CAPÍTULO 8



A noite do espetáculo estava fresca e seca, o céu completamente limpo sem sinal de nuvens. Tínhamos de estar no teatro uma hora mais cedo, e eu sentira me mal durante todo o dia devido à maneira como falara com Gina na noite anterior. Ela nunca fora outra coisa senão simpática comigo, e eu sabia que tinha agido como um idiota. Vi a nos corredores entre as aulas, e queria ir ter com ela, e pedir lhe desculpa pelo que dissera, mas ela acabava por desaparecer no meio da multidão antes de eu ter oportunidade para o fazer.
Gina já estava na Playhouse quando finalmente cheguei. Vi a a conversar com Miss Garber e Arthur a um canto, junto às cortinas. Toda a gente andava de um lado para o outro, tentando atenuar o nervosismo com energia, mas ela parecia estranhamente apática. Ainda não vestira a sua roupa deveria usar um vestido branco flutuante para lhe dar aquela aparência angelical e trazia ainda a mesma camisola que levara para a escola. Apesar da minha incerteza em relação ao modo como ela iria reagir, fui ter com os três.
Olá, Gina disse eu. Olá, Reverendo... Miss Garber.
Gina voltou se para mim.
Olá, Harry disse ela baixinho. Percebi que Gina também estivera a pensar na noite anterior, porque não me sorriu como sempre fazia quando me via. Perguntei se podia falar com ela a sós, e pedimos licença para nos retirarmos. Reparei em Arthur e Miss Garber a observar nos quando nos afastamos alguns passos para onde não nos pudessem ouvir.
Olhei nervoso em volta do palco.
Peço desculpa pelas coisas que disse ontem à noite comecei. Sei que provavelmente te magoaram, e fiz mal em tê las dito.
Olhou me como se estivesse a pensar se deveria ou não acreditar em mim.
Estavas a falar a sério quando disseste aquelas coisas? perguntou por fim.
Estava apenas de mau humor, só isso. às vezes, perco as estribeiras. Sabia que, na verdade, não tinha respondido à sua pergunta.
Compreendo retorquiu. Disse o como o dissera na noite anterior, depois voltou o olhar para os assentos vazios na platéia. Tinha novamente aquela expressão triste nos olhos.
Olha exclamei, pegando lhe na mão. Prometo compensar te pelo que fiz. Não me perguntem por que disse aquilo pareceu me simplesmente que era o que devia fazer naquele momento.
Pela primeira vez naquela noite, ela começou a sorrir.
Obrigada disse ela, virando se para me olhar.
Gina?
Gina voltou se.
Sim, Miss Garber?
Acho que estamos prontos para começar contigo. Miss Garber fazia lhe sinais com a mão.
Tenho de ir disse me ela.
Eu sei.

Parte uma perna disse eu. Dizem que dá azar desejar boa sorte antes de um espetáculo. É por isso que toda a gente diz "parte uma perna".
Larguei lhe a mão.
Havemos de partir os dois. Prometo.

Depois disto, tínhamos de nos aprontar e cada um seguiu para seu lado. Dirigi me para o camarim dos homens. A Playhouse era razoavelmente sofisticada, tendo em conta que se situava em Beaufort, com camarins separados que nos faziam sentir como se fôssemos verdadeiros atores, em vez de meros estudantes.
O meu terno, que ficava guardado na Playhouse, já estava no camarim. No começo dos ensaios tinham nos tirado as medidas para que as roupsa pudessem ser ajustados. Estava a vestir me quando Rony irrompeu pela porta sem se anunciar. Dino estava ainda no camarim a vestir a sua roupa de vagabundo mudo e, quando o viu, uma expressão de terror surgiu lhe nos olhos. Uma vez por semana, pelo menos, Rony atacava o por trás e puxava lhe as cuecas para cima, e Dino escapuliu se dali o mais depressa possível, uma perna ainda a enfiar se no fato ao sair pela porta. Rony ignorou o e sentou se no toucador frente ao espelho.
Então disse Rony com um sorriso malandro no rosto - o que é que vais fazer?
Olhei para ele, curioso.
Que queres dizer?
No espetáculo, estúpido. Vais dizer mal o teu texto ou qualquer coisa assim?
Abanei a cabeça.
Não.
Vais deitar os adereços abaixo? Toda a gente sabia dos adereços.
Não tinha planejado fazer isso - respondi estoicamente.
- Quer dizer que vais fazer isto direitinho?
Fiz sinal que sim com a cabeça. Pensar de outro modo nem sequer me tinha ocorrido.
Ele olhou para mim durante muito tempo, como se estivesse a examinar alguém que nunca tinha visto antes.
Parece que estás finalmente a crescer, Harry disse, por fim. Vindo de Rony, não tinha a certeza se era um elogio.
Fosse como fosse, porém, sabia que ele tinha razão.

