. Por fim, ergueu os olhos do líquido e fitou Malfoy com intensidade.


- Quando você entrou para o caso Rostova?


Malfoy apoiou os cotovelos sobre a mesa e descansou o queixo entre as mãos.


- Talvez doze ou quatorze meses depois de ter entrado nos territórios russos, sob juramento de servir aquele país, esquecendo o passado e o transformando em minha pátria.


- Mas você mencionou hoje que os assassinatos já vinham ocorrendo mesmo antes de você chegar.


Ele assentiu.


- Correto.


Ela largou a caneca sobre a mesa, e cruzou os braços sobre a mesma, inclinando o corpo como se pudesse chegar mais perto dele, abaixando o tom de voz.


- Os russos têm muito prestígio no departamento investigativo e infiltração. Como Rostova ainda está livre e impune?


Draco ergueu as sobrancelhas.


- Os assassinatos vêem ocorrendo há quase três anos. Todos estavam muito preocupados com Voldemort e sua política ditatorial, e a Rússia não era essa potência em tal área ainda, na época.


- E quando se tornou...


- Rostova saiu do país. – ele terminou sua linha de pensamento. – É, mais uma vez certa. E de certo modo, Rostova continua impune porque grande parte dos Aurores responsáveis pela operação inicial ou estão aposentados ou mortos por causa da Guerra.


Sarah fechou um punho e o levou aos lábios, apoiando sua cabeça em sua mão. Distraidamente, mordeu o dedo indicador na base levemente, alheia a seu gesto.


- Você disse que não há um padrão nas vítimas.


- Bem, homens, mulheres e crianças são mortos, mas não, não há um padrão... Não dá para saber exatamente qual é a vítima que ele quer. Existiram vezes em que duas mulheres haviam sido mortas em um determinado período de tempo, e foi quebrado com uma morte de um homem particularmente mais rápida que de ambas em questão de dias e meses.


Ela bufou cansada.


- Que tipo de ritual é esse, então?


- Você já está assumindo que é um ritual? – Draco franziu o cenho. Sarah o encarou.


- Bem, e para que serviriam as velas?


Ele encolheu os ombros.


- Talvez porque ele ache mais prazeroso? Matar a luz de velas? Talvez faça parte de seu desejo interno. Você sabe, há assassinos em que seu prazer, seu fetiche durante o assassinato é ter uma platéia, outros com qualquer outra vontade bizarra. Às vezes o desejo bizarro de Rostova seja criar um ambiente funesto.


- Isso é ridículo. – Sarah objetou enojada.


Isso é a mente dele. Temos que pensar como nosso assassino.


- Tecnicamente complicado – ela interpôs. – uma vez que não sabemos direito o que ele quer, nem o que deseja.


- Só vamos poder tirar algumas conclusões após a autópsia.


Ela suspirou derrotada. A alegria antes que sentira sobre o nascimento do filho de Neville evaporara com o pensamento egoísta de que o pirralho poderia ter esperado mais um pouco para vir ao mundo.


- Eu sei. - resmungou, descansando as mãos sobre a mesa.


Draco Malfoy estendeu uma das mãos sobre a dela e a apertou gentilmente.


Sarah ergueu os olhos ao contato, sentindo o calor que ele emanava, e mesmo que aquele gesto fosse puramente singelo e para confortá-la, não conseguiu evitar – ou até mesmo entender sua reação ilógica – de sentir suas bochechas mais quentes, o que era realmente ridículo de sua parte.


Talvez fosse por causa da constatação que tinha sobre ele e estava equivocada. A primeira imagem que tivera de Draco Malfoy fora de um homem frio e aparentemente desprovido de emoções. Estressava-se ao vê-lo falar com tanta indiferença sobre as inúmeras mortes causadas por Rostova, ou pela postura implacável e o ar distante. Agora, o contato de sua mão contra a dele constatava justamente o inverso do que pensara.


Ele balançou a cabeça. Seus cabelos louros hoje não estavam impecavelmente arrumados e ela viu uma cumplicidade genuína em seus olhos.


- Não vai adiantar pensar nisso hoje então, vai? Guarde suas energias, Sarah.


