Interlúdio: Doravante&Outrora



23. Interlúdio: Doravante & Outrora


 


 


Quando era menina, Gerda havia ganho um  livro de uma amiga bem mais velha. Um livro trouxa, chamado “O Morro dos Ventos Uivantes” (e como eles poderiam conhecer os mistérios da montanha que gemia sempre havia sido um mistério para ela). Era uma história intensa, pesada, cheia de paixão, tristeza e sangue – mas o que mais lhe chamava a atenção era o fato da história acontecer duas vezes, começando de novo com o mesmo sangue.


 


Isso sempre a fazia rir. Afinal, qual era a chance disso realmente acontecer? Quem iria repetir os mesmos erros a ponto de ver uma história se desenrolar exatamente igual, passo a passo, sem fazer nada a respeito? Ela não conseguia entender. E nunca chegou a perceber a trapaça que o destino havia preparado para ela.


 


Gerda era uma bruxa de descendência alemã, mas não uma família influente, e sim de refugiados da guerra – uma estúpida guerra trouxa, que acabara atingindo o mundo mágico e fazendo com que alguns bruxos, em geral os mais desafortunados, tivessem de abandonar tudo e recomeçar do zero em terras mais distantes. A família de Gerda havia sido uma dessas, e era essa a razão dela ter nacionalidade inglesa, apesar do forte sotaque e dos cabelos incrivelmente loiros.


 


Trabalhavam muito e ganhavam pouco. Como muitos, faziam truques nas ruas e nos bares dos trouxas para conseguir algumas moedas. Gerda não havia estudado em Hogwarts, e sim numa escola temporária de refugiados, com bruxos de todo tipo de nacionalidade.


 


Talvez por sua convivência com os trouxas, que na ausência de poderes bruxos enxergavam o mundo com sua própria magia, talvez pela necessidade de escapar da realidade brusca, talvez sem motivo algum exceto ter nascido assim, Gerda sempre havia, nas palavras de sua mãe, “vivido em outra sintonia”. Ela sempre parecia buscar alguma coisa que mais ninguém podia ver, uma característica que a tornava, apesar de constantemente distraída, extremamente doce. Havia uma aura de aconchego quase palpável em torno dela, como mil mantas de lã e um chocolate quente no dia mais frio do ano.


 


Era também extremamente inocente. Seu pai costumava dizer que, se ela fosse uma ovelha, o lobo a levaria para dentro de casa e lhe daria um chá enquanto explicava porque exatamente ela não deveria confiar em estranhos como ele. Gerda atraía proteção.


 


Havia se tornado enfermeira e, ainda que não ganhasse muito dinheiro com isso, conseguia se manter. Foi no hospital que conheceu Hegbert. Ele havia chegado com algum tipo de reação alérgica à alguma erva, e observado a garota enquanto a medicação agia.


 


Percebeu que muitas pessoas chegavam, interrompiam seu trabalho e pediam à ela todo tipo de coisa, desde remédios até dinheiro, e ela sempre entregava, todas as vezes, incluindo de sua própria carteira (na verdade, um pequeno saco fechado com uma corda). Decidiu ir ter com ela.


 


- Com licença – dissera Hergbert. – Você não deveria fazer isso. Nem metade dessas pessoas realmente precisa do que estão lhe pedindo. Estão só abusando da sua boa vontade. Não seja idiota a esse ponto.


 


Gerda olhara para ele, intrigada. E então dissera:


 


- Bem, talvez você tenha razão. Mas se entre todas elas apenas uma realmente precisar do que lhe entreguei, então acho que já terá valido a pena. Qualquer um pode desconfiar dos outros, mas nem todos podem confiar. E de repente confiar era tudo o que alguém precisasse.


 


Ela sorriu e caminhou pelo corredor, deixando Hegbert intrigado. Ouviu uma voz às suas costas então:


 


- Ah, vejo que já conheceu a Gerda! – disse um rapaz, que ele descobriu ser o medibruxo-chefe da seção. – Não se espante, ela é assim mesmo. Cheguei a pensar que ela era maluca, mas é perfeitamente normal... ou tão normal quanto ela pode ser. É meio avoada, mas nunca deixou de atender as necessidades de nenhum paciente, e todos os internos melhoram excepcionalmente com os cuidados dela. Apesar dela ser meio boba, e muitos se aproveitarem dela...


