Snape



Heloísa se mostrou completamente inepta para transfiguração ou vôos em vassouras, mas em feitiços e encantamentos que precisassem de uma determinada “energia”, ela se sentia razoavelmente capaz. Era boa em matérias que exigiam concentração e estudo, como Herbologia, Adivinhação e Poções, e tinha uma memória e uma capacidade de síntese prodigiosa. Havia algo mais que ela sabia fazer muito bem, mas se furtava de contar a outros, até mesmo aos professores. Ela já ouvira falar disso nos corredores e pátios e entre cochichos estranhos no vento. Ela “sentia” de uma maneira que a fazia ter certeza do que os outros estavam pensando, apesar de não entender o que era isso ou como e porque tudo se manifestava. Uma vez, durante um almoço, “ouviu”, “sentiu” o que o professor Dumbledore estava pensando. Trivialidades, assuntos da escola. Mas, de repente, o professor se virou assustado para ela, encarando-a. Heloísa sentiu como se uma “névoa” bloqueasse seus pensamentos e viu Dumbledore sorrir gostosamente.

Nas visitas à casa do avô, percebia como ele estava doente e tentava esconder isso. Até que recebeu a notícia, em Hogwarts, de que ele morrera. Era seu quarto ano. Durante um almoço, Dumbledore recebera uma coruja extraordinária e solicitou à diretora da Casa, Madame Sprout, que a conduzisse até seu gabinete.

Dumbledore lembrou-lhe que agora ela estava sob sua guarda e responsabilidade até ser nomeado um tutor, dado não haver mais nenhum parente vivo e a escola ser uma instituição legalmente reconhecida na bruxandade. E ele se comprometia a conduzi-la até sua maioridade, tornando Hogwarts seu lar e desejando que ela sentisse neles, funcionários, a família de apoio. Ele desejou, realmente, que ela quisesse ficar e aprender.

Quando voltava à Hogwarts após os funerais do avô, a menina foi tomando consciência de que estava sozinha agora. Ela sabia que não seria desamparada onde quer que estivesse, mas não havia mais família. Pensara em voltar para seu país na América do Sul; talvez ainda houvesse os amigos de seus pais, mas amigos ela sabia que encontraria aqui também, em Hogwarts. E o seu país estava muito longe agora. Ela não teria dinheiro para viajar nem para viver, já que seu avô não deixara nada. Talvez, até poder trabalhar e se manter, fosse melhor continuar ao lado de Dumbledore. Escutara rumores, cada dia mais fortes, sobre mortes entre trouxas, perseguição. Falava-se de uma figura sinistra, malévola, que estava tomando de assalto o mundo bruxo sem se importar realmente com o que acontecia à sua volta. Havia ódio nos acontecimentos; havia medo, ela pressentira.

Heloísa caminhava em volta do lago, pensando na mãe, no pai risonho e avoado, sentindo o corpo e a mente cansados de reagir ao abatimento e tristeza. Olhou por instantes as águas escuras e se deixou cair aos poucos na grama, recostando-se numa grande árvore retorcida. Seus pensamentos corriam as lembranças, e seu coração se apertava de saudade e angústia. “Tudo tão sem remédio... E como vou fazer agora, mãe? Não tenho capacidade (não, desculpe, mãe!), não tenho vocação para o mundo bruxo mas... e para o trouxa? Não tenho estudo ou preparo suficiente para fazer nada. Talvez possa fazer algo com o que aprendi em Herbologia, ou Poções, mas o que, com quatorze anos?”... Nada com conhecimento ou experiência suficiente para tranqüilizá-la. Sozinha. Estava sozinha. Começou a chorar.

Olhou ao redor, perdida, tentando achar algum ponto que a arrancasse dessa nuvem de aflição, quando seus olhos se encontraram com os do magricela Snape. Ele estava sentado perto da árvore, com um livro à mão, mas a olhava com o canto dos olhos, meio encobertos pelos longos cabelos pretos que caíam moles pelo rosto. Isso já acontecera outras tantas vezes, e a reação dele sempre fora a mesma: depois de olhá-la por instantes, levantava-se e saía caminhando duro para longe.

Surpresa, Heloísa o viu se recostar na árvore e voltar sua atenção para o livro. Não sabia dizer se isso era bom ou ruim.

Como ela, ele já contava quatorze anos, e os meninos são bem estranhos aos quatorze. Ele havia crescido muito desde que chegara à Hogwarts há quatro anos atrás, seus braços e pernas eram magros e desajeitadamente compridos agora. Os ombros, encurvados para frente, mostravam os ângulos dos ossos, e a pele muito clara, macilenta, pálida, dava-lhe uma aparência doentia. Viu suas mãos, brancas, compridas, dedos longos, apertarem o livro com força, claramente percebendo que ela o analisava. Ela observou seu rosto, a boca fina, apertada numa atitude visível de desagrado, o nariz saliente, anguloso, aquilino, a curva frouxa do cabelo negro e oleoso que lhe caía sobre os olhos. Não era sua aparência estranha, desleixada mesmo, que impressionava os sentidos das pessoas, provocando curiosidade, desprezo, interesse ou escárnio. Era a negritude fria e intensa que emanava de seus olhos, não deixando muito espaço para especulações quanto ao seu caráter. Eram olhos que não permitiam aproximações.

Muitas vezes ela sentia nele, na presença dele, uma onda forte de angústia e desespero; outras vezes era ódio puro, ressentimento. Como se ele golpeasse a vida e as pessoas, usando para isso o seu isolamento, a distância, o desprezo.

Ela sabia agora, aos quatorze anos, que toda sua alma, seus sentidos, tudo estava impressionado com Severus Snape.

Só não sabia se o fato dele ter permanecido ali, sentado ao seu lado, era bom ou ruim. Talvez ela não fizesse a mínima diferença, e ele a ignorasse solenemente.

- Pára com essa choradeira estúpida, sua trouxa! – ele rosnou sem ao menos se virar para ela.

Heloísa se recostou novamente na árvore. Embora as lágrimas ainda teimassem em cair, sentiu seu coração sorrir ligeiramente.

”Ele não era tão indiferente, afinal.”

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.