Eles ficaram em silêncio se encarando, as íris acinzentadas fitando profundamente as íris azuis. Por fim, Sarah retirou sua mão daquele toque acolhedor e assentiu.


- Você tem razão. Mas eu duvido que vá esquecer esse assunto.


- Não esperaria outra reação sua, se quer saber .- ela percebeu que ao dizer aquelas palavras, ele havia deixado escapar a promessa de um sorriso. - Mas se isso ajudar um pouco, Nikolaievich está pesquisando pessoalmente antigos relatórios a respeito de Rostova. Qualquer informação vital a investigação será imediatamente enviada.


Ambos levantaram-se da mesa e Sarah pagou por seu café. Voltaram a conversar apenas quando decidiram caminhar por Londres e foram presenteados pelo frio do inverno londrino, onde a Auror se encolheu em seu casaco e enfiou as mãos no bolso da mesma. Ele, acostumado com o inverno russo, não pareceu incomodado.


- Como conseguiu ser aceito pelo Departamento russo, mesmo tendo sido um Comensal?


Aquele seria o tipo de pergunta que Draco rebateria com uma resposta seca e grosseira para qualquer pessoa, fato que realmente acontecera algumas vezes quando fizeram a mesma pergunta. Aquilo era o tipo de lembrança e situação que dizia respeito apenas a ele, e ninguém além dele, Nikolaievich e, infelizmente, Potter, sabiam.


Entretanto, além de não ter percebido nenhum tom maldoso por trás de suas palavras, imediatamente lembrou-se do dossiê de Sarah Madison. Teve o pensamento nojento de que pelo menos ela jogava às claras, perguntando o que queria saber. E ele? Lia escondido e fazia de conta de não sabia de nada.


Muito a contra gosto, franziu o cenho, ignorando as íris azuis dela e respondeu com a voz rouca e baixa:


- Teve um dedo do maldito Cicatriz na história. – assumiu aborrecido. – Ele sabia que eu nunca quis ser Comensal, não por vontade própria, pelo menos. Conseguiu fazer a cabeça de Nikolaievich, e eu também entreguei informações vitais sobre organizações de políticas a favor da de Voldemort na Rússia. Na verdade - pigarreou. – Foi graças a isso que descobriram que o Ministro anterior estava envolvido até o pescoço com Voldemort. Detalhes a parte, também passei por um treinamento e testes dos diabos para conseguir ganhar uma gotícula da confiança de Nikolaievich.


Draco Malfoy franziu o cenho e terminou com sarcasmo: - E aqui estou eu.


Sem contar o quanto você deve ser estupidamente bom, Sarah pensou. Nenhum Auror entrava no Departamento russo apenas por causa de fatores como aqueles desde que Nikolaievich assumira o poder e fizera uma revolução na comunidade mágica russa.


- Hum. – ela disse apenas.


Caminharam em silêncio por mais algum tempo, até fora a vez dele de manifestar alguma curiosidade em relação a sua vida:


- E você tem algum motivo especial para ter decido ser Auror?


Ah, Deus, com certeza. Sabendo que não poderia fugir daquela pergunta uma vez que também perguntara sobre a vida dele, olhou para o lado oposto de Draco enquanto caminhavam e respondeu amarga, os pensamentos perdidos em um dia de Natal:


- Descobri muito cedo que o mundo não era a bolha segura que eu estava acostumada a viver. – ela encolheu os ombros. – Decidi enfrentar o perigo que enfrento todos os dias para ser boa o suficiente para impedir que pelo menos um terço do que os monstros soltos pelo Mundo Mágico não alcance seus objetivos. – em seguida, Sarah abriu um pequeno sorriso, mas estava longe dos olhos. – De qualquer modo, isso talvez estivesse no sangue. Tanto meu pai quanto meu irmão são dessa área. Fui criada praticamente nesse ambiente, de ordem e desconfiança alheia.


Draco colocou as mãos no bolso e continuou a caminhada com a Auror, agora silenciosa. Suas íris perscrutaram cada mínimo gesto que aquela mulher deixava escapar, cada detalhe que revelava um pouco mais sobre ela.


Soube imediatamente que sua face também emitira dor ao vê-la estampada na face dela. Não entendeu por que, mas julgou por ambos terem um passado em comum.


