Capítulo 3



Fez-se um longo silêncio entre Marisa e Gabriel.O clima estava tenso,como um elástico esticado pronto a se arrebentar a qualquer momento.Marisa não sabia o que dizer.Olhou suas mãos, estavam geladas e trêmulas.
- Não tinha escolha.
- Por quê? - Havia súplica em sua voz rouca.Ele também olhava para as mãos elegantes de Marisa, percebendo o tremor que as percorria. - Por que nem mesmo me contou?
- Tentei contar no meu bilhete!
- Aquele bilhete! Não dizia nada, absolutamente nada.Como é que você pôde sair da minha vida sem nem me dar uma explicação? Você me deixou apenas um punhado de palavras sem o menor sentido!
- Faziam sentido para mim - Marisa respondeu, agarrando-se ao lençol.
Ele suspirou profundamente.
- Diga-me então por que você nem mesmo foi capaz de conversar comigo e me explicar o que havia de errado?
Como poderia ter falado com ele?Eles nunca tinham conversado, não havia a menor comunicação entre os dois.Apesar de falarem a mesma língua, Marisa tinha a impressão de que as palavras tinham significado diferente para cada um deles.Era como se ambos se aproximassem do significado das coisas, mas o sentido real escapasse entre as silabas, como água escorrendo entre os dedos.
Como ela ficasse em silêncio, Gabriel insistiu:
- Havia mais alguém?
- É claro que não!
- Não? Então quem ajudou você a fugir?
- Ninguém.Abri o portão e saí.
Gabriel se mexia, inquieto, com evidente emoção.
- Você não levou nada, deixou tudo o que eu tinha lhe dado.Quando cheguei você havia saído...Deixado tudo, roupas jóias, tudo.Como acha que me senti?
- Nada era meu, por isso não levei - Marisa sussurrou.Ele tinha lhe dado inúmeros presentes, mas ela não se sentia dona de nada.Eles caíam ao redor dela como uma chuva de ouro, deixando-a incrédula e sufocada.
Gabriel levantou-se e foi até um quadro pendurado na parede.Afastou-o Atrás dele havia um pequeno cofre.Abriu-o,retirando de dentro dele uma enorme caixa preta.Levou-a para Marisa, abrindo-a primeiro.
Ela olhou indiferente para as jóias bem-arranjadas nas repartições da caixa.


- Eram suas - falou por entre os dentes - Eu tinha dado a você.A maior parte delas foi feita especialmente para você.
Nunca tinha sentido que eram suas.Não tinham nada a ver com ela.Eram enfeites para ela usar quando acompanhasse Gabriel em reuniões sociais, onde ele a apresentaria como sua esposa.Eram as marcas de status.Era a demonstração pública de que ela era a esposa de Gabriel Radley,um brinquedo que ele havia adquirido,uma conquista a ser somada as outras tantas que já tinha feito.Desde seu casamento, Marisa sentia tudo aquilo como um sonho, ou melhor, pesadelo, no qual havia caído e não conseguia se libertar.
- Fale alguma coisa! - Gabriel ordenava, despejando o conteúdo da caixa de jóias que se espalharam pela cama.Marisa guardou-as lentamente e fechou a caixa.
- Você não acha que me devia uma explicação antes de fugir?
- Não havia nada a dizer.
- Nada? - Falava com aspereza, curvando-se sobre ela, mal contendo a raiva.- Você era minha esposa.
Marisa olhou para ele,os olhos faiscantes.
- Não, o problema era justamente esse.Eu não era.
Ele fitou-a com o rosto em chamas.
- O que você quer dizer com isso?
- Nunca fui sua esposa.
- Não seja ridícula! Do que você está falando?
- Fomos casados legalmente, mas nunca fui sua esposa.
- Bastante sutil, mas o que significa isso?
- Por que se casou comigo? - Marisa perguntou com voz suave, desviando o olhar daquele rosto zangado.
Houve silêncio novamente.
- Você sabe por quê - ele falou com voz baixa e trêmula.
- Não sei, não.
-Demonstrei bastante a você o porquê - Sua voz soava profunda, arrastada, cheia de emoção.Deliberadamente ele inclinou-se e tocou seu ombro nu com os lábios.- Por isso - ele murmurou, os lábios quentes sobre sua pele.
- Não faça isso! - ela gemeu, estremecendo.
Ele endireitou-se respirando com dificuldade.Observava a tensão e rigidez existentes naquele corpo esbelto envolto pela camisola branca.Arqueou as sobrancelhas e desviou o olhar.
