QUATRO



            Terry, o menino que tinha jogado o molho de salada, me inspirou. Naquela tarde, quando a segunda série apareceu, dei um kit de beisebol para eles. As crianças adoraram as luvas antigas que a igreja havia separado. Alguns faziam poses como se fossem verdadeiros jogadores, outros preferiram usar as luvas como se fossem chapéus. Logo, foram para as bases e começaram a girar os braços como moinhos de vento, lançando bolas para os batedores.


            Quando chegou a hora de recolher tudo, não encontrei uma bola, justamente a que eu havia rebatido. As crianças se espalharam para procurar, até que Miguel gritou atrás da terceira base. Ele estava bem além do limite do campo, perto de uns pinheiros cheios de arbustos.


            - Tia Hermione! - gritou, fazendo um lançamento com a bola que me deixou admirada.


            Quando retomei para o escritório do acampamento ao final do dia, contei sobre o lançamento perfeito de Miguel para Anna e Hau.


            Eles se entreolharam.


            - Você deveria dizer a ele que foi incrível- falou Hau.


            Anna concordou.


            - Estávamos mesmo conversando sobre Miguel. Achamos que ele passa por uma situação difícil em casa. Provavelmente sofre algum tipo de abuso, apesar de não existir nenhuma evidência física. De qualquer modo, seria muito bom para ele receber um elogio.


            - Para todos eles - Jim completou, atravessando a porta do escritório. - Até mesmo Eugene... se ele nos desse algum motivo para elogiá-lo. Hermione, aqui está uma mensagem de desculpas do seu colega.


Querida professora,


   Me desculpa. Eu joguei catchup em você.


   Eu quero pedir desculpa pelo molho da salada também.


   Eu prometo não rir alto de novo.


   Mas você estava engrassada.


              Seu amigo,


              Eugene, 70


            - E aqui está um bilhete do Terry - acrescentou Jim.


            - E o do Harry? - perguntei. Ele havia entrado com o Jime estava descarregando um carrinho de mão abarrotado com livros, pincéis, tintas, um toca-CD,pacotes de macarrão e cereais.


            Um canto da boca de Harry se levantou.


            - Você não é muito agradecida - observou. - Eu aposto que o Ovos Mexidos...


            - O nome dele é Draco.


            - ...nem teria percebido que você estava usando uma barba de molho de salada. Foi o catchup vermelho que fez com que ele notasse que você estava suja.


            Com certeza, eu adoraria que ele tivesse me notado – suspirou Pamela, esparramada na cadeira, ajeitando uma unha que havia quebrado.


            - Bem, falando de rapazes que notam – Harry esticou o braço para o alto e apanhou um pedaço de papel rosa do quadro de avisos -, seu recado. Eles estão fazendo fila, não é mesmo? Acho que até o seu amigo, Eugene, tem uma quedinha por você.


            Peguei o papel sem dizer uma palavra. Sabia que ele só estava provocando, mas, nos últimos dias, eu estava me sentindo um pouco sensível em relação às minhas experiências com os garotos.


            - Bem- falei, enquanto pegava o capacete da bicicleta, tenho de ver uma amiga antes de chegar em casa, e preciso me livrar dessa camiseta antes que eu comece a cheirar como um monte


de adubo.


            Harry me agarrou suavemente pelo braço e colocou uma camiseta em minhas mãos.


            - Vista. Não seja tão teimosa, Hermione. Vai se sentir melhor.


            Bem, eu não queria aparecer na casa da Gina cheirando lixo e como eu nunca conseguia me enfiar em um dos tops dela, acabei aceitando a camiseta. Dez minutos mais tarde, depois de esfregar minhas bochechas e lavar algumas mechas pegajosas de cabelo, retomei para o escritório. Lá, comecei a sentir um cheiro suave - um perfume de ervas, mas bem masculino. Um aroma muito gostoso. Levantei a gola da camiseta para perto do meu nariz.


            - Eu a vesti por apenas quarenta minutos e num lugar com ar-condicionado! - Harry se defendeu.


            Não havia visto que ele estava no escritório. Todos já tinham ido embora. Abaixei a camiseta rapidamente.


            - É... hã... macia. Obrigada por me emprestar.


            - De nada - Harry estava fitando o meu cabelo, que começava a se arrepiar com a umidade.


            - Não consigo evitar - falei, colocando as mãos rapidamente na cabeça, soando tão defensiva quanto ele. - É assim que ele cresce.


            Harry ficou sorrindo até que eu desviei o olhar e, então, recomeçou a contar folhas de papel colorido. Assim que terminou, cheguei mais perto dele.


            - Percebi que você não mostrou a ninguém o que a turma da terceira série pintou hoje à tarde. Aposto que sei qual foi o tema preferido deles.


