Aquele que vence a morte

Aquele que vence a morte



Aquele que vence a morte


Diante do espelho, Bellatrix desfazia sua transfiguração. Começou pelos cabelos ruivos, voltou seus olhos ao formato alongado original, desfez os lábios muito finos e retirou as sardas.


Só então entrou debaixo do chuveiro. Deixou a água morna levar consigo toda a tensão de sair às ruas, sendo ela uma procurada pelos aurores e pela polícia trouxa. Terminado o banho, se enrolou numa toalha felpuda e se apressou em vestir-se para seu encontro com Lord Voldemort.


Há dois dias ele havia lhe proposto uma tarefa extremamente arriscada. Ela tinha dado um salto involuntário na cadeira, assustada, ao ouvir da boca de Voldemort seu apelido de infância.


Depois disso, esperava por um pedido muito especial. Conhecia muito bem o tom que as pessoas usavam quando queriam algo — e, por mais inumana que a aparência de seu Mestre tivesse se tornado, ainda havia um cérebro humano ali. Ela imaginou que seria mandada para comandar alguma companhia de militantes Comensais nas batalhas corpo-a-corpo que vinham acontecendo em Gales. Na verdade, ansiava por esse tipo de ação mais do que já ansiara por qualquer coisa na vida. Mas o pedido que lhe foi feito não poderia estar mais distante dessa suposição.


Bella se lembrava de ter ficado vários minutos estática, mirando as cortinas pesadas do aposento, sorrindo internamente.


— Não vou negar que vai estar arriscando seriamente sua vida e por isso vou entender se não quiser fazer. Mas, você sabe, quem está comigo sempre vence no final — ele disse, bem pausadamente, despertando-a do devaneio de satisfação.


Na hora ela ficara tão orgulhosa de lhe ter sido dada a chance de escolher que teve ímpetos de responder imediatamente, mas Voldemort a impedira dizendo:


— Não responda ainda. Pense no assunto e volte depois de amanhã.


Embora tivesse a resposta pronta na ponta da língua, Bellatrix obedeceu: se Voldemort lhe dava dois dias, então ela adiaria sua decisão por dois dias.


Vestiu-se rapidamente, tomando o cuidado de ajustar bem sua máscara branca — recebida há dois dias, antes de deixar a presença de Voldemort. Um símbolo de reconhecimento e a prova de que agora fazia parte de seu círculo íntimo.


Saiu do quarto que ocupava numa velha pensão na Travessa do Tranco e desaparatou direto diante do portão de ferro da mansão Malfoy. Dessa vez foi conduzida a um mezanino, onde esperou alguns minutos até que o próprio Lord Voldemort apareceu para recebê-la. Sem nem mesmo um aceno ou um cumprimento, ele se limitou a perguntar:


— E então, o que decidiu?


E ela respondeu, sem pestanejar:


— O senhor já sabia qual seria minha resposta mesmo antes de perguntar, Mestre. Estou pronta.


E estava. Bellatrix estava totalmente pronta para auxiliar seu mestre na busca da imortalidade. Ainda que aquilo fosse ligá-la a ele de uma forma tão terrível.




— Por que quer saber disso?


 


Bella ergueu as sobrancelhas finas para Elise. A jovem Malfoy estava sentada diante da lareira, com a luz alaranjada do fogo imprimindo sua sombra alongada no tapete da sala luxuosa. Não se via um centímetro da parede —tudo estava coberto por pesadas cortinas verde-escuras, inclusive as janelas, lembrando a sala onde Bellatrix conversara com o Lorde na mansão dos Malfoy. Talvez fosse um hábito deles decorarem suas casas daquela maneira.


— Curiosidade — respondeu Bellatrix, bebericando o chá que o elfo acabara de servir.


A casa de Elise Malfoy em Hogsmeade era um velho sobrado localizado quase no limite da vila com os campos desolados que a rodeavam. As ruas ali não tinham calçamento e os únicos vizinhos eram membros de uma família de fazedores de poções por encomenda que aparentemente tentavam evitar agentes do Departamento de Execução das Leis da Magia tanto quanto os Comensais.


Enquanto do lado de fora tudo estava branco e luminoso com a neve cobrindo o chão, o interior do casarão estava escuro, com raros cômodos iluminados por tochas ou, como era o caso daquela sala, pela lareira. Por fora, o sobrado parecia um prédio condenado, com tábuas lacrando as janelas. O disfarce deveria ser mantido fazendo o máximo de silêncio possível do lado de dentro e nunca usando as portas, sempre se deveria sair aparatando. Mas Elise não parecia se preocupar muito com segurança, já que tinha a lareira acesa, sem tomar nenhuma precação a respeito da fumaça que escaparia pela chaminé, e pendurara enfeites natalinos na fachada. Bellatrix já desistira de tentar fazer algo a ém do mais, aquelas bandas da cidade não eram exatamente alvo de vigilância do Ministério da Magia.


Elise mirou Bella com um olhar suspeito e se levantou do tapete. Andou em passos lentos até um aparador, onde havia uma pasta de arquivo de aspecto oficial. Ela abriu a pasta desenrolando um fino pedaço de barbante que a mantinha fechada e puxou de dentro um grosso maço de pergaminhos.


— Onde estão...? — murmurou, largando os pergaminhos sobre o aparador e mexendo nos bolsos internos da capa. Então, como se de repente se lembrasse de alguma coisa, tirou o chapéu da cabeça e enfiou o braço até o ombro dentro dele. Puxou de dentro um par de óculos cor-de-rosa, que ela colocou no rosto, fazendo seus pequenos olhos azuis crescerem por trás das lentes.