- Se não suporta que eu a toque, por que se casou comigo? - Ficou de costas para ela ao fazer a pergunta e Marisa pôde notar sua elegância naquele terno escuro.
Ela não tinha nenhuma intenção de responder à pergunta.Gabriel interpretaria mal a resposta.
- Cometi um erro - ela sussurrou.
- Um erro! - Ele virou-se encolerizado, os olhos escuros de raiva,as pupilas dilatadas.
- Sim, nosso casamento foi um erro.
- Pro inferno!- Com passos largos ele saiu, batendo a porta com força.
Marisa fechou os olhos.Seu corpo era uma pedra de gelo e tremia convulsivamente.O clima de tensão permanecia no silêncio do quarto.Sentia seu corpo tragado por ele.
Ouviu uma leve batida na porta.Procurou recompor-se.
- Entre.
Não era fácil para ela disfarçar seus sentimentos.Seu autocontrole estava desgovernado diante das circunstâncias.
O mordomo entrou delicadamente.
- Posso levar a bandeja, madame?
-Pode sim, obrigada.
Ele pegou a xícara de Gabriel, colocou-a na bandeja e inclinou-se para levantá-la.Antes de sair do quarto, falou hesitante:
- Gostaria de lhe dizer que todos nós sentimos muito o que aconteceu ao menino,madame.
- - Obrigada. - Tentou sorrir.
Dudley tinha sido sempre muito amável, de uma maneira um tanto antiquada e seca,mas nunca havia feito nenhuma tentativa para que ela se sentisse bem naquela casa:por outro lado sempre a tratou com a maior cortesia,apesar de manter uma distância.
- Estou certo de que logo vão encontrá-lo.
- Obrigada.- O que mais ela poderia dizer? Ela não acreditava naquelas palavras de conforto e sabia que Dudley também não acreditava nelas.James era um estranho para eles.Eles não poderiam entender como ela se sentia.
- Há algo que eu possa fazer pela senhora?
-Não, obrigada.
Ele saiu, fechando a porta delicadamente atrás de si.Marisa olhou ao redor com aquela estranha e velha sensação de abandono e descrença, depois apagou a luz do abajur e ficou imóvel na escuridão do quarto.
Marisa tinha começado a trabalhar aos dezessete anos.Através da escola achara um trabalho em Londres no enorme bloco de escritórios da Corporação Radley.Era apenas uma entre as centenas de moças que trabalhavam lá, correndo para entrar as nove e correndo para sair, aliviada, as cinco e meia.Marisa trabalhava no departamento de datilografia sob a supervisão de uma mulher elegante e jovem, sempre vestida de preto.A chefe não era casada, mas as moças a chamavam de "Viúva Negra" e não gostavam muito dela porque era sarcástica e linguaruda além de dirigir a seção de forma totalmente desumana.
Marisa não sentia nenhuma dificuldade no trabalho.Era calma e submissa, fazendo sempre o que lhe diziam.Um modelo de funcionária.Depois de seis meses estava apta para ser transferida para o andar de cima, onde iria trabalhar junto aos executivos da corporação.
O trabalho era basicamente o mesmo, mas era mais variado e havia menos gente ao seu redor.Também ganharia mais.Saiu de casa e alugou um quarto onde teria mais liberdade.
Não era o tipo de moça que atraia a atenção dos homens.Elegante, reservada, introvertida, fugia quando percebia qualquer interesse dos homens que trabalhavam com ela na corporação.
- Queria se estabelecer em Londres.Era fácil se sentir perdida numa grande cidade e a simples natureza do mundo em que vivia bastava para ameaçar Marisa.
A infância a tinha marcado com aquela sensação de instabilidade fazendo-a sentir necessidade de segurança.De forma inconsciente, acreditava que se amasse algo, ou alguém, ele desaparecia, seria arrancado dela.Tudo na sua vida tinha desaparecido.As pessoas, os lugares, as coisas tinham desaparecido.Nunca teve nem mesmo uma boneca que considerasse sua.Quando mudavam, tinha a impressão de que suas coisas estavam perdidas.Nem sempre seus pais se lembravam de levá-las com eles.Olhavam-na com espanto como se a existência dela fosse uma charada difícil de se decifrada.
Eles se amavam de uma tal maneira que a terceira pessoa era considerada como intrusa.Não eram pessoas que gostassem de falar muito, nem entre eles, mas pareciam se entender mesmo sem palavras.Marisa teve a impressão de estar sobrando naquela casa durante toda a sua vida, até que finalmente resolveu deixá-la.Seus pais não demonstraram nenhuma surpresa ou preocupação.Ela até achou que tinham ficado aliviados.
