Poeticamente Patético



“A cada ano mais de mil jovens homossexuais escolhem extinguir a própria vida - uma média de três suicídios por dia - por não suportarem o preconceito de colegas, familiares e de uma sociedade machista e sexista.

‘Esses suicídios são mais do que aparentam. São assassinatos sociais. Cada vez que um menino prefere se matar a ter de ir a escola e ser humilhado de novo ou chegar em casa à noite e apanhar do pai homofóbico, foi a sociedade que falhou. O recado é claro: o garoto morreu porque não foi aceito no mundo em que vivia. Porque amava diferente de seus colegas e de seus pais. Que gente monstruosa é essa, que mata um filho a cada 8 horas?’
Deco Ribeiro, fundador do E-Jovem.

Respeito, igualdade e paz. Por favor.”



A água estava quente, mas Gina continuava a sentir seu corpo gelado. Tremia de leve, apesar do vapor em brasa que lambia e corava as maçãs de seu rosto. Enquanto escorregava as mãos ensaboadas por seu corpo esguio, ela pensava. Imagens daquela segunda-feira passavam em flash por sua cabeça, e as sensações desagradáveis que vivenciara em cada momento do dia retornavam junto com as lembranças.

Padma Patil estava morta.

Morta.

A palavra ecoava em sua cabeça cada vez que pensava em seu significado ou simplesmente a sentia. Parecia um presságio ruim, semelhante a corvos negros em uma tarde de sol morno - quase como se o falecimento prematuro da colega significasse azar certo para os próximos dias.

Gina já havia experimentado algo parecido antes - nas ocasiões do assassinato de Cedrico Diggory e, mais próximo, no desaparecimento de Sirius sob o véu -, mas dessa vez havia algo de singular. Por Padma ser tão jovem? Porque intimamente se identificava com o drama pessoal da menina? Também. Mas, principalmente, por ter sido suicídio.

Essa palavra soava ainda mais agourenta, estranha, infeliz. A morte por si só já é desagradável e não-natural no que diz respeito à preparação psicológica de cada indivíduo, mas o fato de alguém extinguir a própria vida consegue ser ainda mais intensamente dramático e sinistro. O quão perdida Padma Patil devia estar para achar outra vez que morrer era a única saída?

Fechou o registro do chuveiro, que chiou pela ferrugem. Apanhou a toalha que deixara pendurada no alto da porta e eliminou as gotículas de água em seu corpo. A fricção com o algodão deixava manchas vermelhas em sua pele alva, que desapareciam tão rapidamente quanto surgiam.

Gina enrolou a toalha em volta do corpo, sobre o peito, e saiu do chuveiro. Já estavam no fim da primavera e passava das oito da noite, o que geralmente significava que o banheiro feminino estaria lotado e infestado com o som das vozes de todas aquelas meninas nuas conversando animadamente durante o banho. Não neste dia. Considerando Gina, havia apenas quatro garotas no lugar – uma acabava de se vestir e as outras duas esperavam por ela trocando algumas poucas palavras murmuradas. Era óbvio que a caçula Weasley não era a única pessoa no castelo que estava possuída por aquele sentimento rasgado.

Hogwarts amanhecera naquele sábado sob o burburinho dos alunos que comentavam a morte de Padma Patil. Não era o tipo de novidade que se discutia de forma excitada pelos corredores. Lia-se uma mistura de choque e morbidez na expressão de cada rosto, ilustrando o clima pesado e deprimente que pairava sob o castelo. Ironicamente, o sol sorria com intensidade no céu azulado por trás dos janelões de vidro.

Triste tarde, aquela. Poucas vezes Hogwarts presenciara a substituição das bandeiras coloridas de cada casa por longos panos negros no salão principal.

As notícias corriam rápidas naqueles corredores de pedra e logo todo o castelo estava ciente do velório de Padma Patil, que ocorreria no salão de jantar. A presença dos estudantes não era obrigatória, de modo que Gina foi uma das poucas alunas a comparecer. Diferente de sua irmã, Padma não possuía muitas amizades.

A ruivinha atravessou o salão lentamente, caminhando para se juntar ao modesto grupo de pessoas que se despedia do corpo de Padma. Identificou alguns alunos da Corvinal, colegas de Padma, e os monitores representando suas respectivas casas. Hermione e Rony estavam juntos, e Gina reparou que uma lágrima discreta descia pelos olhos da menina. Se a ocasião não fosse estupidamente inadequada, ela teria sentindo uma simpatia pela garota de quem estava reaprendendo a gostar.

O caixão estava disposto diante de um pequeno altar montado com fotografias e alguns objetos pessoais de Padma. Havia flores por todos os lados, de todos os tipos, perfumes e tons. A maior parte delas fora providenciada pela direção da escola, mas alguns ramalhetes mais modestos haviam sido trazidos pelos visitantes. Parada diante de tudo isso estava Hannah, que encarava fixamente uma foto de Padma e exibia uma expressão distante no rosto. Ela segurava uma única flor, vermelha, frouxamente na mão esquerda. Tratava-se de um cravo, mas os conhecimentos botânicos de Gina estavam defasados demais para que ela pudesse constatar isso.

A ruivinha parou ao lado de Hannah e depositou, timidamente, a florzinha silvestre que trouxera sobre a tampa do caixão. Arriscou olhar para a amiga, mas Hannah não parecia ter percebido a sua presença. Estava absorta demais em suas lembranças e pensamentos para reparar em qualquer coisa naquele momento. Gina começou a pensar se seria muito inadequado segurar a mão da garota para que ela sentisse que não estava sozinha, mas, antes que tivesse tempo de concluir alguma coisa, o salão foi tomado pelos berros estridentes de uma mulher.

- MINHA FILHA! MEU BEBÊ. MEU BEBÊ! TIRARAM O MEU BEBÊ DE MIM!

A pessoa que Gina imediatamente deduziu ser a mãe de Padma correu para o caixão. Seus gritos haviam atraído todas as atenções do local. A mulher estava histérica, o que, na opinião de Gina, era bastante compreensível. A Sra. Patil jogou os braços sobre a tampa de madeira do caixão e fez menção de puxá-la. Imediatamente, algumas pessoas que estavam próximas trataram de impedi-la, agarrando seus pulsos e puxando-a da forma mais gentil possível.

- É melhor que a senhora não faça isso – disse o professor Flitwick, que tentava contê-la puxando a barra da manga de seu casaco. Gina supunha que aquela seria uma cena divertida, em uma ocasião menos dramática.

