Viver



Capítulo 10. Viver

Para que você continue sonhando, eu devo proteger a noite.
Certamente em algum dia, eu me tornarei uma dessas coisas que você ama.
E se eu acreditar na pessoa perto de mim,
Eu posso continuar vivendo com somente o amor no meu coração.
- Yume Miru Tame Ni, Saikano Hoshi no Hate Single

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- Veja algo sobre meu filho.

Por um segundo, Gweena pareceu vacilar, mas então, decidida, fechou os olhos e ficou segurando a mão esquerda de Lílian, como que se concentrando.

- Hum... vejo aqui um grande amor, dor, muita dor mesmo, uma guerra terrível, muita angústia e... e essa criança muito especial. Mas disso você já sabe - Gweena abriu os olhos e encarou a jovem. - O que vou lhe dizer de novo é que seu descendente fará grandes coisas. Terá uma imensa capacidade de renúncia, será indulgente com quem lhe fizer mal e ele próprio achará que isso foi um erro. Mas nada será em vão, o destino dele será maior do que uma simples vingança. Vários zelarão por ele quando você partir, mas não será suficiente. O perigo será seu companheiro constante, pois uma sombra o perseguirá e, cada vez que ele colocar a cabeça no travesseiro em segurança, você suspirará aliviada de onde estiver.

Lílian encarou Gweena, desconfiada. Esse não era o tipo de previsão a que estava acostumada. Onde estavam os "você terá boa sorte" ou "evite escadas nos próximos três dias"? Involuntariamente, sua mão que não estava sendo "lida" voou em direção ao ventre e ela não pôde deixar de perceber que o bebê parecia ter ficado muito quieto de repente.

- Ele... irá sobreviver? - gaguejou.

- Você não está usando o que ensinei - Gweena empurrou a mão de Lílian de volta, parecendo subitamente aborrecida. - Está fazendo as perguntas erradas.

- Por que querer saber isso é errado?

- Porque todos vamos morrer e fazer perguntas sobre isso só serve para nos afligir ainda mais - respondeu. - O que realmente importa é se ele usará bem o tempo que você se sacrificará para dar a ele.

Lílian ficou paralisada por alguns segundo, mirando as chamas que dançavam alegremente na lareira, até engolir seco e perguntar:

- Ele usará?

- Depende dele e do que ele escolher - a vidente fez um gesto desdenhoso com as mãos e a pulseiras tilintaram irritantemente. - Você já fez sua escolha, embora tomá-la ainda faça parte do seu futuro, já sabe o que fará quando chegar a hora. Não é sua responsabilidade o que ele fará com a chance que lhe foi concedida.

- Ensinarei meu filho a sempre procurar o caminho do bem... - disse a ruiva, com firmeza.

- Assim você fará enquanto puder.

- Eu farei, juro que farei - insistiu.

- A sua vontade é muito forte. E se eu lhe dissesse que ao ter essa criança estará dando o primeiro passo para perder aquilo que mais ama?

- Eu amo meu filho - fez Lílian, desviando o olhar para o tapete com formatos geométricos. - Eu não vou perdê-lo. Você mesma disse que ele tem um grande destino a cumprir.

- Está fazendo isso de novo... acha que ver um pouco além pode te dar alguma idéia do quão engenhoso é esse ente chamado destino?

- Eu vou ter um filho do homem que eu amo, me basta saber disso para acreditar no meu futuro - falou Lílian, uma vontade de escapar o mais rápido possível da presença de Gweena Tirésias crescendo dentro dela.

- Exatamente, você finalmente entendeu - Gweena sorriu satisfeita. Então colocou a mão sobre a cabeça de Lílian como faria para felicitar uma criança. - O conhecimento do destino não deve lhe afligir, mas lhe dar forças extras para seguir em frente.

Lílian fechou os olhos, admitindo que as palavras da vidente tinham acalmado sua mente de uma forma que ela ignorava necessitar.

De algum modo, ela estava tentando apagar a própria vida, como se sua existência não tivesse importância. Como se suas crenças não tivessem nenhum valor. Como se sua felicidade fosse algo fácil de se abrir mão. Mas agora via que estava errada.

No fundo, não estava tentando poupar Tiago, e sim fugindo de alguém que a obrigava a querer viver. E ela tinha medo dessa sensação de amar, de ser amada, da coragem que isso era capaz de dar a alguém, pois sabia que, na mesma proporção em que aumentava sua capacidade de ser feliz, também aumentava sua capacidade de sofrer.

Acariciou a barriga, imaginando como uma pessoa fraca como ela poderia ter a pretensão de guardar tudo aquilo para si própria. Estava sendo cruel com tanta gente, impedindo-os de fazer algo.