Seu quarto alugado adquira também aquele ar transitório.Era mal mobiliado,com coisas que tinham cara de segunda mão:feias e velhas e provavelmente haviam pertencido a uma serie de pessoas, a julgar pelo estado.Alem de morar lá,Marisa ainda teve de compartilhar aquelas coisas feias com outra pessoa.
Em seu tempo de folga começara a explorar Londres.Sempre havia algo a fazer, mas seu caráter introvertido a impedia de ter contato com as pessoas ou mesmo alimentar um sentimento de companheirismo ou solidariedade.
Com dezenove anos passou a fazer parte do quadro de secretárias do enorme escritório de Gabriel Radley.Nunca o tinha visto de perto.Ele costumava percorrer o escritório sem parar para olhar nenhuma das secretárias.Elas também deveriam se comportar como máquinas.Falavam muito sobre ele, naturalmente, e Marisa conhecia muitos fatos de sua vida privada.
- Qualquer noticia sobre ele nos jornais era motivo de comentários e discussões.A maioria das moças se sentia orgulhosa por trabalhar diretamente sob as ordens dele, apesar de Gabriel nunca falar com nenhuma.Todas as ordens chegavam através de uma cadeia de comandos que terminavam numa mulher que dirigia o escritório das secretárias.
Gabriel era uma figura de projeção internacional.Cruzava o Atlântico tantas vezes que isso já era quase uma rotina em sua vida.Tinha seus aviões e um deles sempre estava pronto para decolar,quando ele quisesse,para qualquer parte do mundo.
Marisa nem pensava nele,a não ser para constatar o abismo entre os mundos que viviam.Ela nem mesmo podia imaginar como era ser Gabriel Radley,a pessoa mais importante daquela imensa corporação,indo e vindo em aviões como se fossem meros ônibus,sem nunca ter que pensar em dinheiro,pois isso era coisa que ele sempre teve em abundância.O dia-a-dia de Marisa era uma luta diária para alimentar-se,vestir-se,morar..Via Gabriel através de um vidro meio escuro e não acreditava que ele fosse de verdade.Era quase um mito para ela como um personagem de um filme ou de um romance.
Numa manhã de segunda-feira, estando atrasada para o trabalho corria para o escritório sob uma chuva torrencial.Enfiou-se numa das portas giratórias e deu de cara com Gabriel que saía do outro lado.Ele a segurou pelos ombros enquanto ela levantava para ele os olhos extasiados.
Gabriel fitou aqueles enormes olhos azuis durante um segundo, depois falou rapidamente:
-Olhe por onde anda se não quiser ter um acidente - Soltou-a e virou-se.
Marisa entrou no edifício, perturbada com aquele olhar intenso e profundo.No vestuário passou algum tempo examinando-se no espelho.Seus cabelos estavam úmidos, caindo sobre a testa.O rosto pálido, sombrio, e os olhos agitados,cheios de indagações.
O que a intrigava era sua própria reação.Gabriel Radley não significava nada para Marisa.Era apenas o homem que lhe pagava seu salário.
- Apesar disso, ainda sentia aquelas mãos em seus ombros e a pele queimando onde ele a tinha tocado.
Por vários dias ele não foi visto no escritório.
Uma das moças dizia que estava em Nova York,outra que ele tinha ido até Danielle.
Os romances de Gabriel faziam parte de sua mitologia.As moças o seguiam pelos jornais e revistas, olhando suas fotos com mulheres lindíssimas com uma ponta de inveja.
- Não consigo entender o que ele vê nelas.Essa não vai durar muito tempo - decidiam, demitindo ou admitindo namoradas.
A última mulher de sua supercomentada e noticiada vida era Danielle Garden,uma francesa,produzida em Hollywood.Uma atriz cujo nome era mais conhecido do que seus filmes.Esbelta,sofisticada,sempre fotografada em roupas longas ou em biquínis reduzidíssimos.Sua aparência era sempre muito mais focalizada do que sua arte,que era de pouca importância.
- Ele não é casado? - Marisa perguntou, um dia.Foi a primeira vez que ela demonstrou interesse por Gabriel, fazendo com que todas a olhassem entusiasmadas por aquela súbita mudança.
- Ele foi casado. - Karen inclinou-se sobre a escrivaninha enquanto contava.As outras se adiantaram.
- Deixe que eu conto.Quer dize que você não sabe? Mas é incrível!
