Sustos



SUSTOS 


 


Nij e Doj conduziram os três companheiros para uma cozinha grande e iluminada com o chão de pedras. Panelas e potes lustrosos pendiam de ganchos acima do grande fogão à lenha, e no centro do aposento havia uma enorme mesa de madeira. O lugar lembrava a Harry a cozinha da ferraria, e ele ficaria feliz se pudesse permanecer ali, especialmente por estar molhado e enlameado, como Rony e Jasmine.


Mas Nij e Doj pareciam chocados com a idéia de ver seus convidados sentarem-se na cozinha e apressaram-se a fazê-los entrar numa aconchegante sala ao lado. Ali, o fogo ardia na lareira e havia poltronas aparentemente confortáveis e um tapete no chão.


Com muitos acenos e sorrisos, Nij deu a Jasmine, Harry e Rony mantas para se envolverem e os fez sentar perto do fogo. Depois, ela e Doj saíram depressa outra vez, fazendo sinais de que retornariam.


Logo, Harry ouviu ruídos e murmúrios na cozinha e imaginou que os dois velhos estivessem aquecendo água para o banho e, talvez, preparando uma refeição.


— Revrefarap augá ahnop — Nij dizia, apressada. E Doj ria enquanto trabalhava. — Everb me acserf enrac! — ele cantarolou com voz monótona.


Harry sentiu o coração se aquecer. Aquelas pessoas dariam tudo o que tivessem para ajudar estranhos em dificuldades.


— Ele são muito bondosos — comentou, preguiçoso. Pela primeira vez em dias, sentia-se relaxado. O fogo crepitava alegremente e a manta que lhe envolvia os ombros era reconfortante. Além disso, o aposento o fazia sentir-se em casa. Havia uma jarra com margaridas amarelas no consolo da lareira, exatamente iguais às que cresciam naturalmente perto do portão da ferraria. Acima da lareira pendia um bordado emoldurado, meio encoberto pelas margaridas, certamente feito pelas mãos de Nij.


 


LAM O AVIV


 


— Eles são muito bons — Rony murmurou. — É para pessoas como essas que queremos salvar Deltora.


Jasmine fungou. Harry olhou para ela e perguntou-se por que o seu olhar estaria tão agitado. Então, ele se deu conta de que ela nunca estivera em uma casa como aquela antes, nunca conhecera pessoas comuns como Nij e Doj. Ela passara toda a vida nas Florestas, entre as árvores, sob o céu. Não era de surpreender que não se sentisse à vontade ali, em vez de tranqüila como ele e Rony.


Filli estava agachado no ombro de Jasmine e cobria os olhos com as patas. Ele também não estava feliz, embora Nij e Doj o tivessem acolhido com alegria, sorrindo e tentando afagá-lo.


— Harry — Jasmine sussurrou quando percebeu que ele a fitava. — O Cinturão está em segurança? O topázio ainda está no lugar?


Harry percebeu, assustado, que tinha esquecido totalmente o Cinturão até aquele momento. Ele o apalpou e ficou aliviado ao constatar que ainda estava bem preso em sua cintura. Ergueu a camisa suja para observá-lo. Os elos de aço estavam cheios de lama e limo. O topázio estava coberto com uma grossa camada de sujeira e não se podia ver suas luzes douradas. Harry começou a limpar o excesso de sujeira escura que envolvia a pedra. Não parecia certo deixá-la daquela maneira.


Seu trabalho foi interrompido bruscamente quando Doj entrou correndo da cozinha carregando uma bandeja. Harry amaldiçoou a própria imprudência. A manta que o envolvia encobria o Cinturão, mas isso era apenas uma questão de sorte. Nij e Doj eram gentis e bondosos, porém era crucial que a busca pelo Cinturão de Deltora fosse revelada ao menor número de pessoas possível. Ele deveria ter tomado mais cuidado.


Harry permaneceu sentado, quieto, com a cabeça curvada e as mãos fechadas sobre o topázio, enquanto Doj arrumou a bandeja carregada com bebidas e um prato de bolinhos.


— Tome, seu inútil! — disse Doj. — Aproveite a sua última refeição na face da Terra.


Um calafrio percorreu o corpo de Harry. Estaria ouvindo bem? Estaria sonhando? Arriscou um olhar para Rony e viu que ele sorria, satisfeito. Jasmine também parecia impassível.


Harry sentiu um toque no braço e olhou para cima. Doj sorria para ele e lhe estendia uma xícara do que parecia ser suco de ameixas silvestres. Contudo, com um arrepio de horror, percebeu que o rosto do velho homem estava terrivelmente mudado. A pele estava manchada e coberta de caroços e feridas. Os olhos ficaram amarelos, achatados e frios, como olhos de serpente, e o nariz não passava de dois orifícios negros e largos. A boca que estampava o sorriso forçado era voraz e cruel, com pontas de metal tortas no lugar dos dentes e uma gorda língua azul que escapava e lambia os lábios inchados.


Harry soltou um grito agudo e retraiu-se.


— Harry o que aconteceu? — Jasmine indagou, alarmada.


