Lágrimas na Terra



Capítulo IV
LÁGRIMAS NA TERRA



“MILAGRES ACONTECEM!” A frase cobria grande parte do jornal, no chão do quarto de Klepstein. A tiragem datava de dois dias antes (roubar jornais mostrava-se uma arte mais difícil do que o imaginado). Klepstein mantinha todas as luzes apagadas, como se a qualquer momento três encapuzados fossem descobrir seu esconderijo.

8 de janeiro; o novo exemplar do Times jazia em uma cadeira de marfim, esquecida pelo pó acumulado durante os últimos 10 anos. Klepstein roubara o jornal de uma janela em uma das casas vizinhas. A matéria principal, como nos dias anteriores, cobria a bizarra estória de um sobrevivente de um acidente – ou talvez tentativa de suicídio. Klepstein recordava-se da primeira reportagem sobre a nova onda de anomalias. A notícia continha uma foto preta e branca de um jovem de 20 anos que levara um tiro na jugular, perdera metade se seu sangue e mesmo assim encontrara um meio de sobreviver. Desde então, mais e mais casos de mortos que estavam vivos começaram a aparecer.

Klepstein estava na cozinha. O cômodo retangular era inteiramente branco, com um forno a gás, uma mesa de apoio e alguns utensílios. A chaleira deu o sinal de que o chá estava pronto. Klepstein despejou um pouco do chá em uma xícara e se dirigiu para a sala de jantar onde jazia a cadeira marfim – com o jornal datando 8 de janeiro em cima. A sala era o local mais aconchegante de toda a casa, com uma lareira e uma mesa de jantar ao centro. Klepstein normalmente sentava-se no canto esquerdo, próximo à lareira – que agora estava apagada – de frente para a janela e sempre de olho na porta.

O professor pegou o jornal e sentou-se. Olhou rapidamente a capa do jornal: “E ACONTECEU NOVAMENTE”; mais uma vez em letras garrafais, estava na parte superior com a foto de uma família que supostamente fora assassinada. Klepstein começou a ler.

São Paulo, Brasil. Ontem, às 15:00 - horário de Greenwich -, mais um caso de vítimas que sobreviveram a terríveis acontecimentos veio a ocorrer. René da Silva, sua mulher e duas filhas foram, na tarde de ontem, esfaqueadas dentro de sua residência na região norte da cidade...

Continua na página 6


Klepstein não conseguia se conter. Suas gargalhadas eram audíveis por toda a casa. “MILAGRES não acontecem, milagres existem na mente de fracos... de sucetíveis. Milagre vem de fé e fé vem do invisível. Tais coisas são estórias, contos para acalmar o afligido e aquietar o desesperado. Com a morte, não há milagre; há rendição, há um fim”. Klepstein disse essas palavras como se fosse um palestrante. A imagem de uma igreja veio à sua mente. Klepstein imaginou-se como um padre, alguém importante, na frente de devotos. Um padre com uma mensagem devastadora, perigosa à fé. Klepstein foi mais a fundo; ele tinha a imagem clara, até as palavras que usaria: “Não há fé,” ele diria, “não há Bíblia, não há Deus. Porém, há morte, meus irmãos, e a morte deve ser seu único medo”. Klepstein sorria mais e mais, sentindo-se imbatível. Ele via pessoas chorando, desesperadas. Ele via lágrimas na Terra; o choro daqueles para quem Klepstein mostrara a verdade. Ele bebia aquelas lágrimas com orgulho, cada gole mais precioso que o outro.

Klepstein terminou seu chá e subiu para o segundo andar, onde fizera seu o quarto principal. A cama encontrava-se ao lado da janela. Percebeu que, no momento, chovia na rua sem iluminação. Klepstein estava cansado de se esconder e assistir a seu mundo viver, tudo em silêncio. Ele se deitou nos lençóis brancos e fechou os olhos, adormecendo quase que instantaneamente.

Ela estava ali. Klepstein não podia ver seu rosto, mas isso não se fazia necessário... sabia quem ela era – não sendo esta a primeira vez. Klepstein olhou para si mesmo; estava nu e tinha um corpo jovem, infantil... talvez 13 anos. Ele se sentiu envergonhado, mas não havia roupas por perto. Cobrindo suas partes com uma de suas mãos, Klepstein caminhou em direção da mulher à frente. Ela estava de costas, seus cabelos castanhos escorridos até o ombro. Vestia um velho e rasgado vestido azul e sua pele branca estava coberta em cinzas.

Ela chorava silenciosamente; Klepstein se perguntou por que. Sentia ela falta de algo de seu passado? Estaria com medo do presente? Talvez fosse outro motivo... Klepstein percebeu que o motivo era inútil e em breve seria passado. O garoto continuou a caminhar. Ela estava mais perto do que nunca agora. Klepstein tivera este mesmo sonho anteriormente, mas nunca havia ele estado tão próximo dela. Quase lá! Era agora, ele iria tocá-la, senti-la, abraçá-la, chamá-la de...