- Deve ter sido horrível para ele - Outra dizia.
- O quê? - Marisa quis saber.
- A esposa e o filho foram mortos numa emboscada na América do Sul.Eles foram visitar a família da mulher.Ela era de lá,de família rica,uma espécie de barões de gado.
- Fábricas - alguém falou - Tinham fábricas.
- Não,era gado e eles embalavam a carne em fábricas próprias. - Karen falou impaciente - Bem, o carro em que estavam foi emboscado e toda a família foi morta.Gabriel não estava com eles.Pensavam que estava,mas ele tinha voltado para a Inglaterra naquele dia, se não estaria morto também.
Marisa se chocara com aquela historia.Não imaginava que a vida de Gabriel Radley tivesse sido tão violenta e trágica.
- Ele sempre lhe parecera tão inacessível, com seus carros e aviões,mulheres e poder! A história da esposa e do filho tinha despertado a compaixão de Marisa.Gabriel humanizava-se perante seus olhos.
Quando ele apareceu novamente no escritório, ela o observou com inexplicável familiaridade.Naturalmente,ele não a notou.Caminhava cercado por um grupo de homens,fazendo pequenos comentários enquanto passava.Todos sorriam como se a menor observação dele fosse algo interessantíssimo.
- Que nojo! - Karen murmurou,observando-os - Olha só como eles o seguem!
Ele também amedrontava Marisa.Era tão alto e poderoso...O terno clássico e caro salientava o corpo ao mesmo tempo esguio e musculoso e de uma elegância indiscutível.
Gabriel tinha mandado construir um centro de esportes no interior do prédio.Os empregados podiam jogar squash,nadar e praticar exercícios no ginásio superequipado.Algumas colegas da seção de Marisa costumavam freqüenta-lo,mas ela dificilmente ia junto.Não tinha facilidade em fazer amizade com as pessoas.Não conseguia se relacionar, em geral não tinha o que dizer,sua timidez era uma barreira a separá-la das outras pessoas.
Quinze dias depois do esbarrão daquela manhã chuvosa, ela resolveu ir até o ginásio para jogar squash .Karen havia organizado um torneio e mobilizou todo mundo para a competição.
- - Não sou muito boa em jogos - Marisa protestou, com o rosto corado.
- Nenhuma de nós, é, mas isso não impede que a gente se divirta - Karen respondeu, recusando as desculpas que Marisa lhe dava para não participar do torneio. - De qualquer maneira, preciso de você para fazer numero.Você sabe andar, pular, correr.Já é meio caminho andado.
Marisa nunca tinha argumentos suficientes para Karen, que mais uma vez vencera.Com uma alegria sem maldade, a moça derrotava Marisa todo o tempo.O simples sorriso alegre de Karen a intimidava.Ela era fanática por esportes e saia-se muito bem em todas as modalidades.Só que Karen não conseguia acreditar que o que ela gostava e sabia fazer com certa facilidade fosse difícil para os outros.
- Depois de se trocar no vestiário.Marisa enfiou-se num corredor que a levaria até a quadra de squash,onde deveria jogar dentro de dez minutos.No fim do corredor, havia uma porta.Quando Marisa se aproximou a porta se abriu e Gabriel Radley apareceu, parando e segurando a porta para que Marisa passasse.Ela abaixou os olhos,corando ligeiramente.Dirigiu-se para a quadra, seguida por ele.Não havia ninguém lá. Sua companheira ainda não chegara.Marisa começou então a se aquecer.Ela era ágil, mas não forte.Preferia o tênis ao squash.Esse tipo de esporte solicitava mais força do que agilidade.
Virando-se para apanhar a bola, a saia curta balançando, encontrou o olhar de Gabriel que a observava parado num vão da quadra.Seu coração deu um pulo e quando se levantou, depois de ter apanhado a bola, sentiu o rosto em chamas.
Gabriel retirou-se.Marisa continuou olhando para o lugar onde ele estivera, procurando entender a razão de ele ter ido até lá e também o porquê de ter olhado para ela daquela maneira.
Jogou muito mal e perdeu vários jogos.Karen sorriu de sua inaptidão.
- Bem pelo menos você tentou...ou não?
Marisa tomou um banho e vestiu-se.Na porta do prédio viu um carro saindo do estacionamento do edifício.Quando se aproximou do cruzamento a limusine parou diante dela.Surpresa, olhou para o homem que estava sentado no banco de trás.Ele tinha descido o vidro da janela.
- Entre – falou brevemente, abrindo a porta.
