Um litro de lágrimas



24. Um litro de lágrimas


 


Os flocos de neve, quando caem, são todos diferentes uns dos outros. Não existem dois flocos de neve que sejam iguais. Os flocos de neve não são como as poções, que sempre são as mesmas e funcionam igual – quando dão errado, é porque o bruxo fez alguma coisa diferente: ingredientes imprecisos, um milímetro de erro no corte, uma torção errada do pulso ao mexer... - , eles são uma arte imprevisível.


 


Infelizmente, outras coisas na vida também eram assim.


 


A doença de Luna era a mesma que a de sua mãe... mas, no caso de Gerda, ela se manifestara mais tarde – ninguém sabia dizer o por quê – e havia progredido com menos violência. Se fosse um sistema exato, o Leukos iria progredir na mesma intensidade e velocidade em todas as pessoas, e o fato de não sê-lo era uma faca de dois gumes: claro que podia significar que havia chance da doença se retardar mais e mais... mas também queria dizer que ela podia avançar de forma avassaladora.


 


No caso de Luna, o que ocorria era a segunda opção.


 


Ela havia se recusado a deixar a escola – parte por querer viver uma vida normal, parte por esperar o milagre, parte por querer se manter o mais próxima possível de Draco -, mas o destino não estava disposto a fazer disso uma escolha para ela.


 


A última vez em que visitara Guinevere, havia topado com Malfoy na porta. Aquela visita se destinava justamente a manter sua posição de não abandonar Hogwarts, e o inesperado encontro apenas fortaleceu sua decisão e espírito. Uma pena que não pudesse fazer o mesmo por seus ossos.


 


Concentrar-se nos estudos distraía Luna, fazia com que se sentisse útil, de modo que foi um baque duplo – físico e psicológico – a traição de suas pernas.


 


Estava na biblioteca. Folheva o novo livro – Água para Borboletas, 17º na lista de autores ingleses, 20º na lista européia -, mas decididamente não conseguia se concentrar. Seus olhos percorriam as linhas e não conseguiam assimilar o sentido. Ela não sabia se isso era devido ao estilo rebuscado do texto ou aos seus pensamentos, que sinalizavam que Draco poderia estar por ali (já haviam trocado sua tarefa “voluntária”?), mas o fato é que a leitura não estava rendendo. “Bem, sempre posso continuar depois” pensou ela, ao mesmo tempo em que procurava na memória a explicação para alguns volumes não serem emprestados de lá e refletia se deveria pular aquele, se fosse o caso.


 


Mas, quando foi se levantar, suas pernas falharam por um segundo, como se fosse uma boneca subitamente sem corda. Luna apoiou-se na mesa, vacilante, tentando se firmar em pé. Para sua surpresa, descobriu que isso era muito difícil.


 


“Oh, meu Merlin”, pensou ela, assustada. Tentou soltar as mãos do apoio, mas não conseguia ficar em pé direito sem elas. “Pareço uma marionete solta das cordas”...


 


Irma Pince ergueu as sobrancelhas por detrás do grosso aro de seu óculos de leitura. Não sabia exatamente o motivo, mas havia recebido um memorando para ficar de olho em Luna Lovegood para qualquer coisa estranha... e aquilo era definitivamente estranho. Será que a pressão dela havia caído? Decidiu ir com ela até Madame Pomfrey. Ou, melhor ainda, mandar seu ajudante até lá – Irma detestava a idéia de deixar seus livros sozinhos. Tinha por eles o mesmo carinho que algumas pessoas tem por gatos ou cães. Era uma dor física, literalmente, que a acometia quando pensava no que estranhos poderiam fazer com eles. Por ela, nenhum volume sairia da biblioteca. Nem mesmo seriam manuseados, se fosse possível. Os desejos das pessoas não precisam fazer sentido, aliás, quase nunca faziam.


 


Foi atrás de Draco, que estava entretido em dormir (acidentalmente) por cima de alguns livros. Dormia tão profundamente que quase babava. Em cima de seus preciosos livros, percebeu Irma. Em cima da terceira edição de “Noite Dos Dados Mentirosos”, notou, crispando os lábios e fazendo uma careta de ódio que facilmente se passaria por uma transfiguração em dragão. Respirou fundo; haveria tempo para aquilo mais tarde.


 


Pegou Malfoy, adormecido, pelo colarinho, e o colocou em pé, ao mesmo tempo em que brigava com ele e lhe dava ordens – de modo que Draco acordou numa confusão completa, mista de susto, horror e da dor de ser subitamente sacudido. O estado confuso durou até ele ouvir, vagamente, “Luna”  e “”enfermaria”, entre alguns xingamentos e informações (ou seriam ameaças?) de dispensa do local.


 


Piscou os olhos, ainda se sentindo mole mas subitamente alerta, e caminhou apressado até a mesa das coleções especiais. Luna havia se sentado no chão, apoiando as costas no pé da cadeira mais próxima. Era a primeira vez que Draco percebia aquela expressão nela.


 


- Luna – disse ele, abaixando-se e pegando a mão dela. – O que aconteceu? Você caiu?


 


- Não – respondeu ela, a ponto de chorar. – Foi muito pior, eu... eu... eu não consegui andar...


 


- Como?


 


- Minhas pernas – disse ela, agora efetivamente começando a derramar as lágrimas – elas não me obedeceram, não conseguiram sustentar meu corpo, elas, elas... eu... eu não consegui... andar até a estante...