Foi então que ela percebeu que Gweena tinha ido embora sem nem se despedir. E, parado à porta, estava um jovem de cabelos negros, muito arrepiados, arfante, como se tivesse subido correndo as escadas para o primeiro andar - onde ficava o quarto.

Ele entrou andando devagar e caiu ajoelhado junto às pernas dela, abraçando-a pela cintura.

- Eu não vou desistir. E não vou deixar você desistir - falou Tiago, com um fio de voz. - Vou ficar com você não importa se você quer ou não. Porque se eu não tiver você para voltar, não tenho ninguém mais. Você é a única pessoa no mundo com a qual eu me importo de verdade, sem a qual eu não poderia de viver. Então não fale sobre desistir, eu quero viver... eu quero muito viver porque te amo. E nada que aconteça vai mudar o que eu sinto.

- Esse mundo logo não vai ter mais lugar para coisa instáveis como sentimentos - sussurrou ela.

- Você está mentindo! - falou Tiago, um pouco mais alto do que queria. - Você lembra do que escreveu? "Nunca vou te esquecer..." Você não esqueceu, e ainda sabe o que sente por mim.

- Eu... eu nunca vou esquecer.

- Eu sei - ele a abraçou com mais força. - E não importa o quão insignificante isso seja, nós ainda estamos vivos.

Lílian se deixou escorregar para o chão e ficou sentada, abraçada ao marido. O destino havia feito a escolha por ela. E, pela primeira vez, Lílian sentiu que queria correr o risco. Não, não queria saber o que viria depois.

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Quanto a Gweena, Lílian não teria nenhuma notícia dela por longos meses. Não até um dia em meados de junho, quando Minerva lhe contasse uma história gozada sobre a professora de Adivinhações de Hogwarts ter decidido pedir demissão sob a alegação de "ter que cumprir um destino".

Ninguém - nem mesmo Lílian - poderia prever ou imaginar que essa atitude mudaria o rumo do mundo dos bruxos, da guerra e da vida daquele casal.

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Tiago caminhou pelo corredor, preocupado em andar na ponta dos pés para não fazer barulho. A casa no subúrbio de Londres estava silenciosa, exceto pelos som discreto de um farfalhar de varinha.

Com todo o cuidado de evitar as tábuas do assoalho que rangiam, o jovem conseguiu chegar à porta no fim do corredor. Estava fechada. Ele se abaixou para ficar na altura da fechadura e espiou com um olho só a esposa no centro de um quarto espaçoso, olhando para as paredes, inconformada.

Estava trancada há horas tentando decidir a melhor cor para pintar as paredes encardidas do quarto que antes fora pouco mais que um depósito de móveis quebrados e relatórios da ordem.

De alguma forma, Tiago tinha certeza que Lílian estava diferente. Talvez desde a visita voltara pra casa. Parecia mais madura, mais determinada, mas também mais temerosa. Ele via aqueles olhos verdes o espreitarem pelos cantos quando ele saía em alguma missão, como se tivessem medo de que ele não fosse voltar.

Subitamente, Tiago foi arremessado para trás pela porta se escancarando com violência, caindo estatelado contra a parede.

- Eu não mandei você não chegar perto? - resmungou Lílian, mal-humorada. Tinha os lábios crispados e as mãos na cintura. Usava um largo vestido azul claro que fazia com que a gravidez de oito meses parecesse ainda mais pronunciada.

- Pensei que você soubesse que eu nunca fui cumpridor de regras - fez Tiago, sentado no chão do corredor com as costas apoiadas na parede.

A visão pareceu afetar Lílian, pois suas feições se abrandaram e ela se adiantou para ajudá-lo a levantar. Mas essa não era exatamente a intenção dele.

Num movimento ágil, Tiago puxou Lílian para o chão e a trouxe para junto do peito num abraço como há muito não davam, fosse pelas viagens com datas desencontradas, fosse pelo cansaço que os consumia nas poucas semanas em que permaneciam juntos em casa. E se deixaram ficar ali, naquele abraço silencioso, os raios avermelhados do sol entrando pela janela e banhando de luz sangrenta o quarto e o corredor.

Subitamente, Lílian levantou o rosto e seus olhos se encontraram com os do marido. Uma mecha de cabelo vermelho dançava pelo rosto dela, embalada pela melodia inaudível da corrente fria que fazia seu caminho do corredor à janela do quarto.

- Queria te dizer... - mas ele não deixou que ela continuasse, tocando seus lábios.

- Não fale nada agora - sussurrou.

- Te amo - insistiu ela.