- Solte-me – chorava a mulher, cujos olhos praticamente sumiam em seu rosto inchado pelo pranto – Eu quero abraçar a minha filha!

- Não, senhora, o caixão não pode ser aberto – repetiu o aflito professor de Transfiguração. – Por favor, será melhor...

Gina imaginava porque ele tentava impedir a pobre mãe de rever sua filha uma última vez. Ouvira rumores de que ela havia explodido a própria cabeça com um feitiço dolorosamente eficaz. Talvez Padma achasse que essa era a melhor maneira de evitar falhas, como acontecera na sua primeira tentativa; talvez ela simplesmente desejasse uma morte rápida... ou, talvez, ambas as coisas. O fato é que, decididamente, não poderia ser saudável para nenhuma mãe ver o corpo da filha naquela condição.

Mas a Sra. Patil estava decidida a abraçar a filha a todo custo, e, a julgar pela violência com que seus braços finos e aparentemente frágeis agrediam a todos que tentavam frustrar seu desejo, Gina tinha certeza de que ela provavelmente conseguiria. Ninguém poderia tê-la impedido, se seus olhos não tivessem recaído sobre uma estática Hannah.

Durante alguns segundos ela apenas encarou a menina. Seus olhos inchados pareciam prestes a produzir faíscas. Gina quase podia ver todos os músculos do corpo da mulher se retesando, e achou que ela parecia muito com uma onça prestes a atacar. Talvez, se ela tivesse agido de forma parecida quando o estúpido marido renegou a própria filha, Padma não tivesse se sentindo tão solitária a ponto de acreditar que morrer era melhor – Gina refletiria mais tarde.

- A culpa é sua – as palavras deslizaram como sibilos por seus lábios trêmulos. E, ao dizer isso, a Sra. Patil livrou-se das mãos que ainda seguravam seus braços e apontou um dedo esguio para o nariz da menina. – Saia já daqui! Saia!

Hannah, até então apática, tremia debilmente. Ela parecia assustada e desprotegida, prestes a desabar sob o menor toque. Gina sabia que em qualquer outra situação ela teria se recusado veementemente a obedecer, mas o abalo psicológico da amiga era tão forte que Han simplesmente deixou-se levar por uma colega da Lufa-Lufa (que Gina não conhecia) para fora do salão principal.

Mesmo depois de horas aquelas lembranças ainda provocavam um nó na garganta de Gina. Tudo era simplesmente muito...

- Triste – a palavra escapou dos lábios de Gina enquanto ela caminhava para a torre da Grifinória. Seus cabelos molhados cheiravam fortemente a maçã e alecrim, infestando os corredores por onde passava.

Aproximava-se das 21h da noite. Ao caminhar, os passos da garota produziam ecos nas paredes de pedra do castelo. As tochas acesas deixavam aquela noite quente ainda mais abafada, fazendo Gina se sentir sufocada e desconfortável. Ela só queria chegar ao dormitório o mais rápido possível, mergulhar em sua cama e talvez cochilar algumas poucas horas – quando finalmente conseguisse afastar os pensamentos obscuros sobre o que acontecera e permitir que seus olhos pesassem.

Quando começou a subir a escadaria para a Torre da Grifinória, Gina estava a poucos minutos de finalmente descansar seu corpo tenso no colchão fofo de sua cama. Contudo, o murmúrio de vozes refratadas pelas paredes fez com que ela estancasse e retrocedesse alguns passos. Parou com a mão direita sobre o corrimão da escada, apertando os olhos para tentar visualizar alguma coisa na extensão do corredor. Aparentemente a chama da tocha que iluminava a curva adiante havia se extinguido, pois tudo era sombras. Gina soltou o ar pelo nariz de forma exausta e fez um movimento para recomeçar a subir, mas novamente o ruído de vozes fê-la voltar atrás. Ela estava cansada e psicologicamente abalada, mas, ora, era uma Weasley – sua curiosidade não pedia passagem, simplesmente se impunha. Tinha que espiar... rapidamente.

Apurando seus ouvidos, Gina caminhou a passos suaves até o final do caminho. Parou a alguns centímetros da curva do corredor, onde poderia identificar as vozes, caso fossem conhecidas, e permanecer oculta pela escuridão, evitando ser vista.

- ...eu sei que poderia ter evitado.

- Não fique se torturando por causa disso. Muitas pessoas poderiam ter evitado, mas nenhuma delas o fez. Talvez isso signifique que simplesmente era para ser assim.

- Sinto como se a morte dela fosse a última peça de um intrincado desenho feito com dominó, e eu fui quem deu o empurrão inicial para começar a reação em cadeia.

A dona da outra voz suspirou, pensativa. Gina sabia que era um suspiro pensativo, pois conhecia todas as reações que ela poderia ter em uma conversa. Não precisava olhar para saber que os olhos azuis brilhantes de Luna deviam estar perdidos em algum lugar no teto enquanto ela refletia a respeito do que Hannah dissera. Nenhuma das duas falou qualquer palavra nos minutos que se seguiram, fazendo com que o silêncio parecesse assobiar nos ouvidos de Gina. Ela se remexeu incomodada.

- Hannah – Luna disse, e pelo seu tom de voz Gina sabia que era uma colocação conclusiva, que encerraria o assunto para ela. – Ela está em paz agora. Você também deveria ficar.

Gina ouviu o som de alguém se levantando – que deduziu ser Luna – e passos se aproximando. Antes que a menina tivesse tempo de correr para a escada e fingir que estava coincidentemente passando naquele momento, a loirinha estava parada diante dela.

Suas bochechas coraram e Gina tentou em vão balbuciar alguma coisa, qualquer coisa, sem sucesso. Não parecia capaz de produzir qualquer sentença inteligível naquele momento. Primeiramente, porque fora flagrada escutando a conversa alheia pelos cantos, e depois porque era Luna quem estava diante dela. Gina não estava psicologicamente preparada para encontros repentinos no meio da madrugada como aquele, principalmente se fosse de forma constrangedora.

- Hannah está logo ao lado - Luna informou com a naturalidade de quem já sabia que ela estava ali - Vocês deveriam conversar.

- Luna – Gina começou, mas a menina passou por ela sem dar chance para que dissesse qualquer outra coisa.