Marisa olhou ao redor, sem acreditar que ele se dirigia a ela.O sinal mudou e as pessoas começaram a buzinar.
- Entre – Gabriel repetiu, impaciente, e quando percebeu o olhar assustado de Marisa, acrescentou – Por favor.
- Marisa entrou no carro tão nervosa que bateu a cabeça na porta.Quando o carro partiu ela olhou para Gabriel, sem entender.O que será que ele queria com ela?
Não podia ser nada pessoal.Ela não era o tipo de mulher que Gabriel Radley costumava cortejar.Marisa sabia que não era bonita.Tinha plena consciência de sua timidez, de seu jeito simples, de sua inexperiência.Não conseguia entender o que estava acontecendo, mas supunha existir alguma razão muito especial para que Gabriel a convidasse a subir em seu carro.
Ele inclinou-se um pouco para poder observá-la melhor.
- Como você se chama?
- Marisa.
Não perguntou seu sobrenome.Limitou-se a repetir "Marisa” em voz baixa.Era a mesma voz que ela sempre ouvia à distância no escritório.O mesmo tom breve e de comando, só que agora num ritmo mais lânguido e arrastado.
- - Onde você mora? Vou levá-la até sua casa.Queria falar com você.
Ela hesitou, depois lhe deu o endereço que ele transmitiu ao motorista.
Gabriel olhou de novo para Marisa.
- Vi você no ginásio.Costuma freqüenta-lo? O que você acha dele? No início, quando sugeri a construção, muita gente se opôs.Um diretor achou a idéia simplesmente ridícula.O que você acha? Ele é popular entre o pessoal?
Marisa sorriu, aliviada.Tinha entendido a razão da carona.
- Não costumo ir muito lá, mas os outros o usam bastante.Acho que é bem popular.
- Acha que tem boa direção, falta algum esporte?
- Tenho a impressão de que não.Lá tem de tudo. - Marisa lembrou-se do equipamento caro e moderno que havia no centro de esportes.
Enquanto ela falava, ele a fitava atentamente, os olhos indo e voltando da sua boca a seus olhos, sem parar.
- Quantos anos você tem? - perguntou, abruptamente.
-Dezenove. - Notou que suas sobrancelhas se arquearam imediatamente.Sem saber por que, apressou-se a acrescentar. - Quase vinte.
- Quase vinte? Nessa idade isso é uma bruta diferença, não é mesmo? - Sorriu levemente, olhando-a de lado.
Marisa não entendia por que tinha se desculpado por sua idade, nem por que Gabriel desviara o olhar, dirigindo-se para fora do carro.
- Fui casado quando tinha vinte anos.- Ela surpreendeu-se com o comentário tão pessoal.Ele continuava a olhar para fora,os ombros curvados como se estivesse pronto a se defender ou atacar,lutando contra algum pensamento muito íntimo e incapaz de ser traduzido em palavras.
Marisa permaneceu em silêncio,não sabia o que dizer,pensando na esposa e no filho mortos em circunstâncias tão trágicas.Ele olhou-a,examinando seu rosto atentamente:
- Já deve saber do que estou falando...
Marisa encontrou o olhar dele.Mordeu os lábios,incapaz de encontrar uma maneira de expressar sua simpatia,devido à sua timidez não sabia o que dizer.Limitou-se a balançar a cabeça,tentando transmitir seus sentimentos com um sorriso tímido.
- Você não tem muito a dizer,não é mesmo? Mas... esses olhos falam um bocado. - Levou a mão até o rosto de Marisa e acariciou-a suavemente. - Nunca vi olhos assim antes.São inesquecíveis.
Marisa corou violentamente,perdendo sua palidez habitual.Ele observava aquela transformação,com olhos semicerrados.
- Você mora com sua família?
- Não, alugo um quarto numa pensão.
- Não é muito solitário para você? Onde mora sua família?
- Em Blackheath.
- Não é longe.Por que você não mora com eles? Dá para ir e vir diariamente.
- Prefiro morar sozinha. - Gabriel percebeu a amargura de seu sorriso.Olhou fundo em seus olhos como se quisesse confirmar a expressão dela.
- Você não se dá com sua família? Ela é muito grande?
- Não, só meus pais.
- Você é filha única? - Fez uma pausa. - É verdade,você parece ser filha única.
Aquela observação divertiu Marisa.
- E como é que é uma filha única?
- Auto-suficiente,esquiva,sempre na defensiva.Conheço isso muito bem porque também sou filho único.A solidão torna-se um hábito e não é fácil abandonar um hábito. - Lançou-lhe um olhar rápido. - Você é sozinha? Ou tem um namorado?