 


Draco abaixou-se mais, abraçou-a forte.


 


- Vem, segura em mim.


 


Uma vacilante Luna, sustentada por ele, levantou-se aos poucos do chão. Não estava mais tremendo, mas só conseguia andar com apoio – fosse Draco, fosse a parede. Ela estava assustada, era perceptível a uma milha de distância.


 


Caminharam abraçados até a enfermaria, e Draco sequer reparou na expressão de Pansy Parkinson e algumas outras garotas, que estavam com ela, quando passaram diante da escadaria onde estavam. Sua mente estava em outro lugar, e se concentrava em não chorar.


 


“Mantenha-se firme, Draco, seu palerma, ao menos uma vez seja um lugar seguro para alguém se apoiar. Se você mostrar que está perdido, ela vai se perder também. Ela precisa de um apoio, seja forte, seja o porto seguro dela.”


 


Madame Pomfrey não pareceu surpresa ao vê-los se aproximar. Ao contrário, deu apenas um sorriso triste. Murmurou para que ela se acomodasse onde mais gostasse e saiu para buscar Guinevere Lovegood D’Yarma. Se estivesse certa – e ela dificilmente estava errada -, muito em breve Luna teria de ser transferida de lá, onde os equipamentos e poções simples não seriam de grande serventia para ela. Conhecimento, às vezes, era um fardo.


 


Draco ajudou Luna a deitar-se na cama próxima à janela (ela se recusou a ser colocada lá por ele, como se fosse uma boneca de pano), as costas apoiadas em diversos travesseiros e uma almofada em formato de avelã (o que fazia ali?) e puxou uma cadeira para perto dela. Luna estava chorando.


 


- Ganhou daqueles Weasel no método para matar aula, parabéns, Lovegood – disse ele, simulando um sorriso. Mas seus olhos diziam que não via a menor graça.


 


Luna respirou fundo. Levou a manga do uniforme até os olhos, para secá-los (o suéter estava por baixo desta vez). Foi um movimento incrivelmente lento. Draco fingiu não perceber a demora, mesmo sentindo agulhas por dentro. Mas que justiça afinal existia?


 


- Desculpe por isso, Draco. Eu só... acho que foi meio como um tapa na cara, no meio da cara, avisando com toda a força que eu posso fingir o quanto quiser, mas não sou uma menina normal...


 


- O que tem de anormal com você? – disse Draco, elevando a voz sem querer. – Desculpe, é só que... acho que estou cansado das pessoas acharem que tem alguma coisa errada com você, Luna. Você é perfeita. Não se esqueça disso. Por favor.


 


Ela esboçou um sorriso. As bochechas estavam coradas, de choro e de esforço.


 


- E o que acontece agora? – perguntou ela.


 


- Não sei. Acho que vamos descobrir. Você está com medo? – perguntou ele.


 


- Morrendo – admitiu ela, baixando os olhos. - É engraçado, que eu achei que estava preparada para isso, eu sabia que ia acontecer cedo ou tarde... mas, pelo visto, eu não estava.


 


Draco se levantou, aproximando-se dela.


 


- Só o que eu sei é que não irei embora. Então nem pense nisso.


 


- Não me parece muito... justo, eu só...


 


- Quem decide isso sou eu.


 


- Eu... eu estou feliz – disse ela, olhando para ele. – eu fico feliz de você estar aqui, ao meu lado. É só que é tão... difícil admitir a minha condição. Assim, a plenos pulmões. Quando as minhas pernas falharam, eu... me pareceu que não havia mais volta.


 


- Não seja estúpida, ainda há muito caminho e tratamento pela frente.


 


- Mas...


 


- Não desista. Eu não vou deixar. Não desista de lutar. Da vida. De tudo. Por você. Por mim.


 


- Dizem que... que você tem que chorar um litro de lágrimas até conseguir aceitar uma situação difícil. Vai ver eu só não cheguei lá ainda – disse ela, sorrindo apesar das lágrimas escorrendo.


 


Draco abraçou-a, e mentalmente pensou quanto faltaria para ele chegar à um litro de lágrimas e dor.


 


Encostou os lábios com suavidade nos dela, tentando extrair do toque suave toda a força que tinha de encontrar em algum lugar.


 


Envergonhado, percebeu que por mais frágil e debilitado que estivesse o corpo de Luna, era de lá que nascia toda a sua força.


 


Não era justo.


 


Tinha de haver algo que pudesse fazer.


 


 


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N/A: esse ditado do litro de lágrimas realmente existe no Japão.


 


Dessa vez o Draco realmente pesou a mão na fofura e gracinha, mas não estou nem aí. Nessa situação específica, me parece exatamente o que ele faria.


 


Coitadinha da Luna. É sempre difícil perceber essas coisas, admitir para si mesma o que está acontecendo, tentando aceitar mesmo sem compreender. Acho que ela mesma tomou um susto, não teve mais como fingir que era um assunto distante dela, que iria chegar “um dia”, e não “agora”... (mas quem poderia culpá-la por pensar assim?).


 


Não tenho muito o que dizer desse capítulo, na verdade. Estou dolorida por eles.


 


Mas claro que é sempre feliz perceber que ele definitivamente não vai deixá-la, não importa o quanto custe – e parece que será um preço bem alto, afinal.


 


A reação do Draco, quando soube, foi apenas de choque. Só depois percebeu as implicações, e só depois delas decidiu como agir. E eu adorei a atitude dele! Espero que todos vocês também. Nos vemos no capítulo 25!

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