A ruivinha observou-a desaparecer no corredor e decidiu passar para o foco de visão de Hannah, que certamente havia escutado e compreendido o que ocorrera. Ao contrário do que sentia com relação a Luna, Gina não estava envergonhada por Hannah ter consciência de que a estava espionando. A menina a encarou com seus olhos profundos sobre olheiras escuras sem esboçar qualquer expressão. Estava abatida e infeliz.

Gina se aproximou devagar e sentou ao lado de Hannah no vão da janela. A luz da lua produzia reflexos coloridos dos vitrais nos rostos delas de uma forma deprimentemente mágica. Nenhuma das duas falou qualquer coisa ou fez qualquer gesto com relação à outra por vários minutos, cada qual perdida com suas próprias indagações e pensamentos. Não era um silêncio constrangedor, no entanto, mas sim um silêncio consentido e dividido por elas. Momentos assim podiam ser mais íntimos do que longas conversas – Gina aprendera isso com Luna.

- Acho – Hannah começou sem olhar para Gina – que preciso pedir desculpas por ter faltado ao nosso encontro ontem.

Encontro? Gina pensou. Que encontro? Então lembrou, subitamente, que ficara aos beijos com Luna em vez de ir ao local combinado, e sentiu suas bochechas tingirem-se levemente de rosa.

- Esqueça – Gina murmurou.

Hannah ergueu os olhos para ela e, para o completo desespero de Gina, havia grandes poças de água sob seus olhos inchados.

“Ah, Han...” disse, sem jeito.

- Desculpe – Hannah disse com a voz trêmula. Gina percebeu que ela estava lutando para não deixar as lágrimas rolarem, e sentiu seu coração apertar. – É que eu... Eu só... Não consigo acreditar que ela... Ela se foi...

Gina não sabia exatamente o que fazer. Odiava aquele tipo de situação, pois simplesmente não era o tipo de pessoa que sabia consolar alguém. Nunca vinha qualquer frase inteligente e agradável à sua mente para falar, e ela só conseguia ficar acenando com a cabeça e concordando com o que a pessoa dizia. Sentia-se imprestável e idiota nessas situações. Queria ter a sensibilidade de Luna para essas coisas... Ela normalmente sabia o que dizer, e suas considerações soavam sempre sábias, doces e gentis. Essa era, sem dúvida, uma das coisas que sempre a encantara sobre Luna: ela passava a mensagem de um discurso inteiro em uma única frase.

Conformada com o fato de que não conseguiria falar nada suficientemente bom para consolar a amiga, Gina decidiu-se pelo modo mais simples: passou os braços em volta do pescoço de Hannah e puxou o corpo dela para junto do seu em um abraço fraternal. A menina agarrou-se à gola da camiseta da ruivinha e chorou por mais tempo do que Gina poderia calcular. Suas lágrimas quentes molharam-lhe o pescoço e encharcaram seus ombros. Gina acariciava os fios dourados do cabelo de Hannah ternamente, sentindo o corpo dela tremer com seus soluços.

- A culpa é minha – Hannah disse com a voz embargada, largando o pescoço de Gina e olhando para ela com os olhinhos miúdos. Seu nariz estava muito vermelho e escorria.

- Não diga bobagens – Gina sacudiu a cabeça, e afastou carinhosamente uma mecha do cabelo de Hannah para trás de sua orelha.

- É a verdade – insistiu, rouca – Eu a abandonei... E o fiz quando ela mais precisava de mim...

Gina discordou com a cabeça.

- Não, Han... Ela se afastou de você, lembra? Você queria mantê-la por perto...

Hannah soluçou por alguns momentos, visivelmente descontrolada, e então puxou um pedaço de pergaminho do bolso das vestes. Entregou-o a Gina, fungando. A garota desdobrou o bilhete e leu em silêncio.

Tentei achar a felicidade, mas, de algum modo, a escuridão me encontrou e não consigo respirar. Acabei afastando você porque não posso suportar as conseqüências, mas agora percebi que não consigo viver em um mundo sem você. E não posso suportar vê-la nos braços de outra pessoa. Sei que você não entenderá porque fiz isso, mas um dia espero que você possa me perdoar... e que aconteça logo. Eu não sou como você. Você sempre foi forte. Sinto muito. P.

A despeito da tonalidade tocante das palavras de Padma Patil, uma frase em especial prendeu a atenção de Gina:“E não posso suportar vê-la nos braços de outra pessoa”. Tinha um palpite de que a garota não estava falando hipoteticamente ali; essa “outra pessoa” era ela, Gina. O pensamento provocou uma sensação desagradável na sua garganta, mas a jovem não disse nada. Precisaria de algum tempo para digerir o fato de que sua interferência na história das duas havia provocado um final trágico. De repente percebeu o quão exausta estava, sentindo alfinetadas de dor em seus ombros tensos. Gostaria de poder flutuar para algum lugar silencioso como o fundo do mar, onde pudesse ignorar o resto do universo e fingir que era apenas uma partícula minúscula naquele sistema.

Horas mais tarde, encolhida e enrolada entre os lençóis de sua cama, Gina vagava por pensamentos confusos. Já estava meio adormecida, mas ainda conseguia raciocinar algumas coisas, mesmo que de forma nebulosa. Lembrou-se de quando era criança e tola, sempre ansiosa para crescer como seus irmãos, ir para Hogwarts, viver grandes aventuras e passar pelos anos que, segundo a sua mãe, seriam os melhores e mais divertidos da sua juventude. Sempre sonhara com grandes emoções em sua vida, e agora as experimentava aos borbotões. Mas ficaria extremamente grata se não precisasse passar a maior parte do tempo angustiada por causa delas. Seria pedir demais ter uma adolescência normal? Talvez sim. Ou, talvez, a verdade fosse muito mais simples e sóbria: nenhum ser humano pode passar ileso pelo maldito período que se estende dos 12 aos 18 anos. E Gina ainda estava nos 15.

Excelente.

***


O fim do ano letivo se aproximava rapidamente, o que significava que a maior parte dos estudantes de Hogwarts estava tentando correr atrás do prejuízo nos estudos, seja lá por que motivo houvessem deixado esse item em segundo lugar na lista de prioridades ao longo dos meses. Para os alunos do quinto ano – Gina entre eles -, a sombra dos N.O.M.s parecia estar se tornando a cada segundo mais sólida, ameaçadora e palpável. Os professores já estavam habituados com as expressões pálidas e as grandes olheiras estampadas nos rostos de seus pupilos, mas isso não tornava as aulas menos deprimentes para eles. Não havia nenhuma emoção em lecionar para uma turma de alunos-zumbis, que muitas vezes babavam sobre seus pergaminhos na tentativa infrutífera de manterem os olhos abertos quando fazia semanas que não dormiam direito.