- Não mais do que eu amo você.

Ela sorriu, divertida.

- O que foi?

- Você disse isso no dia em que nos casamos.

Ele riu também.

- É, estou precisando inventar cantadas novas.

Lílian imitou a expressão de quem acabara de receber um desaforo, dizendo:

- Pra que você quer cantadas novas, hein?

- Ora, eu preciso ter coisas diferentes pra falar pras minhas amantes.

- Como você se atreve a fazer isso comigo depois de... - Tiago a interrompeu com um beijo, mas ela o empurrou rindo, para completar a frase: - depois de fazer isso comigo?

Em vez de rir ou responder com mais uma gracinha, ele apenas estendeu a mão e colocou atrás da orelha dela uma mecha solta do cabelo ruivo. Logo em seguida, a mecha voltou a se soltar e ele tentou ajeitar de novo, mas ela segurou sua mão e a apertou com força. Ele se inclinou para frente para um beijo, quando Lílian se apoiou pesadamente na mão dele e se ergueu.

Deu alguns passos para dentro do quarto e sorriu satisfeita:

- Já sei qual vai ser a decoração: vou encher as paredes de pôsteres de Gwenog Jones e do Holyhead Harpies e também de grandes bruxos inventores.

Tiago fez uma cara atônita e ficou assistindo a esposa andar de um lado para o outro, contando nos dedos todos os rostos de livros de História da Magia que pintaria nas paredes.

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Com a entrada do mês de julho, até pequenos trabalhos para a Ordem passaram a ser difíceis para a Lílian. Apesar da imensa sensação de plenitude de estar prestes a dar a luz, muitas vezes a jovem desejava poder descansar da barriga, agora já bem grande, e ter uma boa noite de sono pra variar. Tiago agüentava seu crescente mal-humor sem reclamar e voltou a passar o máximo de tempo possível em casa, se recusando veementemente a falar sobre as batalhas.

Em algumas noites, Lílian acordava em plena madrugada para ir ao banheiro e, ao voltar para a cama, surpreendia o marido agarrando as cobertas, se contorcendo em caretas de sofrimento. Ela só podia imaginar que lembranças dolorosas povoavam os pesadelos de Tiago que ele se recusava a dividir.

Marlene aparecia com muita freqüência em sua cozinha de manhã, geralmente trazendo as últimas notícias da guerra e um sopro de disposição para uma Lílian cada vez mais cansada. Às vezes, as duas ainda tinham missões juntas, e Marlene costumava escoltar a amiga quando era necessário fazer feitiços de memória em massa, o que acontecia com uma freqüência cada vez maior.

Na segunda semana de julho, Marlene teve uma grande surpresa ao encontrar a amiga enfiada num macacão de pintor amarelo carregada de rolos, pincéis e latas de tinta. Tiago parecia no mínimo desnorteado, dizendo a todo minuto que Lílian tivesse cuidado, que ela estava usando o feitiço de levitação de maneira errada, que devia deixar que ele ajudasse.

Mas nada surtiu efeito. Erguida no ar magicamente, Lílian distribuía cores berrantes pelas paredes do quarto do futuro bebê, intercalando a tinta com pôsteres em movimento de bruxos famosos por suas invenções mágicas - tinha até uma pequena biografia aos pés de cada imagem. Os bruxos reclamavam quando ela cobria os pôsteres com colador mágico e passavam horas espirrando por causa do cheiro de tinta.

Tiago acabou por tranqüilizar Marlene dizendo que iria consertar tudo quando Lílian fosse para o hospital. Provavelmente, voltaria de lá tão boba com o bebê que nem ia perceber a diferença.

Não demorou muito para que uma legião de bruxas mais velhas, esposas ou viúvas de membros da Ordem e antigas amigas da família de Tiago, entrasse em contato com Lílian, dispostas a enchê-la de corujas trazendo extensas histórias e conselhos, bem como sugerindo curandeiros e parteiras bruxas dos mais diversos lugares da Europa. Se por um lado, isso revelava grande consideração, por outro, aumentava consideravelmente seu medo de um parto malsucedido.

Foi no último dia de julho, quando Tiago estava fora fazendo a escolta de cinco Comensais da Morte recém capturados, que, voltando de um passeio com Marlene, Lílian escorregou num degrau molhado do pequeno lance de escadas em frente à casa dos Potter em Londres e caiu sentada. Enquanto a amiga a ajudava a se levantar, Lílian sentiu a água quente lhe escorrendo pelas pernas e se misturando à água deixada pela chuva da madrugada anterior e, instantes depois, sua barriga se enrijecia dolorosamente dando início ao trabalho de parto.

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