Sentiu-se corar novamente.Antes que pudesse responder o carro parou diante de sua casa.Gabriel olhou para a aparência gasta da fachada.
- É aqui?
- É sim. - Tentou abrir a porta do carro,murmurando palavras de agradecimento pela carona.Gabriel adiantou-se e colocou sua mão sobre a dela,o que fez todo o seu corpo agitar-se.Marisa olhou para ele,trêmula.
- Espere um instante.Você ainda não respondeu a minha pergunta. Voc6e tem namorado?
Ela balançou a cabeça sem falar,olhando para baixo.Gabriel soltou sua mão e abriu a porta.Já na calçada,ela ouviu a porta fechar-se e o carro partir acelerado.
Aturdida e confusa, olhou a limusine que se afastava.Era inacreditável.O que teria feito Gabriel Radley apanhá-la e levá-la até em casa,fazendo-lhe todas aquelas perguntas? Será que estava entediado ou sem programa?ou teria pensado num programa de fim de noite?Mas Marisa sabia que não era do tipo que despertava essas fantasias na cabeça dos homens.
Entrou em casa e foi para seu quarto.Olhou-se no espelho sobre a cômoda,tentando descobrir alguma razão para o súbito interesse de Gabriel por ela.
Esbelta,delicada,geralmente pálida,cabelos loiros e lisos emoldurando o rosto e enfatizando sua fragilidade física.O único trunfo eram os olhos:enormes,bem-formados,dominavam o rosto,mas não esperavam pelo que tinha acabado de acontecer.A única decisão que lhe ocorria era um estranho impulso,nunca mais veria Gabriel Radley,a não ser a distância.
Estava enganada.Alguns dias depois disseram-lhe que Gabriel queria vê-la.
- Você cometeu um erro nesta lista de estoque da África do Sul. O Sr.Radley está amolado.Ele perguntou quem tinha batido e agora quer vê-la.Por que você não foi um pouco mais cuidadosa?
Mas Gabriel já sabia quem tinha batido aquele trabalho antes mesmo de perguntar.Suas iniciais estavam no relatório,ao lado das dos responsáveis pelos originais.
Marisa foi até o escritório de Gabriel,ele encostou-se na cadeira quando ela entrou.
- Há um erro nesses números.Você perdeu uns quinze milhões em algum lugar por aqui.
- Sinto muito, senhor.Vou bater de novo.
-Ela pegou o relatório e ele pousou a mão deliberadamente sobre a dela.Marisa estremeceu.Aquela mão forte e cabeluda cobria quase completamente a sua, pálida e elegante.
- Jante comigo - pediu, com a voz rouca.
Com o coração aos saltos, ela olhou para ele.
- Por favor. - murmurou, o rosto ligeiramente mais corado do que o habitual, revelando, no entanto, uma grande firmeza de propósito.
- Por quê? - Marisa perguntou, atônita, porem com voz doce.
- Porque estou quase perdendo a cabeça.Precisava vê-la novamente.
Não podia acreditar.A voz dele era bastante convincente, mas a situação era muito inesperada.Marisa meneou a cabeça, puxando a mão presa debaixo da dele, afastando-se da escrivaninha, apressada.
Ele levantou e com passos largos contornou a escrivaninha.Chegou até a porta antes dela, colocando-se a sua frente, olhando-a com seus olhos escuros.
- Não há nada que você possa dizer que eu ainda não tenha repetido a mim mesmo.Pode parecer loucura, mas fiquei obcecado por você desde aquele dia de chuva em que a vi.Fui para Nova York, voltei, mas em toda parte só via seus enormes olhos azuis.Fico observando você datilografar como uma máquina, e sem olhar nem para cima nem para os lados, ignorando tudo ao seu redor.Um sem-número de vezes andei pela sala sem necessidade só para ver você curvada sobre a maquina.Você não olhou uma vez sequer para mim.
Marisa ouvia aquelas palavras, mas elas não faziam o menor sentido.Umedeceu os lábios, nervosa.
- Então? - Ele quase suplicava por uma resposta.
Marisa não conseguia dizer nada, sua garganta estava seca.
- Tenho que ver você,conversar com você,estar com você.Você me impressionou de um jeito que não consigo pensar em outra coisa.- Acariciou seu rosto com os dedos - Jante comigo.
- Não posso.
- Só quero isso.Apenas que jante comigo, nada mais.Não estou planejando levá-la para a cama.Só quero descobrir o que você tem atrás desse rostinho assustado.