Junto com as provas veio o calor intenso, anunciando a chegada do verão. Apesar de a biblioteca ser um dos aposentos mais populares do castelo naquela época, os jardins estavam no topo da lista de preferência dos estudantes para passar o tempo livre. Eles se recostavam à sombra das árvores, ao redor do lago e ocupavam os degraus da escadaria, sempre acompanhados de vários livros e pergaminhos. As vestes negras e tradicionais de Hogwarts já não eram vistas com tanta freqüência, ao passo que era comum encontrar meninos e meninas arregaçando as mangas de suas camisas e afrouxando os nós de suas gravatas – as bochechas coradas e macilentas.

De modo geral, Gina passava todo o tempo se dividindo entre livros, pergaminhos e aulas. Ficava tão cansada ao final do dia que adormecia quase que instantaneamente quando aconchegava o corpo em sua cama. Ás vezes cochilava sobre seu material de estudo, mas isso não acontecia com freqüência porque Hermione geralmente estava por perto e tratava de acorda-la com um cutucão. Gina balbuciava algo que era uma mistura de resmungo e bocejo, esfregava os olhos e voltava a lutar com bravura para absorver o máximo de informação possível sobre o Feitiço Estonteador, a aliança de centauros e sereianos de 1753, a poção Ilumina-Pensamentos e tantas outras coisas que, por mais que se esforçasse, não conseguia achar interessantes.

Vez ou outra Rony aparecia para dar uma espiada nela, mas só quando Hermione estava auxiliando em seus estudos. Ele não se esforçava nada para soar animador:

- Como é? Você não consegue preparar uma poção arranca-toco? Até eu sei fazer isso – vangloriou-se certa vez.

Hermione lançou-lhe um olhar de censura e retrucou:

- Não devia ficar tão cheio de si com relação a isso, Rony – ela disse – Você também não sabia até algum tempo atrás, antes de eu ajudá-lo.

As orelhas de Rony coraram vividamente.

- E se você não calar a boca vai ser a minha cobaia – Gina acrescentou com um sorriso maldoso, e o garoto decidiu que era mais saudável deixá-las em paz.

Gina sabia que o irmão só estava por perto para ver Hermione, pois a menina passava mais tempo na biblioteca em sua companhia – dividindo-se entre ajudá-la e seus próprios afazeres – do que com Rony e Harry. Esse último, por sua vez, evitava se aproximar de Gina, a menos que fosse estritamente necessário. A menina suspeitava que ele estava passando por mais uma crise dor-de-cotovelo pós pé na bunda, mas Rony se recusava a comentar o assunto com ela – muito mais por não querer despertar uma crise de ciúmes em Hermione do que por lealdade ao amigo.

Não era possível encontrar Hannah com muita freqüência pelo castelo. Ela passava a maior parte do dia enclausurada na sala comunal da Lufa-Lufa e só saía para se dirigir às aulas. Gina não podia culpá-la por estar agindo assim. Imaginava que se comportaria da mesma forma, se estivesse no lugar dela. Era óbvio que estava profundamente deprimida, e ela gostaria muito de poder ajudar, mas Hannah se esquivava sempre. Mione achava que era melhor deixá-la sozinha por uns tempos, para que digerisse completamente o que acontecera, mas Gina não tinha tanta certeza assim. Nem todo mundo consegue começar a subir quando chega ao fundo do poço, afinal.

Quanto a Gina, ela não conseguia deixar de se sentir culpada todas as vezes que pensava no assunto. Se não tivesse se envolvido com Hannah e aparecido no meio de toda aquela história, a garota poderia ter resolvido seus problemas com Padma, não poderia? Aquele pensamento a deprimia, de modo que a ruivinha preferia deixá-lo confinado em algum canto obscuro de sua mente. A preocupação com os N.O.Ms estava sendo de grande utilidade nesse sentido, pois ocupava a sua cabeça quase todos os segundos do dia.

Se por um lado Gina estava conseguindo esquecer seu sentimento de culpa com relação a Padma sem muitos conflitos, o mesmo não acontecia no que dizia respeito ao que sentia por Luna. Desejava, com todas as forças de cada um de seus átomos, poder tê-la para si novamente. Às vezes se pegava divagando em um sonho no qual invadia o dormitório da Corvinal durante a madrugada e se esgueirava para a cama da menina. Partia somente quando o sol atravessava as vidraças das janelas, após uma noite tórrida repleta de sussurros e gemidos. Quando despertava dos pensamentos, Gina soltava suspiros frustrados e se permitia ficar infeliz por alguns minutos. Depois voltava a se concentrar no que quer que estivesse fazendo, ainda com a sensação de que podia sentir o gosto de Luna na boca.

Diferentemente do que acontecia com Hannah, Luna parecia estar em quase todos os corredores que Gina cruzava, salas em que entrava e lugares onde precisaria ficar. Sempre que esses encontros aconteciam, as borboletas no estômago de Gina pareciam estar esvoaçando para fora da sua boca, o que produzia uma sensação quente e rouca na sua garganta. Apesar de agora Luna normalmente cumprimenta-la quando se esbarravam, Gina não percebia qualquer indício de que era adequado arriscar uma aproximação mais íntima. Chegaram a conversar – Gina falava, afogueada, e Luna ouvia – por mais ou menos uma meia hora, certa ocasião, mas o que parecia ser um bom começo não rendeu novos frutos na semana seguinte.

Nada havia mudado em meados de junho; somente o desespero de Gina com relação aos N.O.Ms parecia estar ficando maior. Agora ela estava definitivamente estressada, mas, fosse isso ou não um consolo, não era a única. A conseqüência disso foi que, com a imunidade baixando devido ao alto índice de tensão, uma espécie de epidemia de gripe e resfriado se espalhou pelo castelo. A ala hospitalar vivia cheia de olhos vermelhos e narizes lacrimejantes, ocupando todo o tempo de Madame Ponfrey e sua assistente.

Gina, que permanecera saudável até então, amanheceu na véspera dos seus Níveis Ordinários de Magia com a cabeça latejando, o nariz escorrendo e tosse.

- Eu devia ter imaginado que não poderia ter tanta sorte assim – resmungou, infeliz, para uma Hermione compadecida.