            Ele soltou uma gargalhada.


            - As crianças são fascinadas por você. Qual o problema disso?


            - Nenhum, é só que... - mordi a língua.


            - O quê?


            - Nada não.


            - O quê? - perguntou de novo, suavemente.


            - Ah, não sei. Às vezes, eu gostaria de ser um pouco diferente - murmurei. - Bem, tenho de ir.agora.


            - Diferente em quê?


            - Mais delicada.


            Harry tentou parar de gargalhar e acabou bufando.


            - Desculpe - disse e pigarreou para limpar a garganta. - Desculpe. Certo... delicada. - Como uma bailarina. E talvez ruiva.


            - Você gostaria de ter cabelos ruivos e lisos? - perguntou, olhando nos meus olhos.


            - Sim. Ruivo, caindo como seda.


            - E talvez você quisesse ser alguns centímetros mais baixa - sugeriu.


            - Com certeza. Assim, eu não seria mais alta do que a maioria dos garotos - coloquei o meu capacete.


            - E provavelmente você gostaria de vestir collants e saias bem curtas.


            - Adivinhou - suspirei.


            - Hermione, eu acho que tem alguém procurando por você. Talvez eu esteja errado, mas acho que é a Gina.


            Eu me virei para a porta.


            - Gina! O que você está fazendo aqui?


            - Hermione, eu tenho uma ótima notícia! - disse ela, atravessando a sala em minha direção, vestindo um collante uma saia bem curta.


            - Espere só até ouvir. Você não vai acreditar! Segui o seu conselho.


            -É?


            - Conversei com algumas pessoas que entendem de dança - disse já no meio do escritório. - E, então, eu me matriculei.Estou tendo aulas com Françoise Bui. A Françoise Bui. Bem aqui no campus!


            - Bem aqui no campus? - repeti, sentindo um frio na barriga.


            - Sabe o prédio Hughes?


            Sim, eu o conhecia muito bem.


            - Fica ao lado do ginásio novo - continuou Gina. – E você não vai acreditar quem eu vi lá.


            - Deixe-me tentar - intrometeu-se Harry.


            Gina virou os seus grandes olhos cinza para ele, então chegou mais perto de mim.


            - Quem é ele?


            - É o Harry.


            - Sei... Está preparada? Você não vai acreditar.


            - Draco Malfoy – falamos ao mesmo tempo.


            Ela me olhou desapontada.


            - Você sabia que ele estava aqui? Hermione, por que não me disse nada?


            Sentei numa cadeira e comecei a mexer nas canetas do Jim.


            - Eu... eu esqueci.


            Quando olhei para o lado, Harry estava virando os olhos para o alto. Felizmente, Gina não o viu fazendo isso. Eu nunca havia mentido para ela antes e agora já era a segunda vez em dois dias. Eu me senti como um rato.


            - Não é engraçado, como todos nós acabamos juntos no campus? - ela disse admirada.


            - É... engraçado - repeti. - Fico feliz que tenha lhe dado um conselho tão bom. - Escute, Gina, eu também tenho uma novidade. Você se lembra do Steve Dulaney?


            - Steve Dulaney... - ela começou a andar vagarosamente em círculos, dando oportunidade para Harry pregar os olhos em suas pernas perfeitas.


            - Nós o conhecemos na terceira série - refresquei sua memória.


            Ela balançou a cabeça e franziu as sobrancelhas.


            - De qualquer modo, ele nos convidou para uma festa.


            - Espera um minuto. Steve Dulaney, aquele ce-de-efe magrelo?


            - Bem...


            - Por que são boas notícias?


            - Ele mudou. E acho que está bem interessante. E se lembrou de você.


            Gina se sentou graciosamente num banco alto. Harry não desgrudava os olhos dela.


            - Como ele poderia se esquecer de nós, Hermione? – perguntou Gina. - Lembra-se do dia em que roubamos o cinto dele durante a aula de educação física? E ele ficou com tanto medo que não disse nada. E depois as calças dele caíram bem no meio da aula de história!


            - Mas ele encorpou, sabe?


            Harry soltou uma de suas gargalhadas e eu o fuzilei com os olhos.


            - Ah, ele encorpou, sim! - Harry disse, rindo. - Quer dizer, acho que sim. Eu acabei de me mudar para cá. Mas acho que ele é um cara de boa aparência. Você deveria ir à festa e checar pessoalmente.


            Gina olhou assustada para Harry.


            - Eu vou - acrescentou ele.


            Ela mordeu os lábios e me deu uma olhada. Harry sorriu e se levantou.


