Medo de voar



Capítulo 4
Medo de Voar
Tom concluiu rapidamente que, tirando o fato de ali se estudar magia, não havia muita diferença entre aquela escola e uma escola trouxa. Logo, se fora sempre excelente aluno para matemática, inglês e história, não seria diferente em Astronomia, história da magia, transfiguração, etc. Logo logo compreendeu também que Demian não só parecia, era efetivamente bem menos inteligente que ele, se bem que não fazia dele um tolo, para algumas coisas ele era bem esperto. 
Mas havia uma matéria em que Demian sem dúvida nenhuma sempre superaria Tom. Uma matéria que não dependia de inteligência, mas sim de habilidade, o que ele descobriu logo na primeira aula: vôo. 
Não que Tom fosse um garoto medroso. Mas ele simplesmente não suportava altura, a primeira aula de vôo da turma foi com a Grifnória, e ele viu o jovem Caius, que ele conhecera no primeiro dia, conversando com outros meninos da Grifnória sobre vôo e quadribol:
- Não, não é difícil, meus irmãos voam muito bem, tanto que um deles é batedor no time da escola, eu mesmo voei nas férias na vassoura dele... vocês não tem idéia do que é voar numa dessas novas vassouras de corrida, não tem nada a ver com aquelas coisas que a gente vê, que não tinham aerodinâmica nenhuma... e esses cabos polidos dão total segurança, cerdas regulares também foram um achado... imagino como vão ser as vassouras daqui a alguns... olá, Tom... preparado?
- Mais ou menos – ele disse, sabendo que provavelmente sua pele naquele momento estaria ligeiramente esverdeada. Demian por outro lado parecia no melhor dos mundos, conversando animadamente com Cornélio Fudge:
- Sim, eu nunca voei, sabe, meus pais nunca tiveram dinheiro pra me comprar uma vassoura, mas é o que eu mais quero fazer... e você, Tom?
- Eu... hã... não sei, nunca voei mesmo...
E todos os meninos e meninas pareciam excitados e ansiosos por voar, menos ele. Quando a professora, Madame Hansel, uma mulher estranhamente gorda que ele simplesmente não conseguia imaginar voando numa vassoura apareceu, teve uma vontade de pedir dispensa imediatamente, mas sabia que não podia. Só percebeu quando estavam perfilados às vassouras o quanto tremia. Não queria voar, não queria tirar seus pés do chão, onde eles estavam tão bem. A aula foi prosseguindo, até que chegou o momento em que todos deveriam dar seu primeiro vôo.
Tom jamais diria que estava com medo. Nem em mil anos. Se ele tinha medo, teria que superá-lo. Se Demian, que era um bocó, já fazia voltas no ar, ele podia perfeitamente voar, respirando forte, deu um impulso com o pé e tirou a vassoura do chão. Subiu um pouco, e sentia suas mãos tremendo juntas segurando a vassoura, e com tremenda dificuldade, voou pelo tempo estritamente necessário, trincando os dentes quando os pés bateram de volta no chão. Para sempre ele sabia que odiaria aquilo, como odiava lugares altos. Ainda bem que as aulas de vôo eram obrigatórias só durante o primeiro ano. A professora obesa aproximou-se:
- Muito bem, Tom... para um novato você foi muito bem. – e começou a tecer críticas sobre seu vôo que ele ouviu atento e prestando atenção. Era algo que seria obrigado a fazer,e faria, mas nunca ia gostar. Era melhor ser realmente bom em todo o resto, porque sabia que em vôo seria menos que medíocre. Mas isso não lhe dava inveja de Demian, que àquela hora planava alegre disputando corrida com o menino da Grifnória, acreditava que voar era para tolos, e ele não era um tolo. 
Tom logo começou a se destacar nas outras matérias, porque além de inteligente, estudava com afinco. Uma tarde, surpreendeu-se pensando em Mary. Fora uma carta que ele mandara logo depois da visita dela avisando que estudaria fora, cuja resposta ele recebera na semana em que os Snapes haviam chegado, ele não recebera notícia nenhuma da amiga de sua mãe. Então, falou com Demian e pegou a coruja que dividiam, para que entregasse uma carta a Mary.
Disse na carta que estava gostando da nova escola, mas omitiu o que estudava. Um dia ele pretendia contar, mas não enquanto fosse apenas um estudante. Ele não tinha consideração por pessoa alguma no mundo como tinha por Mary e por Ester. Agora que ele sentia-se ligeiramente superior ao restante da humanidade por ser bruxo, elas eram as únicas trouxas das quais ele se lembrava com algum carinho e respeito. Mary, e grandes olhos azul-água, sempre parecendo cansada por cuidar tanto dos filhos, e Ester, loura e luminosa, que sempre o vencia nas corridas. 
Ficou observando a coruja sumir no céu quando mandou a carta, imaginando se Mary estranharia a forma de receber a carta, então, como sempre acontecia com ele, voltou a pensar no que era realmente importante: seus estudos. 
O tempo foi passando, e á medida que o semestre avançava, ficava claro para ele que Demian sempre seria sua sombra. Era fácil até demais conseguir que Demian concordasse com ele: Demian pensava que Tom era a pessoa mais inteligente do mundo e tudo que ele dizia, era prontamente acatado. Ele gostava disso, nunca tinha tido um amigo que lhe desse tanta atenção. 
Não havia também um único professor que não gostasse dele. Era sempre o primeiro a responder as perguntas, e da mesma forma, o mais interessado nas aulas. Muitas vezes cutucava com o cotovelo Demian, que sentado ao seu lado olhava para ontem ou tentava puxar outro assunto. Talvez por isso, também tivesse se aproximado de Cornélio Fudge. Eram alunos medianos, companheiros de quarto e Fudge dava atenção a Demian quando Tom estava ocupado demais. 
Uma manhã, eles estavam tomando café quando a coruja de ambos finalmente retornou. Era a carta de Mary.
“Tom.
Não posso escrever muito, pois estou doente. Eu imaginei que fosse apenas uma gripe por causa do cansaço e das dores, mas parece que é algo um pouco mais sério, mas não se preocupe comigo. 
Que bom que você está gostando da nova escola... Ester também deve mudar de escola ano que vem, conseguimos para ela um internato de moças, um pouco longe daqui de Little Hangleton, mas onde acho que ela irá se adaptar bem. 
No mais, filho, levo a vida desinteressante de sempre, com o incômodo adicional de estar de cama. Mas a próxima carta tua vai me encontrar de pé, você vai ver...
Afetuosamente, 
Mary Smith-Marshall