Rony fez piadinhas sobre seu nariz vermelho, mas pagaria por elas alguns dias depois quando a gripe resolvesse visitá-lo. Ele passou o café da manha importunando a irmã, apesar dos olhares repreensivos de Mione.

- Você se importaria de calar a boca? Tenho a impressão de que estão perfurando a minha cabeça com um feitiço saca-rolha – Gina disse, massageando as têmporas, impaciente – Sei que ficou irritado porque contei a Hermione sobre a sua cueca de hipogrifos, mas se não parar de me importunar ela vai ficar sabendo sobre aquela vermelha com sapinhos verdes que foi do Percy. Oops! Escapou...

Rony passou tão rápido de vermelho para azul que Gina temeu que ele fosse começar a vomitar lesmas. Em vez disso, ele começou a gaguejar uma explicação para Hermione, que segurava o riso. Harry - que chegara há poucos minutos e estava se servindo de mingau de aveia - não se deu ao trabalho de fazer o mesmo, no entanto. Gina teria se divertido muito com o constrangimento do irmão em outra ocasião, mas as pontadas em sua cabeça subtraiam quase toda a graça e lhe permitiram somente um sorriso tênue.

Ignorando os conselhos de Hermione, ela compareceu normalmente à primeira aula da manhã – poções. Para a sua infelicidade, a dor de cabeça só fez aumentar devido aos odores dos preparados e seus ingredientes. Snape jamais daria autorização para que ela deixasse a aula, mesmo que estivesse sofrendo convulsões, de modo que ela só pôde se dirigir à ala hospitalar ao soar da sineta. Fungando e praguejando intimamente, a garota subiu as escadas devagar, imaginando porque não vira Luna na sala de aula – é claro que esse fato não escaparia aos seus olhos, por mais que esses estivessem ardendo. Gina se habituara a sentar na carteira do fundo, encostada na parede, onde podia observar Luna, que geralmente sentava em algum lugar no centro da sala.

A ala hospitalar estava um pouco menos movimentada aquela manhã, mas havia pessoas o suficiente para deixar Madame Ponfrey agitada. Pressurosa, mandou que Gina aguardasse sentada em uma das camas da enfermaria enquanto atendia os outros alunos e preparava uma essência medicamentosa para ela. A menina obedeceu levemente contrariada, pois, de acordo com seu relógio, faltavam dez minutos para começar a aula de herbologia. Gina colocou a mão no bolso e apanhou o misterioso colar sem dono, que acabara se habituando a carregar consigo. Observou os raios de sol atravessarem a pedra, produzindo um brilho morno e ofuscante. Focou a atenção na pedra durante algum tempo, até que a porta da enfermaria se abriu e a garota desviou os olhos para espiar quem estava chegando.

Madame Ponfrey, as bochechas afogueadas, acomodou uma Hannah Abbott taciturna na cama ao lado de Gina. A curandeira trocou algumas palavras rápidas com a paciente recém chegada e correu para atender um quintanista da corvinal que iniciava outro acesso de espirros – o terceiro em menos de dez minutos, pelo que Gina podia recordar.

Os olhos de Gina encontraram os de Hannah, e a menina tentou decidir se seria mais adequado iniciar uma conversa com “tudo bem?” ou com “você está melhor”. Apesar de a primeira opção possuir uma resposta óbvia, a ruivinha optou por ela.

- Aquela coisa – Hannah disse, com um sorriso tímido, e encolheu os ombros levemente. – E com você?

Respondeu que estava tudo bem, mesmo não estando, pois achou que Hannah já tinha energias negativas o suficiente em sua vida no momento para precisar receber algumas mais emitidas por Gina. Fez um comentário sobre a gripe, em seguida, e, fungando, perguntou se a amiga estava com o mesmo problema.

- Não – Hannah sacudiu a cabeça negativamente. Suspirando, desviou os olhos de Gina e fixou algum ponto imaginário na parede – Eu estou tomando umas poções para ânimo e outras porcarias do tipo.

Era óbvio, Gina pensou consigo mesma. Como podia ser sempre tão infeliz em suas colocações? Gostaria de poder se socar, mas imaginou que as pessoas ao redor questionariam seriamente a sua sanidade diante da cena. Então se contentou em praguejar intimamente.

Hannah deu uma risadinha com uma nota histérica.

“Eu não queria tomar essas merdas. Dopar as minhas próprias emoções, ora essa. Eu posso conviver com elas. Mas quem sou eu para contestar as ordens do Poderoso-Chefão-Dumbledore?”

Gina achava que Dumbledore não poderia estar mais certo em concluir que Hannah precisava de medicações, mas preferiu guardar isso para si. Limitou-se a comentar, timidamente, que o diretor estava fazendo o que achava ser melhor.

Hannah fez uma careta de desapontamento por perceber que Gina, no fundo, concordava com ele, mas não emitiu qualquer palavra. Continuou concentrada em seu foco mental, ignorando os olhos que a fitavam atentamente.

- Eu estou realmente no meu limite, Gina – ela disse de repente, voltando os olhos para a garota de forma intensa. – Estou mesmo. Não posso mais suportar esta escola, essas pessoas... Tanta superficialidade me envenena a ponto de provocar náuseas.

Gina compreendia o que ela estava dizendo mais do que qualquer outra pessoa.

- Entendo como você se sente – disse, solidária.

- Preciso sair deste lugar – Hannah desabafou. – Ele está recheado de lembranças que não posso suportar. Qualquer metro cúbico do castelo me lembra Padma. É como se eu esperasse esbarrar com ela cada vez que viro a curva de um corredor ou abro uma porta. E o fato de ela não estar em nenhum lugar é desesperador.

A amiga apertou com força o lençol sob seus dedos, tremendo sutilmente.

- Han...

- Vou realmente enlouquecer se não partir.

- Por mais difícil quer seja, você deveria ficar até acabar o ano, pelo menos. Faltam tão poucas semanas agora... – Gina disse, apesar de saber que, no lugar de Hannah, não pensaria nem por um segundo em sofrer daquela maneira por míseros motivos escolares.

- É o que eu estou fazendo – a menina falou e sorriu com ironia – Embora não vá fazer muita diferença. Não consigo sequer pensar em estudos, e não são os discursos inflamados da profª. Sprout sobre a necessidade de seguir adiante com a vida que vão me motivar.

- Acho que todo mundo sempre precisa encontrar meios de seguir adiante, não é mesmo? – Gina disse mais para si mesma do que para Hannah, mas a garota pareceu considerar o comentário dela.