Ambos tiveram suas bolhas perfeitas estouradas tão cedo.


- Talvez – ele disse baixinho. – tenha sido inocência pensar que teríamos mais paz agora com Voldemort morto.


Eles cortaram a rua, e Sarah percebeu que iam para o apartamento dela, que era estupidamente perto do DICAT. Assentiu.


- Voldemort não era o único monstro que existia nesse mundo, você sabe.


A neve voltou a cair antes que eles alcançassem a portaria do edifício. Mesmo detestando aquele frio, Sarah não apressou o passo. Ao contrário, tanto ela quanto Malfoy havia parado, ele a sua frente.


Aquele momento era completamente inusitado e, em sua opinião, estranhamente normal. Como se fosse natural aquele desconhecido ficar tão próximo a ela, como se seus olhos pudessem ler sua alma.


Ela entendeu porque aquilo acontecera. Sarah e Draco encontraram um no outro não apenas uma companhia relativamente agradável em certos momentos, mas pontos em que ambos eram iguais; situações e momentos em seu passado que os tornavam idênticos. Eles eram o que eram atualmente graças ao que passaram, ainda que nem ele nem ela soubessem os detalhes sórdidos a fundo de cada um.


Draco Malfoy por sua vez sentiu-se perdido no oceano dos olhos de Sarah. Nunca havia visto um tom tão vivo de azul, tão intenso. O vento frio roçava nos cabelos negros e soltos da Auror, balançando-se suavemente sobre seus ombros cobertos pela grossa capa de frio; as maçãs do rosto estavam levemente rosadas, e ele vislumbrou o repentino ar de garota, a mesma garota com sorriso traquina naquela foto de tempos de escola, não da mulher estonteante que todos estavam tão acostumados a ver.


Ambos só perceberam que estavam estupidamente próximos um do outro quando a neve finalmente começou a gelar as mãos de Sarah. Eles tiveram sua surpresa estampada nos olhos, e afastou-se, ele pigarreando e ela esfregando as mãos. Como se o acontecimento não pudesse ser mais patético, ambos estavam enrubescidos.


- Erm... – Sarah passou a mão pelos cabelos, decidida a voltar para sua postura anterior. – É melhor entrarmos.


Draco Malfoy apenas assentiu, parecendo ter sido mais rápido ao recobrar a postura aborrecida que costumava ter com freqüência.


Ai meu Deus, ela pensou, o que diabos havia sido aquilo?




"Era você".


 


Ginny sentou-se em sua cama, observando a neve se acumular no parapeito da janela. A rua estava deserta, iluminada graças aos postes de luz. Por mais que gostasse do tempo daquele tempo frio, tão diferente de suas lembranças dolorosas de verão, os pensamentos que inundavam sua cabeça não acabavam deixando a noite tão agradável assim.


Desde que entrara debaixo do chuveiro e permitira que a água quente caísse sobre seus ombros e corpo, ela vinha analisando ou se perguntando sobre o comportamento de Harry, como cada palavra sua era calculada antes de ser dita.


Mesmo no primeiro dia em que tínhamos nos reencontrado, ela pensou, ele já me olhava de outra maneira. Julguei ser porque ele havia mudado... Mas o olhar que ele me dirigiu, a forma como me tocou...


- Tem alguma coisa a mais nisso tudo. – Ginny sussurrou para si mesma.


Talvez estivesse tentando encontrar pêlo em ovo apenas, porque ele havia lhe dito que fora usada como uma isca para atraí-lo para emboscadas. Talvez estivesse ainda tão confusa com tudo que havia passado desde que descobrira a traição de Daniel que poderia até desejar que Harry se sentisse diferente em relação a ela.


Suspirou, passando a mão pelos cabelos e olhando tristonha para os flocos de neve que dançavam rua afora, de encontro ao chão.


Como sua vida entrara naquela confusão gigantesca? Em um momento era apenas a garota apaixonada por um herói inatingível. Depois, o herói vai embora, ela cresce e continua sua vida.


Então acredita ter encontrado o amor. O porto seguro para suas noites frias, o homem certo. E, no instante seguinte, descobre-se grávida no mesmo instante que tem a agradável surpresa de estar sendo traída.