De alguma forma, Tom sabia que aquilo não era bom. Desde que se entendia por gente, Mary jamais estivera doente, e ainda mais a ponto de cair de cama. Ele nunca a visitara em casa, mas mesmo seus olhos de menino sabiam reconhecer nas mãos ásperas e descascadas e na pele sem vida dela, a marca das mulheres que se matam de sol a sol pela família. Levantou-se da mesa do café distraído, e foi andando pelo corredor. Demian não atrevia-se a perguntar nada, sabia já distinguir quando o amigo não queria que lhe fizessem perguntas.
Quando quase chegavam à sala da aula de poções, uma briga de meninas fez com que Tom voltasse à realidade. Murta Blaine chorava enquanto Olívia Hornby a humilhava:
- Murta, você realmente não merece estar aqui... eu nunca vi ninguém mais pateta.
- Pare com isso, Olívia – disse Murta com os olhos rasos de lágrimas.
- Além de feia e gorda, você é estúpida, devia saber que eu ia esquecer as sanguinárias no quarto, vá lá buscá-las para mim, quem sabe assim eu possa te ajudar com o dever de transformação... mas acho difícil realmente você conseguir transformar um percevejo numa tachinha, que dirá um alfinete de cabeça em um palito de dentes...
Aquela menina, Olívia, conseguia ser odiada por todos. Ela era rica e esnobe. Falava com todos como se estivesse um degrau acima, mas a Murta era ainda sua vítima favorita. Não que Tom fosse realmente com a cara de Murta, mas a outra o irritava tanto que ele não resistiu:
- Se você se olhasse no espelho, Olívia, jamais chamaria ninguém de feio. 
- Eu falei com você, paspalho?
- Ninguém aqui é tão insuportável quanto você, garota.
- Acha que um insulto vindo de um trouxa que usa livros gastos vai me atingir, Riddle? Todos sabem que você é um bastardinho, Riddle não é nome de nenhuma família tradicional de bruxos. Você tem sangue trouxa, não, paspalho?
- Tom, Não! – Demian gritou no instante que Tom pegou a varinha para jogar um feitiço trava-língua em Olívia, o que não aconteceu porque na mesma hora a professora de poções, Madame Viper, apareceu e chamou a atenção de Olívia. 
- Detenção mocinha... eu ouvi tudo. Não se trata um colega dessa maneira. Tom, meu filho... essa varinha em punho não significa que você ia fazer algo contra Olívia, significa? – Tom teve vontade de dizer que não tinha sangue de barata, mas olhando a expressão no rosto de Olívia, disse:
- Foi só reflexo, Madame. 
- Muito bem... todos para dentro, menos a senhorita , que vai para a sala do diretor, ter uma conversinha com ele sobre respeito aos colegas. 
A professora se retirou levando a enfurecida Olívia para a sala do diretor Dippet, e os colegas todos sorriram para Tom, principalmente a Murta. 
- S-sabe – ela disse tímida – nunca achei que alguém pudesse enfrentá-la por minha causa.
- Não fiz por sua causa – disse Tom – fiz porque ela me irrita. – na verdade, as palavras de Olívia ainda lhe ressoavam na cabeça. Riddle não era um nome bruxo, e sempre saberiam disso. Ele sentou-se sem ver o olhar admirado de Murta, ou a cara satisfeita de Stella Chambers, uma menina de cabelo oleoso que era constantemente humilhada por Olívia. Ele fez tudo na aula automaticamente, imaginando se um dia ele poderia trocar aquele nome idiota para algum que fosse realmente digno do último Slytherin vivo... ah, se Olívia soubesse disso. 