Nos minutos seguintes nenhuma das duas falou qualquer coisa, cada qual vagando entre seus próprios questionamentos. Madame Ponfrey apareceu com as poções de Hannah e o medicamento de Gina antes que pudessem retomar o assunto, de modo que, quando deixaram a ala hospitalar, as duas ainda estavam caladas. Elas seguiram juntas durante algum tempo, mesmo sem estarem necessariamente seguindo uma a outra, até que Hannah parou Gina quando esta subiu o primeiro degrau de uma escadaria.

- Você vai para a sala comunal da Grifinória?

Gina assentiu com a cabeça e em seguida explicou que precisava terminar uma redação para História da Magia, que seria no próximo período, após o almoço.

- Toda essa coisa de N.O.Ms está me deixando louca – Gina suspirou.

- Posso afirmar que é menos complicado do que parece.

- Já ouvi isso antes – ela disse com uma risadinha destrutiva.

Realmente ouvira, pois Hermione sempre parecia achar que a melhor forma de melhorar o seu humor quanto aos estudos era lembrando-a do excelente desempenho que obtivera nos seus próprios Níveis Ordinários. Apesar das boas intenções, aquele tipo de comentário apenas dava a Gina mais um motivo para se sentir vergonhosa caso suas notas fossem péssimas.

- Você vai se sair bem.

- Eu honestamente desejo que você esteja certa – Gina gemeu.

Hannah esboçou o que seria o rabisco de um sorriso e fez um gesto com a cabeça em sinal de despedida, que Gina retribuiu. Quando a ruivinha fez menção de voltar a subir as escadas, no entanto, a menina voltou a chamá-la.

- A propósito – Hannah falou – Fico feliz que você e Luna tenham se acertado. Você sempre foi louca por ela, não é mesmo?

Gina franziu o cenho e, sem conseguir evitar uma risada que misturava incredulidade e sarcasmo, indagou:

- Do que você está falando?

- O colar que você estava segurando quando eu entrei na enfermaria – Hannah disse – Estava no pescoço de Luna naquele dia em que conversamos à noite. – como Gina parecesse mais incrédula a cada palavra, ela continuou, meio insegura, mas com um tom de quem diz a coisa mais óbvia do mundo – Por que outro motivo Luna daria a você o colar que pertenceu à mãe dela?

***


If you ever had the chance
Would you make your life seem right?
Or would you only hold it back
The good times, the hard, and the bad
Whatever you say is alright
Just as long as there's no doubt
Could you look me in the eyes...(And say hopes died)
If time could stop, how could I make this more poetic?
When there's nothing more pathetic to be said...


Gina saiu do salão principal, fechando a porta atrás de si, dominada pela sensação de alívio de quem finalmente efetivou aquilo que estava se preparando para fazer. Terminara a última prova dos seus Níveis Ordinários de Magia dentro do tempo padrão, de modo que havia aproximadamente a mesma quantidade de estudantes do lado de dentro e do lado de fora – estes querendo desesperadamente comparar suas provas – quando a menina colocou o pé no saguão. Foi imediatamente atacada por vários colegas famintos por suas respostas, dos quais só conseguiu se livrar depois de deixá-los saciados.

Gina caminhou sem pressa para os jardins, espiando por cima dos ombros para evitar se abordada por outros quintanistas. O fim de tarde estava particularmente agradável naquele dia. Havia uma brisa suave que movia com graciosidade as folhas das árvores, as flores e as mechas do cabelo das pessoas, produzindo, também, ondas delicadas na superfície do lago. O sol poente pintara a grama de um tom bronze que Gina considerou bastante bonito.

Com raras exceções, todos os alunos com períodos livres estavam desfrutando os últimos raios de luz. Gina rumava para a sombra convidativa de uma árvore próxima às estufas quando, como se recebesse uma descarga elétrica, seu coração deu um salto e pareceu parar de bater por alguns segundos. Às margens do lago, ao lado de pares de tênis e meias, havia uma Luna com os pés mergulhados na água fresca. O sol de cobre também produzia seus efeitos nas madeixas louras da garota, que pareciam mais escuras e mais brilhantes do que realmente eram.

Gina hesitou, sentindo no bolso o calor da jóia que, se Hannah estivesse certa, pertencia a Luna. Ela estava tendo dificuldades em processar as informações recebidas, acidentalmente, de Hannah, na noite anterior. Sentia-se tola por nunca ter pensado que Luna podia ser a dona daquele colar. Entrementes, não conseguia enxergar como era possível que Han o tivesse visto no pescoço de Luna quando Gina não possuía qualquer dúvida de que ele estivera em seu bolso o tempo todo, naquele dia. Talvez a pedra se transportasse, ou, quem sabe, Luna simplesmente fosse dona de um colar igual àquele, afinal. A garota não sabia a resposta, mas estava decidida a descobrir. Se desejara uma oportunidade para se aproximar de Luna outra vez, aquela era a realização de seu pedido. Simplesmente não podia perder a chance.

- Posso sentar ao seu lado? – Gina perguntou. Sentia as batidas de seu coração na boca, mas procurou manter sua melhor nota de naturalidade na voz.

Luna, que não percebera a aproximação dela, respondeu que sim. Era uma autorização mecânica que ela teria dado até a Draco Malfoy, mas foi boa o bastante para renovar o ânimo de Gina. A menina se acomodou sobre as pernas entrelaçadas e afastou uma mecha ruiva que o vento jogara sobre seus olhos.

- Então, como vai tudo? – Luna perguntou distraída.

Alguns tentáculos da Lula-Gigante emergiram momentaneamente, conquistando a atenção da garota sem muito esforço. Quando Gina respondeu que estava bem, ela na verdade não escutou, mas exclamou um “Excelente” – novamente de forma automática. Ao dar se conta de que Luna estava achando um molusco de proporções avantajadas mais interessante que ela, Gina se sentiu infeliz. Decidiu mostrar logo as cartas que tinha em mãos, sem muitos rodeios, pois era a sua melhor chance de fazer os olhos de Luna voltarem na direção dos seus.

- Você reconhece isso? – indagou, apanhando a pedra quente e brilhante do bolso.

- O quê? – Luna voltou-se e Gina abriu a mão, revelando o que ocultava.

Depois de conviver tanto tempo com Luna, a menina acostumara sua percepção a ficar aguçada sempre que queria identificar alguma reação no rosto dela. Acabara de se preparar psicologicamente para isso, e, no entanto, não precisou fazer o menos esforço para perceber que Hannah falara a verdade.