 


- Você acha? – dissera Hergbert, sério. – Você acha que ela é boba? Eu acho que ela é incrivelmente forte, de ser assim em um mundo como esse. Quase ninguém consegue ser assim. Eu não tenho vontade de rir dela.


 


O medibruxo silenciara, sem resposta.


 


A poção fez efeito, mas Hegbert não deixou o hospital quando melhorou. Esperou horas, até que Gerda passasse por ali novamente, e então jamais a deixou partir.


 


Ele era jornalista de um concorrente do Profeta Diário nessa ocasião. Casou-se com Gerda, e após três verões tiveram uma filha, a quem chamaram de Luna. E então acontecera.


 


Subitamente, Gerda começara a se sentir fraca. Nenhum médico sabia dizer o que ela tinha. Consultaram diversos especialistas, em diversos países, até que um teste ainda experimental revelou o problema de Gerda: Leukos, o sangue branco. Uma doença que ia clareando o sangue pouco a pouco, até que ele se tornasse completamente branco e frio.


 


Estava matando-a aos poucos. Pouco a pouco seu sangue ia perdendo a cor, deixando de atender suas funções vitais, deixando-a fraca, sem conseguir se mover. Gerda estava sendo traída por seu próprio organismo.


 


Hegbert ficara arrasado. Havia tentado todo tipo de coisa para salvá-la, mas nada parecia surtir efeito. Gerda, com toda a sua doçura, nunca reclamou. Apenas aceitou. Apenas chorou por abandonar Luna tão cedo. Por ficar longe de seu amado. Nunca chorou por si mesma.


 


Até o fim, Gerda apenas se preocupou em tentar tornar tudo melhor para sua família, as pessoas que mais amava no mundo inteiro.


 


Conforme ia ficando mais e mais fraca, e percebendo que se aproximava A Grande Viagem (como ela chamava), dedicara todo o seu tempo a aprisionar no papel ao menos um pouco de si e, esperava, da alegria de Hegbert.



Escrevera uma mensagem, sua última mensagem, pedindo que pensasse nela. “Think of me... think of me foundly, when we say goodbye...” . Uma mensagem de amor. Uma mensagem que pregava a harmonia, que compreendia que tudo na vida tem ciclos, ainda que o dela tivesse sido tão curto...


 


Hegbert lera e chorara. E concordara. Ela era, realmente, algum tipo de anjo. Nada mais faria sentido. Um dia, Gerda partiu. Nem antes nem depois do que precisava, mas cedo demais para ele – e quando não seria cedo demais, afinal?


 


Abandonou seu emprego e criou uma revista independente, “O Pasquim”, explorando todo um mundo que antes apenas Gerda parecia conhecer. Talvez tivesse mudado. Talvez fosse apenas uma maneira de se manter mais perto dela, de tudo o que restara dela, mas ainda assim...


 


E os anos haviam passado. Luna havia crescido, linda, tão parecida com a mãe, e ao mesmo tempo com traços tão diferentes, traços que só poderiam ser dele. Era uma mistura perfeita, e ele a amava mais do que tudo.


 


E então acontecera. Dez anos depois. O mesmo Leukos. O mesmo branco assombrando sua vida. A medicina bruxa havia progredido. Haviam remédios. Remédios que haviam funcionado, apenas como uma isca para derrubar mais fundo seu coração – haviam combatido o sangue branco por um ano, dois, três... e então, haviam parado de funcionar. E seria apenas uma questão de tempo até a doença avançar e ele poder apenas diminuir suas dores.

Era estranho como nunca doía menos.


 


Luna havia crescido com histórias de sua mãe, na ausência dela em pessoa – fotos, relatos, suas roupas, seus livros, seu caderno. E foi numa última homenagem à sua mãe que havia decidido interpretar sua peça, colocar um sopro de vida em suas palavras, tentando assim  revivê-la aos olhos do mundo, já que ia partir... e, é claro... dar um presente a seu pai...


 


A princípio, todos estavam confiantes na medicação, que afinal de contas estava funcionando – “É fogo de dragão e mandrágora. Forte. Não tem como dar errado!”. Mas tivera. E assim, Dumbledore, Minerva, Snape, todos foram informados do suficiente para ficar de olho em Luna. Deram acesso à Guinevere D’Yarma e compreenderam sua importância e papel ali. Todos esperaram que as doses e misturas cada vez maiores fizessem efeito, mas apenas Dumbledore soube que não estavam mais tendo sucesso. Ele guardou para si. Ele também não sabia o que fazer, exceto respeitar as vontades de Luna e... esperar por um milagre. Um milagre que não sabia se viria.