            - Prazer em conhecê-la - disse para Gina. - Até amanhã, Hermione - falou batendo duas vezes em meu capacete.


            Depois que ele saiu do escritório, Gina me encarou.


            - Por que você não me falou nada sobre o Draco? - perguntou.


            - Já disse - gemi, sem querer repetir a mentira.


            - E por que - ela se virou para a porta pela qual Harry acabara de sair- você não falou dele?


 




            Quinta-feira à noite, eu e Gina mal havíamos chegado à festa de Steve Dulaney e começamos a girar os nossos pescoços para todos os lados. Vendo aqueles gatinhos, devo confessar que quase me esqueci da minha missão: por trinta segundos, eu não pensei em Draco.


            Então, Steve veio em nossa direção. Bastou que ele apertasse a mão de Gina para não desgrudar mais. Sorri, ignorando o olhar de pânico de minha amiga, e parti para a minha missão.


            Normalmente, eu teria me sentido deslocada em uma festa como aquela. Os amigos de Steve se encaixavam nos dois tipos de rapazes que eu costumo evitar. O primeiro é aquele que se veste como se fosse um clone do pai, com roupas esportivas que nunca foram usadas realmente para praticar algum esporte. O segundo tipo é o que se rebela gastando fortunas em roupas "largadas" - sendo que seu carro nunca é "largado". No entanto, naquela noite descobri que alguns deles podem ser realmente interessantes. Seguindo a minha missão, eu conheci diversos caras legais. Tínhamos os mesmos interesses - esportes e Gina.


            Depois de circular por uma hora e meia no primeiro andar, me lembrei que ainda não havia encontrado Harry. Tinha a sensação de que ele sabia o que eu estava tramando, mas até que estava com paciência para provocações naquela noite. Peguei um refrigerante e um punhado de amendoim e me sentei para observar um grupo de meninas ao redor de um cara. Não conseguia enxergá-lo, apenas as suas pernas - pernas musculosas, incríveis, pernas que combinariam muito bem com Gina, se o resto do corpo fosse parecido.


            - Um gato, né? - disse uma garota que se sentou ao meu lado. Ela tinha um visual meio clubber  e usava um relógio digital com tantos botões e pinos que poderia navegar pelo pólo Sul.


            - Tem umas pernas perfeitas - respondi.


            Ela soltou uma gargalhada.


            - O resto é melhor ainda. Ombros maravilhosos. Bunda maravilhosa. Olhos tão verdes que fazem a gente tremer.


            - Ele está interessado em alguém? - perguntei.


            - Não que eu saiba. Acabou de se mudar para cá, da Pensilvânia. O nome dele é Harry Potter.


            Fiquei chocada. As bolhas do refrigerante subiram até o meu nariz, fazendo com que meus olhos ardessem.


            - Você disse Harry?


            Ela confirmou com a cabeça, mechas de cabelo pendiam sobre sua testa.


            - Acho que ele mora aqui do lado.


            Subitamente, como se tivessem combinado, todas as garotas saíram juntas. Harry me viu olhando em sua direção e acenou.


            - Oi, Hermione!


            - Oi, Harry!


            - Vocês se conhecem? - berrou a garota ao lado.


            As outras me fitaram e se entreolharam.


            Mais tarde, naquela mesma noite, eu ri quando me lembrei da cena. Tudo o que Harry fez foi dizer duas palavras de cumprimento e abrir um grande sorriso, e aquilo me coroou como a rainha da noite. De repente, todas as garotas da festa queriam conversar comigo.


            O resto da noite foi bem agitado. Enquanto eu tentava entrevistar rapazes para Gina, as meninas me faziam perguntas sobre Harry. Realmente é incrível como basta ter as conexões certas para se tornar popular.


            - Parece que você está se divertindo bastante – observou Harry, quando o encontrei na cozinha.


            - É. E você?


            - Bastante. Gosto de conhecer pessoas - disse, balançando a cabeça.


            Percebi que ele olhava o meu cabelo. Em um momento de grande umidade e desespero eu recorri a um método que minha mãe disse que usava quando era adolescente: passei o cabelo com ferro. A idéia é que assim ele parecesse macio e sedoso e eu ficasse com um aspecto glamouroso.


            - O que você fez com o seu cabelo?


            - Usei spray - respondi bruscamente.


            - Você usou uma caixa de ferramentas para que ele ficasse assim?


            - Eu passei com ferro, tá bom?


            Isso foi tudo o que eu e Harry conversamos naquela noite, mas toda vez que nos encontrávamos, ele sorria para mim. Nos lábios, um pequeno, quase secreto sorriso; mas nos olhos um sorriso fascinante. Quer dizer, é assim que deve ter parecido aos olhos das outras garotas.


 

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