“Mãe”. Klepstein acordou suado. A chuva ainda mais forte. Levantou-se, dirigiu-se ao banheiro e se olhou no espelho... ele estava velho. Fazia muito tempo, tempo suficiente para corroer o coração do velho professor. Ele mirou seus olhos... ela tinha os mesmos – do pouco que ele a lembrava. Klepstein fechou os seus... não seria desta vez que olharia para aqueles olhos novamente.

* * *


Melinda Bagshot colocou a ultima edição do Profeta Diário em sua mesa. Seu cubículo, situado próximo ao Departamento de Mistérios – no Ministério da Magia -, possuía ainda uma penseira, pilhas de pergaminhos e um tubo transparente usado para enviar mensagens internas. A sala, mantida escura a todo custo, possuía um aroma forte de poeira e papel queimado.

Melinda não se sentia bem, estava afobada. Um senso de preocupação havia apoderado sua mente. O jornal ainda estava em cima da mesa, iluminado pelos raios prata vindos da penseira. No topo da página, “ANOMALIAS COM O MUNDO TROUXA” se destacava. Melinda observava aquelas palavras. Bastavam apenas dois parágrafos para compreender a situação. Segundo a notícia, relatos de trouxas que haviam sobrevivido a uma morte inevitável estavam se espalhando pelo planeta. Os números chegavam a 50.

“Seria possível que após todos esses anos...?”. Melinda tinha seu indicador na borda da penseira. “Quais as chances?”, mas as chances eram grandes e ela tinha conhecimento disso. Olhou para o interior do objeto. Ali estavam suas piores memórias; casos do passado que ainda a assombram no presente. “Se eu pudesse voltar atrás”, mas ela sabia que voltar atrás não seria a solução. Medo se vence com luta, não com mais medo. A bruxa parecia mais cansada do que nunca. Concentrando-se o máximo possível, Melinda levantou-se.

Ela caminhava pelo corredor até chegar a uma grande porta. Ao passar por ela, a bruxa viu-se em uma sala circular com diversas outras portas. A entrada à suas costas fechou-se sozinha. Melinda dirigiu-se à entrada mais próxima, girou a maçaneta de ouro e entrou em outra sala, ainda mais escura do que a outra, olhando para o arco no centro. Um véu preso ao topo balançava e dançava em uma brisa imaginaria.

“Não se comete o mesmo erro duas vezes... não um erro como o meu.”

* * *

“Monsieur Dobson suas passagens estão prontas,” disse o mordomo já de idade avançada a seu patrão, que estava em seu escritório. Dobson tinha duas malas ao seu lado. “A limusine estará pronta em 15 minutos, senhor.”

“Não... prefiro que chame um táxi.”

“Se o senhor deseja. Ligarei agora mesmo,” disse fazendo uma cortesia.

“Obrigado Timothy, você tem sido ótimo. Após fazer a ligação tire o resto do dia, você merece”. Timothy tinha feito a sua parte. Desde o fiasco no esconderijo de Klepstein, Dobson precisra de seu mordomo mais do que nunca. O homem de 73 anos fez algumas viagens para fora de Londres, pesquisou incansavelmente sobre lendas, ajudou seu senhor na procura de informações e fizera ligações importantes. A última para um velho conhecido de seu senhor, nos Estados Unidos. Aparentemente, Dobson passaria algum tempo hospedado na cada deste indivíduo – sem identificação, nome ou endereço. A ligação fora rápida e objetiva; a mensagem... simples: Tudo estava pronto.

“Muito obrigado Monsieur. Algo mais em que posso ajudar?” perguntou, despedindo-se logo em seguida com o não de seu patrão. Dobson olhava para o céu, através da janela de seu escritório. A sala possuía um formato pentagonal. A porta de entrada jazia no vértice oposto à base do pentágono – com a janela para a qual Dobson agora olhava – onde estava sua mesa. O móvel assemelhava-se a um caixão, sendo a morte a principal fonte de renda do empresário. Em cima do caixão-mesa estavam poucos documentos. O resto – e essencial – estava em uma das duas malas. Entre o coquetel de informações estavam fotos, uma certidão de nascimento em búlgaro, um livro de contos chinês e diversas anotações.

Dobson caminhou através de seu escritório até a porta, atravessando-a. O corredor em que se encontrava estava deserto. O carpete vermelho corria de ponta a ponta, dando um ar magistral ao andar. À frente de Dobson estava a escada – coberta com o mesmo carpete – para o piso abaixo. Lorde Roke o esperava no último degrau. O acadêmico vestia um terno escuro com sapatos Moccassin. Em seu peito – como sempre, pensou Dobson – jazia a cruz incrustada em diamantes, suspensa por uma corrente de ouro em volta de seu pescoço.

“Noite,” disse Roke.