Na peça, Tom Thornton fica espantado quando vê o anjo pela primeira vez, e é por isso que o segue e o ajuda quando ele sai para partilhar o Natal com os menos favorecidos. As primeiras palavras proferidas por Tom são "És bela" e eu tinha de dizê las como se as sentisse do fundo do coração. Era o momento crucial de toda a peça, estabelecendo o tom de tudo o que acontecia depois. O problema, porém, era que eu ainda não tinha agarrado aquela frase. Claro, dizia as palavras, mas elas não saíam de maneira muito convincente, uma vez que as proferia como provavelmente qualquer outra pessoa ao olhar para Gina, com a exceção de Arthur. Era a única cena durante a qual Miss Garber nunca dissera a palavra maravilhoso, por isso sentia me nervoso e preocupado com isso. Tentava sempre imaginar outra pessoa no papel de anjo para que pudesse dizer o texto como deve ser, mas com todas as outras coisas em que tentava concentrar me, perdia se sempre na confusão.

Gina estava ainda no camarim quando o pano finalmente abriu. Não a vira antes disso, mas não fazia mal. De qualquer maneira, não entrava nas primeiras cenas que eram principalmente sobre Tom Thornton e a sua relação com a filha.
Eu achava que não iria ficar demasiado nervoso quando entrasse em palco, uma vez que tinha tido tantos ensaios, mas quando isso de fato acontece atinge nos em cheio. A Playhouse estava a abarrotar e, tal como Miss Garber previra, tinham instalado mais duas filas de cadeiras a todo o comprimento ao fundo da sala. Normalmente, o teatro tinha capacidade para quatrocentas pessoas, mas com aqueles assentos havia pelo menos outras cinqüenta sentadas. Além disso, havia gente de pé encostada às paredes, amontoada como sardinhas em lata.
Mal pus os pés no palco, fez se silêncio absoluto. A assistência, reparei, era composta principalmente por senhoras idosas de cabelo meio azulado, daquelas que jogam bingo e bebem Bloody Marys nos lanches de domingo, embora pudesse ver Rony com todos os meus amigos sentado perto da última fila. Era francamente arrepiante estar ali diante deles enquanto todos esperavam que eu dissesse alguma coisa.
Assim, à medida que representava as primeiras cenas da peça, fiz o melhor que pude para não pensar nisso. Sally, o prodigio zarolho, fazia o papel de minha filha, pois era baixa, e representamos as nossas cenas tal como as tínhamos ensaiado. Nenhum de nós se atrapalhou com as deixas, apesar de não termos sido espetaculares, ou coisa do gênero. Quando baixamos o pano para o segundo ato, tivemos de recolocar rapidamente os adereços. Desta vez, todos ajudaram e os meus dedos escaparam incólumes porque evitei Dino a todo o custo.
Ainda não tinha visto Gina julgo que estava dispensada de ir carregar os adereços, porque o fato dela era feito de um tecido muito leve e rasgar se ia se ficasse preso num dos pregos mas não tive muito tempo para pensar nela por causa de tudo o que tínhamos para fazer. Quando dei por mim, o pano estava a subir de novo e eu regressava ao mundo de Arthur Weasley, passeando diante das lojas e a espreitar pelas vitrinas à procura da caixa de música que a minha filha queria para o Natal. Tinha as costas voltadas para onde Gina deveria entrar e ouvi a platéia suspender a respiração em conjunto logo que ela fez a sua aparição em palco. Antes, achava que a platéia estava silenciosa, mas agora estava completamente queda e muda. Nesse instante, do canto do olho e a um dos lados do palco, vi o queixo de Arthur estremecer. preparei me para me voltar, e quando o fiz, percebi, finalmente, o que é que se passava.
Pela primeira vez desde que a conhecera, o seu cabelo cor de fogol não estava apanhado. Em vez disso, caía solto, mais comprido do que imaginara, chegando lhe abaixo dos ombros. Apresentava vestígios de um pó brilhante, que refletia as luzes do palco, cintilando como uma auréola de cristal. Contrastando com o vestido branco flutuante, feito exatamente à sua medida, era absolutamente espantoso de se ver. Não parecia a moça com quem eu havia crescido ou a moça que tinha vindo a conhecer recentemente. Tinha também um leve toque de maquilagem, não muito, apenas o suficiente para fazer realçar a suavidade das suas feições. Sorria docemente, como se estivesse a guardar um segredo junto ao coração, tal como o papel exigia.

Parecia mesmo um anjo.
O meu queixo descaiu um pouco e fiquei ali a olhar para ela durante o que me pareceu ser muito tempo, silenciado pelo choque, até, de repente, me lembrar que tinha uma frase para dizer. Respirei fundo, depois deixei sair lentamente.
És bela pronunciei por fim, e penso que toda a gente no auditório, desde as senhoras de cabelo azul, que estavam à frente, até aos meus amigos na fila de trás, sabia que eu estava realmente a falar a sério.
Pela primeira vez, tinha agarrado aquela frase.

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