Ela limitou-se a acenar um não com a mão.
- Por favor. - O sorriso era tão terno,que ela resolveu aceitar.Era uma súplica,malandra e verdadeira ao mesmo tempo.O coração de Marisa dava cambalhotas dentro do peito.
Jantaram num pequeno restaurante.Ela se sentia pouco a vontade por causa da roupa que usava.Estava muito mais mal-vestida do que as outras mulheres que freqüentavam o restaurante.Gabriel nem reparou nisso.Ele se limitava a falar com ela,não tirando os olhos de seu rosto,fixando-os ora na boca,ora nos imensos olhos azuis.
Quis saber sobre sua família,escola,amigos,interesses...Havia tão pouca coisa para Marisa lhe contar.Ela se sentia absolutamente comum,muito distante da vida sofisticada que ele levava.O que um homem com tanto dinheiro,charme e experiência poderia ver numa moça de dezenove anos que nunca tinha estado em nenhum lugar,nem feito nada de extraordinário,sem dinheiro nem charme e tão tímida que só com grande esforço conseguia olhar para ele de vez em quando?
Marisa manteve os olhos baixos quase o tempo todo,prestando atenção nas perguntas dele.De vez em quando,olhava para Gabriel,mas desviava o olhar quando seus olhos se encontravam.Durante o café,Gabriel afastou a vela que estava entre eles,colocou-a de lado,projetando uma sombra na toalha.Marisa começou a desenhar com o dedo a linha da sombra.Gabriel,pouco a pouco,aproximou a sua mão até alcançar a de Marisa e aprisioná-la.Seu coração disparou.Continuou a olhar para a toalha,observando-a roçar seus dedos nos dela.
Naquele momento,começou a acreditar na sinceridade de Gabriel.A delicadeza de suas caricias mudou todo o curso do relacionamento entre eles.
Naquela noite, ele não tentou beijá-la.Levou-a para casa, despediu-se e esperou até que ela entrasse.
Duas noites mais tarde jantou com ele novamente.Gabriel falou bem mais do que ela,apesar de não ter falado muito.Ambos estavam pouco a vontade,mal se olharam,falaram em voz baixa,nervosos como ficam duas pessoas que sentem uma forte atração nascendo entre eles.
No carro, à porta de sua casa,ele a beijou.Marisa sentiu-se derreter quando ele a puxou para si.Meio hesitante,ofereceu-lhe a boca.Nunca fora beijada antes e não sabia direito o que fazer.Abandonou-se em seus braços enquanto Gabriel,entre murmúrios de arrebatamento,beijava-lhe a boca.Marisa não retribuiu ao calor daquele beijo.Não se entregou completamente,resistindo um pouco embora não de maneira ostensiva.
Uma semana depois,Gabriel pediu Marisa em casamento.Ela ficou em pânico.Não sabia por que isso a assustava tanto,mas sentia-se petrificada ao pensar em ser esposa de Gabriel Radley.
- Não posso - havia murmurado ao saltar do carro.Gabriel seguiu-a,agarrando-lhe o braço.
- Por que não? Por que? Existe alguém?
-Não. Mas eu não posso me casar com você.
- Por quê?
- Não pertenço ao seu mundo e você sabe disso - Sua voz trêmula contrastava com o rosto de Gabriel,onde os olhos revelavam que sua decisão já estava tomada e seria concretizada.
- Não quero saber quem,nem o quê, você é.Não me importa,o que quero é você.Tenho...que me casar com você.Não vou deixar que diga não.Até você ser minha, não vou sossegar.
Levou algumas semanas para que ele conseguisse quebrar aquela obstinada e intrigante resistência.Casaram-se.Durante nove dias foi um verdadeiro encantamento.Era difícil para Marisa enquadrar-se naquela fantasia,além de não conseguir enfrentar o gênio forte de Gabriel.Seus pais apareceram para o casamento,mas não ajudaram a organizar nada.Marisa e Gabriel tinham ido até Blackheath e ele explicou que para o tipo de casamento deles seria muito melhor que o pessoal especializado se encarregasse de organizá-lo.
Nesse momento de sua vida foi que Marisa percebeu mais do que nunca a distância que havia entre ela e a mãe, e se sentiu muito sozinha, sem ninguém em quem confiar.Não tinha para onde correr mesmo que lhe faltasse coragem para assumir esse compromisso.