— No que você está pensando? — resmungou Rony ao mesmo tempo, olhando de maneira constrangida para o terrível monstro que ainda estendia a xícara.


O sangue fazia a cabeça de Harry latejar. Ele mal conseguia respirar, mas a sua mente funcionava acelerada. Estava claro que seus amigos não viam o mesmo que ele. Para eles, Doj ainda era o velho gentil que Harry também imaginara que fosse.


Mas aquela visão tinha sido uma mentira, uma ilusão criada por alguma mágica maligna. Agora Harry sabia disso. E também sabia que o ser hediondo não deveria descobrir que, pelo menos para ele, o feitiço fora quebrado.


Ele enfiou o topázio por trás da camisa e obrigou-se a sorrir.


— Eu estava cochilando — desculpou-se. — Eu... acordei assustado. Desculpe. — Ele imitou o gesto de dormir e acordar de repente e fingiu rir de si mesmo.


Doj riu também. E foi horrível ver os dentes expostos e brilhantes e a boca gotejante escancarada. O monstro entregou a xícara a Harry e voltou à cozinha.


— Erpmes arap rimrod oãv sêcov ogol — ele disse na porta. Mais uma vez, lambeu os lábios. E outra vez Harry escutou as palavras como realmente eram: Logo vocês vão dormir para sempre.


As palavras não pertenciam a uma língua estrangeira, mas eram, sim, palavras comuns ditas de trás para a frente! A cabeça de Harry começou a girar, frases e comentários voltaram-lhe à lembrança, e ele percebeu que todas as sentenças proferidas por Nij e Doj haviam sido invertidas.


Atordoado pelo horror, ele observou Doj sair do aposento. Ouviu-o começar a tagarelar com Nij na cozinha, erguendo a voz e cantarolando a mesma ladainha monótona: Everb me acserf enrac, everb me acserf enrac!


— Carne fresca em breve, carne fresca em breve!


Todo o corpo de Harry estremeceu como se tivesse sido atingido por um vento gelado. Ele virou-se bruscamente para Jasmine e Rony e, ao fazê-lo, viu o aposento como realmente era.


Encontravam-se numa cela sombria e escura. Pelas paredes de pedra escorria uma água gordurosa. O tapete macio era feito de peles de pequenos animais grosseiramente costuradas umas às outras. E o garoto finalmente conseguiu entender o que o bordado sobre o consolo da lareira dizia.


 


VIVA O MAL


 


— Harry, o que está acontecendo?


Ele esforçou-se para desviar a atenção das palavras terríveis e olhou para Jasmine. Ela o fitava, intrigada, a xícara a meio caminho da boca.


— Não... não beba isso! — ele conseguiu dizer.


— Estou com sede — ela protestou, não gostando do que ouvia, e ergueu a xícara.


Desesperado, Harry arrancou-a das mãos dela e a xícara caiu no chão. Jasmine ergueu-se de um salto, com um grito de raiva.


— Fique quieta! — ele pediu. — Você não compreende. Estamos em perigo aqui. A bebida... não sabemos o que ela contém.


— Você está louco, Harry? — Rony bocejou. — Está uma delícia. — Ele estava recostado nas peles malcheirosas de animais, os olhos parcialmente fechados.


Harry sacudiu-lhe o braço freneticamente, percebendo, desalentado, que o grande homem já tomara metade da bebida.


— Rony, levante-se! — ele implorou. — Eles estão tentando nos drogar. Você já está sentindo o efeito das drogas.


— Bobagem — Rony resmungou com a fala arrastada. — Nunca vi pessoas tão gentis como Nij e Doj. O que você acha? Eles são casados ou irmãos?


Nij, Doj... De repente, os nomes vieram à mente de Harry e ele os viu, também, como realmente eram.


— São irmão e irmã — ele disse, aborrecido. — Seus nomes não são Nij e Doj, mas sim Jin e Jod. Eles são filhos da feiticeira Belatriz. Eles foram citados nos versos que o guarda da ponte repetiu para mim. Eles são monstros! Quando estivermos dormindo, eles nos matarão e nos comerão!


— Que piada sem graça, Harry — Jasmine se zangou.


Rony apenas conseguiu piscar, preocupado. Ele olhou ao redor do aposento, e Harry soube que tudo o que o amigo via era um lar aconchegante. Os olhos de Rony demonstravam que o medo havia abalado sua capacidade de raciocínio.


— Everb me acserf enrac, everb me acserf enrac! — cantarolou o monstro Jod na cozinha. E sua irmã o acompanhou, a voz erguendo-se acima do som do amolador de facas. — Osoiciled odizoc! Osoiciled odizoc!


Rony sorriu, sonolento.


— Vê como eles cantam enquanto trabalham? — ele disse, inclinando-se para a frente e dando tapinhas no braço de Harry. — Como você pode achar que eles não são o que parecem? Agora, descanse. Logo você vai se sentir melhor.


Harry sacudiu a cabeça, desesperado. O que iria fazer?


 


 


Continua...


 N/A: Mais um capitulo postado

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