“Boa Noite Roke... e Alfred?” indagou Dobson se aproximando do outro.

“Alfred decidiu voltar para a Universidade. Ele disse que precisava de um tempo a sós... para pensar,” adicionou o acadêmico, em uma voz quase inaudível. Lorde Roke certamente não dormia há dias.

“Ele tem agido de forma estranha,” Dobson acenou para que Roke caminhasse com ele.

“Todos nós estamos estranhos, Dobson. Agimos de acordo com nosso coração, com nossos instintos e os instintos de Deus. Tempos difíceis estão por chegar.”

“Certo... Roke, como você sabe, esta noite embarco para os Estados Unidos. Tenho um amigo lá. Um contato, para ser mais preciso... ele me deve alguns favores. Eu preciso que você e Alfred continuem a mover as peças de acordo com nossos planos”.

Dobson parou e virou-se para Roke. “Klepstein não saiu do país. Ele não saiu de Londres. Eu não posso explicar, simplesmente sei que ele está aqui.”

“Mas onde?“

“Onde eu não tenho certeza e é por isso que estou indo para os Estados Unidos. Roke, eu preciso que você e Alfred estejam prontos, porque em breve – muito breve – as coisas irão piorar.”

“Dobson, se existiu alguma vez em que eu não pude te compreender, este momento seria agora.”

“Nós temos que aceitar o que aconteceu, Roke. Você leu os jornais, o processo começou. Em pouco tempo o mundo estará um caos e Klepstein deixará a caverna. Klepstein quer controle... poder. Roke, você sabe o que acontecerá se Klepstein tiver poder.”

“Mas por que os Estados Unidos?”

“Porque eu preciso de recursos. Eu preciso de ajuda, porque eu vou convocar o inferno... pra Terra.”

“Deus, você enlouqueceu.”

“Não, o inferno será para Klepstein,” Dobson olhou para seu relógio, um caro e dourado Mont Blanc. Vendo que ainda tinha alguns minutos, abaixou a voz e continuou – quase sussurrando. “Estranho ou não, eu recomendo que você observe Alfred. Preciso de cada um dos meus aliados. Chegou a hora de nos unirmos, chegou a hora de usar mentiras... para dizer a verdade.”

“Senhor,” disse Timothy com as malas de Dobson ao seu lado. “Seu táxi está aqui.”

“Obrigado, Timothy”. Dobson acenou com a cabeça, arrumo o colar de seu paletó e mais uma vez virou-se para Lorde Roke. “O momento de minha partida chegou. Eu manterei contato... dentro do possível. Tome cuidado meu amigo, o futuro é incerto.”

Roke segurou a cabeça de Dobson, beijando-o na testa... uma benção. “Que Deus o ajude em sua... nossa missão. Boa viagem”. Dobson agradeceu e se dirigiu ao salão de entrada. A porta estava aberta e o empresário visualizou o táxi imediatamente. Com um último adeus, Dobson caminhou para o carro, entrou, disse o local e olhou para o céu, entrando mais uma vez em um profundo transe, do qual não queria acordar.


Nas ruas de Oxfordshire, um homem – também em um táxi – acordava de seu transe. Alfred vestia um conjunto cinza e uma camisa branca. Ele não dormia direito há dias, dado que os últimos acontecimentos não saiam de sua mente. Do lado de fora, os primeiros sinais da monstruosa Universidade de Oxford começavam a aparecer. 5 minutos, calculou como o tempo que levaria para chegar a seu aposento.

Alfred observava a escola. Ele lembrava de sua juventude como aluno, os dias e noites na torre do lado norte, seus amigos... amigo; Conhecido. Alfred não sabia quem ele era mais. Companheiros... mas Klepstein era melhor. Sempre o aluno mais adorado, mais esperto... Alfred era somente a sombra. Ocupado com seus pensamentos, ele não percebeu que já estava na escola. O motorista chamou o homem, que acordou de seu devaneio. “40 libras, por favor,” Alfred entregou o dinheiro, saiu do carro e começou a caminhada até seu dormitório. Dentro de poucos minutos, ele jazia aos pés de sua porta. Girou a chave duas vezes, segurou a maçaneta prateada e entrou.

O dormitório possuía um tamanho médio. As paredes todas cobertas por um tom pastel e o chão de madeira polida. O local estava escuro, salvo por alguns pequenos raios de luz que atravessavam a cortina empoeirada. Alfred olhou ao redor. O local estava vazio, com exceção de uma mesa, cadeiras, uma cama, livros, cadernos e... fotos. Dezenas – talvez centenas – de fotos. O rosto de Klepstein estava por todo o lugar. Fotos antigas, recentes, roubadas, desenhos, anotações, mapas. Alfred localizou uma foto que continha Klepstein ainda jovem e a si mesmo. Ele se levantou, rasgou-se da fotografia, olhou para os olhos de Klepstein e se perdeu em sua perigosa e doentia obsessão.

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