Os olhos de Luna se estreitaram numa mistura de surpresa e reconhecimento. Ela apanhou o colar como quem reencontra ocasionalmente um objeto de alto valor pessoal. A forma como girou a pedra entre os dedos, familiarizada, denunciava a afetividade que a pedra provocava nela. Luna ergueu a pedra pela corrente, deixou que pendesse no ar por algum tempo, e, por fim, largou a jóia de volta na mão de Gina.

- É seu, não é?

- Sim.

Gina suspirou.

- Você esqueceu comigo... Há muito tempo.

Luna sacudiu a cabeça em uma negativa.

- Eu não esqueci. Deixei de propósito.

Gina franziu o cenho e contraiu as sobrancelhas, achando que agora a conversa estava fluindo de modo interessante.

- Tenho que dizer que essa informação me confunde – jogou.

Luna assoprou de leve o ar pelos lábios, parecendo ponderar se era adequado falar mais que aquilo ou não. Ela finalmente cedeu e olhou para Gina, provocando mais sensações com o simples encontro do seu olhar com o dela do que qualquer outra coisa poderia ter feito. O contato fez as memórias de Gina fluírem, e, subitamente, ela se lembrou.

- Era esse colar que você queria me mostrar naqueles dias em que eu...

- Em que você começou a fugir de mim – Luna completou. – Perfeitamente.

Gina calou-se por um momento, antes de continuar.

- É uma herança da sua mãe?

- Dos meus pais, na verdade – e, dizendo isso, Luna levou a mão ao pescoço e puxou um colar com uma pedra gêmea da outra para fora da camisa.

Gina piscou e ergueu os olhos para Luna, buscando uma explicação.

- Papai e mamãe sempre acharam que utilizar anéis como símbolos de compromisso era sem sentido. Veja bem, é com as mãos que se toca tudo o que há de fútil e carnal no universo palpável... Eles não queriam esse tipo de signo para a união dos dois. Então escolheram usar colares em vez de anéis. Colares como alianças fazem muito mais sentido, percebe? A corrente pende sobre o peito, perto do coração... O significado é muito mais íntimo e profundo – a loirinha argumentou, e Gina não pôde deixar de pensar que era um pensamento bastante válido.

“Esses são fragmentos de uma pedra de fogo. Eles esquentam quando estão próximos...”

- Como os corações de dois amantes – Gina concluiu num murmúrio.

- Sim... Meus pais pensaram em tudo – Luna sorriu levemente e, se Gina não estivesse olhando para longe, teria percebido um brilho todo cheio de significância no olhar que a menina estava lhe dirigindo.

Gina queria dizer que aquele era o presente mais belo que alguém poderia ter-lhe dado, mas as palavras simplesmente não saíram. Estavam presas e palpitantes em seu peito, recusando-se a escapar para a sua garganta e tomar forma em seus lábios.

Os últimos raios de sol desapareceram atrás das montanhas recortadas no horizonte. Luna retirou os pés da água e, após usar as meias para seca-los, começou a recolocar os sapatos. As mãos dela amarraram os cadarços habilmente e, assim que terminou, a loirinha pôs-se de pé.

- Vou voltar para o castelo – ela anunciou.

- Também – Gina murmurou, erguendo-se do chão.

Enquanto elas caminhavam para a porta da escola, a consciência de Gina parecia perceber a presença de Luna ao seu lado com a intensidade de pequenos choques elétricos. A primeira descarga da corrente de energia foi provocada pelo roçar despreocupado da mão da menina na sua. Os pêlos do braço de Gina se arrepiaram numa reação ao contato. Num encadeamento instantâneo outros de seus sentidos foram despertando aguçados. O olfato podia trabalhar com a realidade, captando o perfume da pele e do cabelo da menina, mas os outros dependiam da sua imaginação. Os olhos de Gina passearam pelos lábios de Luna, descendo para seu pescoço, seus peitos e...

Ela quase tropeçou idiotamente no penúltimo degrau da escada. Felizmente Luna não reparou, ou fingiu não reparar. Corando, Gina procurou não dar atenção ao que acabara de despertar em seu baixo ventre. Sempre nos momentos menos pertinentes – pensou – ah, que maravilha. E sua imaginação funcionava veloz. Podia se ver empurrando Luna contra uma parede; podia sentir a sua língua escorregando pelos mamilos...

Estava apavorada, mas o desejo era encorajador e ousado. Talvez pudesse realmente fazer aquelas coisas. Só precisava do momento certo... Poderia ter sido quando entraram num corredor vazio no segundo andar, mas os membros de Gina pareciam condicionados a andar continuamente, incapazes de agarrar o corpo de Luna num impulso. Uma outra oportunidade – e dessa vez Gina chegou a erguer o braço levemente – surgiu alguns degraus e esquinas depois, mas novamente não aconteceu. Então, para a total frustração de Gina, Luna parou e disse que precisava fazer qualquer coisa no andar superior. Separariam-se ali.

Quando ela fez menção de segurar, no entanto, Gina soltou uma exclamação estrangulada e apanhou o pulso da menina.

- Não...

Luna olhou para ela com intensidade.

- Por que?

- Eu sinto a sua falta – Gina desabou, e então não conseguiu mais se controlar – Muito. E é horrível, porque você está tão perto e, apesar disso, está tão distante. Às vezes eu olho para você e você nem percebe... É como se eu fosse invisível.

Gina sabia que estava exagerando - Luna era distraída naturalmente, e não fingia ser para feri-la -, mas era da sua personalidade engrandecer as coisas em desabafos. Ela esperava que a menina negasse ou que argumentasse com frieza, mas não foi o que aconteceu.

- Você nunca é invisível para mim – Luna contestou. – E sabe disso.

Gina, que já estava elaborando todo um discurso antevendo qualquer resposta negativa da menina, ficou alguns segundos sem fala até conseguir se recompor.

- Eu não sei. Você não deixa transparecer nada... – Gina suspirou - Eu não sei.

Luna sacudiu a cabeça.

- Você conhece os meus motivos.

As bochechas de Gina arderam.

Outra vez. Outra vez as mesmas respostas, que gerariam o mesmo tipo de discussão, que acabaria da mesma forma de sempre: sem acabar. Por mais que soubesse que provocara tudo aquilo, Gina simplesmente não achava que pudesse tolerar um desfecho do gênero outra vez. Revirou os olhos.