E como se não pudesse ficar ainda mais confuso, ao voltar para sua rotina apenas de Mundo Bruxo, o herói que fora apaixonada na sua infância retorna, completamente esquisito e completamente mais misterioso.


E ele tinha tantas historias. Era como se Ginny estivesse sendo sugada mais uma vez para um mundo de mentiras e mentiras. Primeiro Daniel e seu falso amor por ela, sua falsa cumplicidade de casal. Agora, Harry e suas cicatrizes, Harry e sua história de guerra, Harry e seus anos de solidão.


Harry e seus olhares, que a deixavam confusa e se perguntando se estava percebendo mais do que existia.


Olhando para o relógio no criado mudo ao lado de sua cama, ela percebeu que faltavam menos de meia hora para o ensaio do casamento de Ron e Hermione; ensaio que ela e Harry deveriam comparecer, por serem padrinhos. Mesmo com o tempo tão curto, ela sentia-se desanimada o suficiente para não agilizar sua arrumação.


Pensou em falar com Hermione, mas sabia que a amiga e cunhada já estava na Igreja, e Ginny não seria idiota de usar o espelho de duas faces para falar com ela no meio de tantas pessoas, que poderiam escutar. Isso não só a colocaria em maus lençóis, como também deixaria obvio que o romance entre ela e Harry não passava de uma farsa.


Com um suspiro, olhou para o criado mudo mais uma vez e percebeu o telefone, que usara tantas poucas vezes desde que se mudara. Como Sarah tivera casos com trouxas nos tempos de Academia, ela tinha um telefone em seu apartamento, e exigira que Ginny comprasse um caso quisesse conversar algo mais particular do que uma conversa por espelho de duas faces, em que qualquer um poderia ver o que o outro diria.


Preciso falar com alguém, ela pensou. Não vou conseguir ficar guardando isso por muito tempo, não vou suportar toda essa loucura...


Ela se levantou e caminhou até o criado mudo, mas sua mão estava a apenas meio centímetro do fone quando a porta de seu dormitório se abriu e revelou a imagem de Harry.


- Ginny, eu -.


Ambos pararam de chofre quando seus olhares se encontraram, ambos ofegaram ao ver o estado em que estavam. Harry estava com o casaco negro de inverno sobre o corpo já, o cabelo molhado bagunçado como sempre e abotoando a camisa; Ginny estava apenas com as roupas intimas sob o robe de seda.


Subitamente, ela se sentiu envergonhada pelo estado que se encontrava. Como uma tentativa inútil de cobrir seu corpo, ela agarrou o robe e tentou fechá-lo ainda mais, sabendo que suas bochechas estavam queimando. Ela não percebeu Harry fechar o punho direito com força, antes de desviar o olhar dela e pigarrear.


- Eu não deveria ter entrado desse modo. – ele resmungou, pronto para fechar a porta.


- Tudo bem. – Ginny respondeu com suavidade, desviando-se do telefone e cruzando os braços sobre o peito, como se isso pudesse protegê-la do estado em que se encontrava vestida.- Aconteceu alguma coisa? Sente-se bem?


Era sempre tão mais fácil esconder-se na posição de defensora. A confortável posição de protetora.


- Estou ótimo. – Harry retrucou com a voz baixa e seca, ainda evitando encará-la a todo o custo. – Eu... Hermione mandou uma coruja, avisando sobre o horário do ensaio. Parece que ela realmente não quer nenhum tipo de atraso.


Como se decidisse se realmente deveria se adiantar, ele deu um passo hesitante em direção à cama de Ginny e depositou um pergaminho sobre o mesmo, a letra caprichosa de Hermione em destaque.


- Vou só colocar uma roupa e já vamos. – ela garantiu.


Harry assentiu, colocando as mãos no bolso da capa. Ginny o percebeu engolir em seco, mas não moveu um único passo.


Aquelas atitudes estavam deixando-a nervosa. Mais envergonhada do que nervosa, era verdade, mas a maior parte do seu nervosismo devia-se ao fato de que ela não conseguia deixar de pensar em tudo o que havia imaginado sobre ele, sobre suas atitudes para com ela e, inevitavelmente, o quanto ele estava... Ah, Deus, ele estava tentador, droga!