Aquela noite ele custou a dormir. Tinha na mente gravada a impressão que seria sempre um filho de trouxa se levasse aquele nome estúpido, e pela primeira vez, odiou a memória de sua mãe por ter dado a ele o mesmo nome do maldito que acabara com a vida dela e agora, mesmo longe, atrapalhava a vida dele. Riddle não era um nome bruxo. Mas ele era um bruxo, e um dia ele seria o maior deles, ele sabia, era o que ele queria. Sua mente não tinha resposta para o nome que usaria ainda, mas ele sentia-se como se o próprio nome lhe assentasse como uma roupa muito suja ao corpo. Era inadequado, era ruim, e em breve ele tomaria uma providência quanto a isso.
Ele continuou a mandar corujas para Mary, e recebia respostas cada vez mais curtas e preocupantes. Depois da festa de Halloween, que sem dúvida fora a melhor que já vira, chegou uma carta que não havia sido sequer escrita por Mary e sim por Ester.
“Tom, 
Mamãe piorou. O médico disse que é tuberculose e agora quem cuida dela sou eu. Estou sempre lavando-lhe os lençóis, porque às vezes ela tosse sangue. Eu rezo muito e choro demais... ainda bem que tenho tuas cartas para me consolar, divirto-me cuidando das corujas enquanto eles esperam a resposta. 
Reze por mamãe, Tom, porque eu tenho muito medo.
Ester” 

O que sem dúvida fazia tudo pior era a letra ainda infantil e redonda de Ester, ele imaginava a menina, que era tão menor que ele apesar da diferença de apenas um ano, cuidando sozinha de Mary, já que o marido e os outros filhos deviam ser imprestáveis. Ele nunca tivera família, e a pouca que tinha agora se desfazia em pó. Ele esperava sinceramente que Mary sobrevivesse. Então lembrou-se de uma coisa... era um bruxo, os bruxos eram mais inteligentes que os trouxas, deviam saber um jeito de curar a Tuberculose. Correu até a ala hospitalar e foi conversar com Madame Kuskin, a enfermeira responsável. 
Falou a ela quanto aquela mulher trouxa era importante para ele, e quanto ele queria que ela ficasse boa. Madame Kuskin o olhava com pena. Quando acabou, ela balançava a cabeça tristemente e ele soube que ela não devia ter boas notícias sobre aquilo. 
- Tom, meu filho... é raro bruxos terem tuberculose, porque nós sabemos uma série de feitiços e poções que livram o ambiente do micróbio da doença. Quando não se trata da forma fulminante, aquela que muitos chamam Galopante, que mata em pouco mais de um mês, até sabemos a forma de curar. Mas a poção deve ser administrada antes que o doente apresente a hemoptse.
- Hemoptse?
- Sim... tosse com hemorragia pulmonar. Depois desse estágio, nem bruxos e muito menos trouxas, sabem a cura, meu filho. Prepare-se para o pior, criança.