“Não faça isso. Você sabe que não tem o direito”, Luna falou.

Gina abriu a boca para responder, mas não conseguiu. Discutir quando não se está com a razão é uma péssima idéia, pois argumentar é quase impraticável. Gina cruzou os braços e passeou com o olhar pelo corredor, sem realmente vê-lo. Estava zangada e inquieta. Podia sentir Luna fitando-a atentamente, e a sensação não era nem um pouco confortável. Aquilo contribuía para deixa-la mais infeliz e aborrecida.

- Certo, então – Gina grunhiu, finalmente – Pode continuar achando que eu sou a pessoa mais desprezível e pouco confiável do planeta. Eu vou parar de me importar.

- Gina...

- Aliás, eu não estou me importando agora. Nem um pouco.

Luna não exprimiu qualquer reação. Continuou a encara-la, estática, durante algum tempo, até finalmente parecer ter-se convencido de que a melhor atitude era ir embora. Ela deu alguns passos para trás e fez menção de virar de costas, mas Gina não permitiu. Agarrou a mão da menina e puxou, obrigando Luna a encara-la.

- Pensei ter ouvido você falar que não se importava – Luna comentou com displicência, mas havia uma sutil provocação em seu modo de falar.

Gina bufou.

- Eu não me importo. Mas ainda não acabei de falar, e você não vai me deixar com palavras engasgadas outra vez.

- Então termine – Luna deu de ombros.

E no segundo seguinte ela havia sido empurrada contra a parede de pedra fria por uma Gina afoita e seus lábios em brasa.

A ruivinha deixou que seus instintos assumissem o controle e trancou os pensamentos no sótão da mente. Estava concentrada somente em morder e lamber languidamente todos os ângulos da boca de Luna, que respirava pesadamente e tremia sob o contato de suas mãos atrevidas. Num minuto elas estavam escorregando sobre a camisa da garota, roçando seus peitos, e no outro já lhe apertavam as coxas fartas. Entraram, aos tropeços, na primeira sala vazia, onde Gina arrancou a roupa de Luna e deixou-a só de calcinha, meias longas e calçado – um fetiche particular.

- Você está sendo bastante pervertida – Luna murmurou, deitada sobre uma mesa, quando a outra bruxa subiu por cima dela e sentou com uma perna em cada lado do seu corpo.

Gina sorriu maliciosamente, passeando com dedos sugestivos pela barriga de Luna.

- Eu posso ser muito mais pervertida que isso... – provocou, deixando-se cair para frente.

Suas mãos estavam uma de cada lado da cabeça da menina, e, apoiando o peso do corpo em seus braços esticados firmemente, ela aproximou o rosto da face de Luna. Roçou seu nariz no dela e lhe lambeu os lábios, afastando-se quando a outra tentou roubar um beijo. Luna tentou algumas outras vezes, sem sucesso, e desistiu. Ela suspirou e fechou os olhos.

- Vai pagar por isso, Gina Weasley...

A ruiva riu despreocupada e aproximou os lábios na orelha da garota. Sussurrou:

- Estou tremendo...

Então sentiu os dedos de Luna entre suas pernas e começou a tremer de verdade.

- Posso perceber – a loirinha disse, satisfeita.

Quando analisasse o assunto, algum tempo depois, Gina concluiria que aquela era uma das formas mais pornográficas de se consertar um relacionamento. Sempre ouvira falar que sexo para fazer as pazes era muito melhor, e agora podia confirmar por sua experiência pessoal. Não sabia se era o desejo, a saudade ou a vontade de se castigarem através da libido, mas o fato é que aquela noite decididamente entraria para o seu Top 5 – Sexo.

Quando saiu daquela sala, Gina tinha um roxo no pescoço, alguns arranhões nas costas, os lábios vermelhos e seus cabelos ruivos colados na testa. Suas roupas estarem completamente amassadas e em desalinho era um mero detalhe com que ela pouco estava se importando. Se tivesse relógio saberia que era por volta das 3 da madrugada. A única criatura no salão comunal da Grifinória era Bichento, que lhe lançou um olhar aborrecido de cima do encosto de uma poltrona. Gina sequer reparou. Estava sorrindo tolamente, sonhando acordada com os gemidos roucos de Luna.

Ela abriu a porta do dormitório do quinto ano silenciosamente e largou-se na cama sem sequer trocar de roupa. Podia sentir o cheiro de Luna em sua pele e seus sabores na boca. Passou a língua pelos lábios, satisfeita, e fechou os olhos. Apesar de eufórica pelo que acontecera, Gina também estava exausta. Luna consumira quase toda a sua energia nas últimas horas, e ela não estava mais acostumada com isso. Se tudo corresse bem, ela precisaria se habituar, é claro... “Mas isso decididamente não será problema”, deleitou-se.

Em alguns minutos o corpo de Gina começou a ser dominado pelo torpor. Seus pensamentos vagavam pela fina linha entre o consciente e o inconsciente, perdidos entre as lembranças sobre Luna. Era interessante como ela quase podia sentir a suavidade do corpo da menina sobre o seu, as mãos astutas prendendo seus pulsos e os lábios roçando seu pescoço. Tão real...

Gina piscou.

- Hora do troco...

- Luna...

Ela realmente estava lá, sobre seu corpo, e havia todas as piores intenções em seu olhar.

- Você não achava que escaparia dessa, achava?

Gina sorriu.

Não podia imaginar um modo de ficar melhor.

Our wish,
Each time,
Keeps me returning to you
Night after night
Lift me up as high as the clouds that warm the sky
For you and I


***


- Luna?

- Hm? – a menina respondeu, sonolenta.

Sua cabeça estava apoiada no peito de Gina, que acariciava suas mechas loiras gentilmente.

- O que isso significa?

Luna demorou algum tempo para responder. Estava ressonando.

- O que você acha que significa?

- Não sei. O que você acha?

Luna suspirou e Gina sentiu o ar quente roçando a sua pele.

- Acho que... – ela parou.

Era óbvio que não podia raciocinar com clareza, pois estava praticamente adormecida. Mas Gina não podia pegar no sono sem saber.

- Acha...? – silêncio – Lu?

- Se você parar de falar e me deixar dormir – Luna resmungou com a voz arrastada – Nós poderemos fazer sexo de manhã.

Gina escancarou o sorriso mais satisfeito que seus lábios poderiam dar.

Thinking of the words to say
I'd like to think that this was fate…

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.