E o fato dele não sair do maldito lugar, fechar a porta e deixá-la na santidade de seu quarto não auxiliava em nada seus pensamentos. Ginny mordeu o lábio para esconder a própria frustração, encarou Harry com o queixo erguido e perguntou com um tom impaciente:


- Mais alguma coisa?


Ela sabia que havia sido mais ignorante do que pretendera ser, mas era tarde demais para reverter àquelas palavras. Entretanto, aquilo não parecia ter afetado Harry, que a encarou com as sobrancelhas erguidas, sem demonstrar dor ou raiva ao seu comportamento grosseiro. Por fim, ele encolheu os ombros e assentiu.


- Sim, há alguma coisa.


Ginny havia caminhado até sua direção, mas fora apenas para chegar ao closet de seu dormitório. Infelizmente, Harry era quem estava no meio do caminho, o ar desprendido. Mas Ginny não olhou para seus olhos, com medo de vislumbrar que suas perguntas sobre as atitudes dele fossem verdadeiras. Ou talvez medo de imaginar que fosse apenas alucinação.


Droga, ela não sabia o que pensar a respeito! Não queria nada, não queria que ele se intrometesse em sua vida, que ele tocasse nas feridas que ainda não haviam sarado. Não, era tudo muito recente, muito cedo...


Mas eles estavam perto demais, próximos demais. Ginny conseguia sentir o calor que ele emanava, e sentiu um súbito arrepio percorrer por toda a extensão de seu corpo. O cheiro que ele exalava, recém-saído do banho. A sensação de proteção que sentiu ao dar-se conta o quanto ela era pequena próxima a ele.


"Há alguma coisa".


Ginny não soube exatamente quem fora o culpado de iniciar o que jamais deveria ter começado. Sentiu seus braços envolverem o pescoço de Harry no mesmo instante em que as mãos dele rodeavam sua cintura e apertavam sua pele de modo possessivo. Ela teve o pensamento idiota de que nada poderia atingi-la enquanto continuasse com seu corpo tão próximo ao dele, unidos de modo que se tentassem se colar mais um pouco, fundir-se-iam em um, apenas.


Seus lábios encontraram os dele de forma natural, como se fosse algo acostumado entre ambos, como se muitas vezes já tivesse compartilhado momentos como aquele.


Ginny sentiu um estranho entorpecimento em seu corpo; sentiu-se tão mole, tão relaxada que se perguntou se não havia virado geléia. Sua mente, tão acostumava a trabalhar velozmente parecia ter perdido toda sua linha lógica.


Uma das mãos dele saiu de sua cintura apenas para ser colocada em seu pescoço, antes que ele a deslizasse gentilmente até a nuca, brincando com mechas de seu cabelo ruivo antes de chegar ao seu destino. Ginny entreabriu mais os lábios, intensificando o beijo.


Sabia que estava errado, sabia que não deveria fazer isso; Harry era o melhor amigo de seu irmão, e era o bruxo que ela tinha de proteger com sua própria vida enquanto ele continuasse incapaz de fazer isso. Ah, diabos, ela estava misturando o trabalho com prazer...


Não apenas isso, mas contrariava também todo o seu desejo desesperado de não se envolver com ninguém. O fato da possibilidade remota de se envolver com alguém como Harry transformava a situação em algo mil vezes pior, em sua concepção.


Mas isso tudo apenas intensificou à volta de sua concentração quando sentiu que aquele beijo não era movido apenas por desejo. Pelo menos não da parte de Harry. Não, havia algo ali, algo mais intenso do que apenas excitação ou, pela parte de Ginny, confusão por tantas coisas que vinham acontecendo.


Abruptamente, ela se afastou. Não houve resistência da parte de Harry, que soube ser mestre em esconder sua real emoção de Ginny. Seus olhos se encontraram, e ela soube que ele havia visto arrependimento em suas íris castanhas.


- Eu... Harry... Me descul -.


- Hermione vai criar um caso se chegarmos atrasados. – Harry a cortou, como se realmente não a tivesse escutado. Já havia se afastado dela,dando-lhe as costas e rumando até a porta. – Você sabe, ela consegue ser bem histérica quando quer.


Sem dizer mais nada, fechou a porta de modo gentil, enquanto Ginny se sentia a maior cretina.

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