Saiu da ala hospitalar com a raiva queimando-o por dentro. Ele não podia fazer absolutamente nada por Mary, nada. Procurou ainda nas horas vagas em livros por uma resposta diferente, mas todos repetiam o discurso de Madame Kuskin. Mary morreria. Mary estava condenada por uma doença de trouxas. Ele pensava na profunda injustiça daquilo... porque Mary não nascera bruxa e pudera ser salva pela poção? A sua fuga era estudar mais e mais... ele seria o melhor dos bruxos, ele seria grande e poderoso e venceria até a morte. 
Pouco depois do Ano Novo, a coruja que ele mandava chegou, com uma carta curta, na letra redonda e caprichada de Ester. Uma única frase, tinha a carta:
Deus a levou, Tom. 
Tom correu até o alto da torre sul. Ele tinha lágrimas nos olhos, e não conseguia ter nada dentro de si que não fosse raiva. Naquele instante pouco importava se ele tinha medo de altura... ele não iria olhar para baixo, queria apenas gritar num lugar onde ninguém pudesse ouvir, não queria parecer fraco, não iria dar a ninguém o privilégio de ver suas lágrimas. Chegou lá ofegante, e sentou-se no chão contra uma mureta, respirando profundamente, as lágrimas descendo pelo rosto, quentes. Olhou para o céu nublado e pensou que odiava a sua vida. Odiava ser órfão. Odiava ter perdido a única pessoa que gostara dele.
Fez a si mesmo uma promessa que não mais esqueceria: não sofreria assim de novo, por nada. Ninguém mais o veria chorar, porque agora ele estava sozinho. Gritou o nome de Mary, e só o eco respondeu. Nunca tivera uma mãe, mas tivera Mary. Lembrava-se de deitar a cabeça em seu colo, lembrava-se das recomendações dela. Agora ele não veria jamais o seu sorriso. Nunca mais. Nesse instante é que ele percebeu que seus dedos estavam duros: ele estava mal agasalhado num dos lugares mais frios da escola. Não adiantaria se ele mesmo pegasse uma gripe. A razão foi voltando aos poucos, e ele desceu, enxugando as lágrimas. 
Resolveu que escreveria para Ester então. Ela seria alguém para conversar, ela também tinha perdido Mary. Ela seria alguém bom para dividir o que sentia, mesmo sendo trouxa. E foi isso que ele fez, dali em diante.
A primavera trouxe o fim do campeonato de quadribol, com a conquista da taça pela Sonserina. Mesmo não gostando muito, ele assistia, ao lado de Demian que dava pulos de satisfação a cada jogada. No final, a única coisa que ele realmente apreciou: ver todo o resto da escola furioso com a vitória da sua casa. Sim, eles eram realmente malditos, pensou. Slytherin era como ele, afinal, não? Alguém indesejável, mas melhor que os outros.
Poucos dias depois, chegou a notícia que o famigerado bruxo Grindewald fizera algumas vítimas na Polônia, supostamente radicado na Alemanha, ele surpreendera dois aurores que estavam em seu encalço e os exterminara sem piedade, mandando os corpos e blocos de gelo encantado para a família. Contavam que a mãe de um dos aurores morrera de infarto ao saber da notícia. A escola comentava e Demian disse a ele:
- Minha mãe diz que Grindewald teria o apoio dela se quisesse separar os bruxos dos trouxas, mas parece que ele quer apenas mandar em todos os bruxos do mundo.
- Coisa idiota – disse Tom, olhando a fotografia de Grindewald no Profeta Diário – se ele realmente fosse esperto, ia querer subjulgar também os trouxas. 
- É, mas olha o que ele faz... é assustador!
- Eu sinceramente não acho... ele só pegou os sujeitos desprevenidos, só isso, vai acabar sendo pego.
- Dizem que só Alvo Dumbledore conseguiria pegá-lo.
- Nosso professor de transformação?
- É, ele é um cavaleiro da ordem do fênix. Isso significa que ele tem conhecimento para derrotar alguém como Grindewald
- E porque ainda não derrotou?
- Na verdade ele o venceu, mas não pôde conduzí-lo até Azkaban pessoalmente, encarregando outros de o fazerem com instruções explícitas, e Grindewald conseguiu enganar o auror que o levava, fugindo. Foi um escândalo na época.
- Se ele realmente fosse bom, não perderia para um reles professor de transformação. A mim ele parece patético – disse Tom com desprezo, jogando o jornal para o lado. 
- Você acha que pode derrotar Grindewald, Tom – disse Demian em ligeiro tom de deboche.
- Agora não, mas um dia eu vou ser muito maior que ele. Ele é um bruxo idiota. Você tem medo dele?
- Tenho. Claro que tenho.
- Tem medo dele mesmo ele estando longe?
- Estando longe não... o que ele pode me fazer estando na Alemanha?
- Pois bem, Demian... se ele fosse realmente poderoso você teria medo dele onde quer que ele estivesse. Porque você não saberia se ele poderia ou não te fazer mal estando na Alemanha. Se ele fosse realmente poderoso, você sentiria tanto medo, que nem pronunciaria seu nome.
- Que coisa ridícula, ninguém tem medo de um nome...
- Pois acredite, Demian, se ele fosse realmente poderoso, ninguém diria seu nome. Eles teriam medo.

O semestre chegou ao fim rapidamente, e Tom foi cumprimentado pessoalmente pelo diretor por ter sido o aluno que tirara as notas mais altas do primeiro ano. Não fosse a média apenas suficiente em Vôo ele seria o primeiro colocado de toda a escola. Ele sorriu, mas sentiu-se ao mesmo tempo insatisfeito, porque queria ser o melhor de todos. No ano seguinte não precisaria fazer aulas de vôo e tudo seria diferente. Completamente diferente. O menino que chegou naquelas férias ao orfanato não era mais o pequeno Tom. Era outro, um bruxo. Um bruxo que já pensava num novo nome para si. Um nome que um dia todos temessem.

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