Ela pegou os pergaminhos e correu os olhos pelas várias folhas, murmurando:


— Bem... Você não perdeu seu registro de bruxa, nem foi decretado seu banimento da Comunidade Bruxa do Reino Unido como pensávamos. As acusações que havia contra Lestrange quando foi preso na Romênia foram transferidas para você. Nos arquivos do Ministério, você é descrita como "terrorista procurada" e "baderneira de alta periculosidade", nada que me surpreenda, na verdade — Bellatrix murmurou em concordância e Elise continuou: — Mas você continua sendo uma Black e, aparentemente, isso ainda vale alguma coisa. Nenhum dos processos contra você conseguiu ir adiante, apesar dos esforços de Bartolomeu Crouch. Ou seja, você pode até mesmo se candidatar a um emprego no Ministério e ninguém poderia lhe negar o exame de admissão. Claro, se você aparecesse diante deles, seria presa imediatamente, mas duvido que consigam te condenar, não enquanto o Mestre estiver conosco.


Com essas palavras, Elise voltou a guardar os pergaminhos na pasta e mirou Bella, esperando ser parabenizada por seu trabalho de espionagem, o que não aconteceu. Bellatrix se concentrava em mirar as chamas da lareira. Passaram-se vários minutos até que ela verbalizasse seus pensamentos.


— O que você quer dizer com "enquanto o Mestre estiver conosco"? Por acaso acha que ele não vai estar algum dia?


Elise engasgou com um biscoito que colocara na boca e teve que beber vários goles de chá até conseguir responder.


— Claro que não acho isso! Foi só... foi só jeito de falar...


— Você não está dando atenção àqueles boatos sobre o bebezinho Potter, está? — Bellatrix mirou a colega inquisidoramente.


Elise pareceu encolher vários centímetros na poltrona, antes de falar, num fio de voz:


— Claro que não... imagine, eu não...


— Porque não vai acontecer! — exclamou Bella. — Quando eu fizer o que tenho que fazer, Elise, ninguém, nem bruxo nem qualquer outra coisa, vai ser páreo para ele. Grave minhas palavras — e ela falou de uma forma tão convicta que a outra não teve coragem de contestar, nem de perguntar o que aquilo significava.




— Tudo o que esperamos é que nosso Rodolfo se torne um bruxo quase tão bom quanto seu Mestre — falou Verônica Lestrange em seu discurso pelo vigésimo primeiro aniversário de seu único filho.


 A festa, organizada no bangalô da família na periferia nobre de Londres, reunia as mais tradicionais famílias de sangue puro do Reino Unido.


Nem Verônica Lestrange nem a maioria dos bruxos ali presente jamais ouvira falar de Marjory Berkley, nem conheciam nenhum dos outros codinomes usados freqüentemente por Bellatrix Black. Mesmo seu nome de batismo já quase fora apagado da memória daquela gente tão afeita a festas e jantares de gala. Nem Narcisa, que desfilava pelo salão com desenvoltura ao lado do marido, olhou duas vezes para a moça vestida de negro que observava tudo com uma destoante seriedade.


Bellatrix ainda existia na tapeçaria da árvore genealógica da família Black, não por vontade de seu pai, claro, mas a imagem que guardavam dela ali era a da garota arredia que acabara de terminar seus estudos em Hogwarts. Entretanto, os três anos que haviam se passado desde então tinham tirado completamente de Bella aquele ar de adolescente para se transformá-la numa mulher forte e muito atraente. Os olhos continuavam negros (cor-de-noite, como sua mãe costumava dizer) e os cabelos muito lisos, o corpo ainda era esguio, embora tivesse consolidado formas muito interessantes com o passar do tempo. Exalava uma aura ao mesmo tempo de respeito e graça, e sua maneira séria de falar lhe dava algo de inatingível. Até o jeito desengonçado de andar com as pernas muito compridas lhe conferia um encanto especial.


E, embora não tivesse sido convidada, ela estava ali, encolhida num canto com uma taça de xerez na mão, observando quando Rodolfo fez uma careta para a mãe que o beijava na bochecha. Viera acompanhando Voldemort, que se aproveitava de encontros sociais como aquele para contatar seus colaboradores sem chamar atenção.


Com seus incompletos vinte e um anos, Bellatrix já era considerada por muitos aquilo que Verônica desejara para seu filho: "um bruxo quase tão bom quanto seu Mestre". Seus estudos na Bulgária haviam-na preparado para montar táticas de batalha, lidar com todo tipo de arma mágica e fazer os mais avançados feitiços de duelo. Além disso, a jovem falava, além do inglês, francês, gargulês, russo e um pouco de romeno. Tinha também uma refinada formação teórica nas teorias purificadoras e, mais que tudo isso, já tinha dado provas indiscutíveis de poder e determinação.


Após meses ocupada com missões na Romênia e depois com o curso na Bulgária, ela passara o último ano na Inglaterra, sendo instruída pelo próprio Lord Voldemort. E a isso ela conciliava um cargo de peso dentro do Movimento Comensal: planejava as missões de eliminação de testemunhas e tudo o mais que fosse necessário para manter os militantes incógnitos dos agentes do Ministério da Magia.


Nem Bellatrix nem ninguém naquele salão, entretanto, poderia prever que, dali a poucos dias, os planos de Voldemort a colocariam num caminho que acabaria fazê-la entrar para a família Lestrange.

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