Gabriel, com seu temperamento impulsivo queria que ela decidisse tudo rapidamente.
a lua-de-mel nas Bermudas, foi um sonho louco para Marisa.Não acreditava naquela exuberância tropical ou na paixão cheia de sensualidade que Gabriel lhe demonstrava.À noite,deitada ao lado dele,sentia-se confusa sem poder crer no que estava vivendo.
Em plena lua-de-mel receberam a noticia de que os pais de Marisa haviam falecido num acidente de transito.Marisa não chorou recebeu a noticia com um silêncio contido.Voltaram para o enterro num dia frio e úmido, com o céu repleto de nuvens.De repente, ela percebeu que estava totalmente sozinha.
Aquela sensação de isolamento e solidão foi crescendo dentro dela nos meses seguintes.Gabriel tinha que passar longos períodos longe de Marisa e ela se sentia perdida no meio daquela casa enorme.Não sabia como lidar com os empregados, com as visitas e nem com as pessoas que faziam parte do mundo de Gabriel e que a olhavam com piedade e desprezo.
Percebia, apesar de ninguém ter dito nada, que a maioria dos amigos do marido a olhavam como se ela fosse um capricho de Gabriel,uma loucura da qual ele um dia ia se arrepender.
Ela também acreditava que um dia isso ia acontecer.Gabriel era tão rico que tinha tudo o que queria.A casa estava repleta de objetos de valor e de muito bom gosto.Seus carros luxuosos enchiam várias garagens.Quando alguma coisa lhe agradava,comprava imediatamente sem pensar se precisava realmente daquilo ou não.
Marisa se sentia como um dos objetos que ele tinha adquirido e que manuseava com prazer e carinho quando não havia nada mais importante para fazer.
Eles não conversavam,pois não tinham nada a dizer um ao outro.Mal se conheciam,não tendo nada em comum.A única coisa que podiam fazer era amor,e essa era uma ponte frágil que poderia se romper quando Gabriel se cansasse dela.
Começaram a brigar.As brigas aconteciam de repente,violentas,provocadas pela ausência de um outro tipo de relacionamento que não o físico.De repente,Marisa se viu dizendo coisas amargas e venenosas que ela jamais se atrevera sequer a pensar.
Recusou-se a ter um filho.Lembrava-se constantemente do acidente com a primeira mulher e o filho de Gabriel e, supersticiosa,achava que também teria o mesmo destino se engravidasse.
Não conseguia desabafar com Gabriel.Tentava explicar como se sentia,mas o medo abafava suas palavras.
Gabriel não conseguia entender seus temores, pesadelos e o sono agitado a noite.Apenas entendia que ela relutara em casar com ele e relutava em dar-lhe um filho.
Uma vez, durante uma discussão acalorada,Gabriel bateu-lhe com a mão deixando uma marca vermelha em seu rosto.Marisa nunca mais foi a mesma depois disso,passando a considerar o marido como uma pessoa brutal e estranha,para quem ela era apenas um de seus objetos que tinha a ousadia e o destemor de pensar por si mesmo.
Quando ela acordou na manhã seguinte à briga,Gabriel já tinha saído.Disseram-lhe que ele partira para Nova York.Alguns dias depois,uma noticia de jornal dizia que ele fora visto num clube com Danielle Garden.Marisa tirou sua próprias conclusões.Escreveu-lhe um bilhete breve e frio e a pretexto de sair para fazer compras,escapou do motorista,desapareceu nas tumultuadas ruas de Londres.
O futuro parecia-lhe negro e ameaçador.Uma terrível e amarga solidão se formava a sua frente,quando tentava prever o futuro.Mas tudo mudou com a chegada de James.Ele devolveu-lhe a vida,dando-lhe um sentido para viver.Coloriu o mundo ao seu redor,impregnando-o de objetivos,fazendo-a enxergar de uma forma totalmente diferente,cheia de esperanças nos dias que enfrentaria ao lado do filho.
Tinha,no entanto,medo de que o destino se encarregasse de destruir tudo o que ela amava.
Fugira da casa encantada de Gabriel,dos portões de ferro que a aprisionavam,para voltar novamente para lá,com a possibilidade de nunca mais tornar a ver a única pessoa no mundo que ela amava de todo o coração,sem medo,e que tinha também o mesmo amor por ela.
Quando ela tomava James nos braços,o sorriso dos dois era radiante,cheio de confiança.Os bracinhos redondos que agarravam-na pelo pescoço, a gargalhada gostosa,o gritinho resmungão voltavam-lhe a memória nesse instante,despedaçando seu coração.
- James,James.- ela murmurava na escuridão do quarto - Onde você está?

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