 


Hegbert, agora sozinho em sua casa, parecia muito mais velho do que realmente era, com o peso de duas vidas apoiadas em suas costas. Gerda... ele ainda podia se lembrar do sorriso dela. Não havia nem um dia em que ele não pensasse nela e sentisse sua falta.


 


Sentia sua falta consigo, sentia falta dela por Luna. E agora, mais do que nunca, se sentia cansado e sozinho, sem braços que o envolvessem e espantassem a solidão daquela situação. Ofereceria sua vida de bom grado em troca de seus anos para Luna... mas não havia ninguém a quem oferecer isso.


 


E havia o menino Malfoy.


 


Uma parte ciúme paterno, uma parte de conhecer a família dele (ao menos pelos jornais), mas Hegbert não havia gostado nada daquela história. Mesmo quando começou a admitir que ele podia ser um bom rapaz, continuou não gostando dos rumos, que ele conhecia bem. E fora por causa dele que havia tido sua primeira briga de pai e filha.


 


 


“Afaste-se dele” – dissera à Luna. – “você não pode fazer isso, Luna.”


 


“Olhe para mim! Eu cresci! Pare de me tratar como criança!”


 


“Então pare de agir como uma criança!!”


 


“Você só quer que ele se afaste de mim, para não ter que me dividir com ninguém!”


 


“Luna. Você precisa contar a ele. Não é justo.”


 


“Você só quer que ele me deixe!”


 


 


Hegbert sentia seu coração se apertar toda vez que se lembrava dessas frases. Que bom seria se ele não estivesse de todo certo...!!!


 


Estava tão triste.


 


Pegou um velho calhamaço de folhas amareladas pelo tempo, os originais na caligrafia inclinada de Gerda do “Espírito do Vento”. Apesar de tudo, ela sempre parecia estar ali com ele. E só Merlin ou quem quer que fosse sabia o quanto ele precisava da presença dela nesses momentos difíceis.


 


 


 


“Think of me, think of me fondly,


When we've said goodbye.


Remember me once in a while -


Please promise me you'll try.”


 


(Pense em mim com carinho


Quando nos despedirmos


Lembre-se de mim de vez em quando


Por favor, Prometa-me que irá tentar)


 


 


“Think of me, think of me waking silent and resigned


Imagine me, trying too hard to put you from my mind


 


Recall those days, look back on all those times


Thinks of the things, we'll never do


There will never be a day, when I won't think of you”


 


(Pense em mim, quando acordava Silenciosa e resignada


Imagine me esforçando para afastá-lo de meus pensamentos


 Lembre daqueles dias, Relembre aquela época


Pense nas coisas que nunca faremos


Nunca haverá um dia Em que eu não pense em você)


 


 


 


Releu. Suspirou. Lembrou-se de Luna cantando os versos, docemente, perto do Natal, tantos meses atrás.


 


Ele tinha certeza que a mensagem de Luna era diretamente para Draco. Assim como um dia havia sido para ele.


 


O destino fazia dessas coisas. Hegbert lembrou-se daquele velho livro, com a capa em pedaços, que sua esposa havia ganho de uma colega inglesa. Pensava se Gerda tinha como saber do que estava acontecendo ali embaixo – porque ele tinha certeza que ela estava acima. Era o único lugar possível para almas elevadas como a dela.

"Lembra que o plano era ficarmos bem?" - podia ouvi-la, com sua voz meio rouca.

Às vezes era tão difícil...

 


 


 


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Este é um capítulo gigantesco e sem nexo.


 


Não estava previsto originalmente, mas quando dei um nome à mãe da Luna (nem procurei o verdadeiro, já que estava usando Hegbert mesmo), achei que ela merecia uma personalidade. Uma história, talvez. Deu nisso aqui.


 


Não sei se ficou muito bom, mas não é também o cerne da história, é apenas... para localização. Para enxergarem melhor a Luna, seu pai, o universo que a cerca, a paixão dela pela mãe, pela vida, por tudo. A música que mudei da peça de teatro também espero que esteja claro o motivo... e que concordem que ela é uma escolha adequada pros caminhos que dei à fic.


 


Eu nunca li o Morro dos Ventos Uivantes, mas me lembro que minha prima disse isso: que o mocinho e o filho dele vivem a mesma história. Por isso usei aqui, se estiver errado, considerem licença poética, por favor.


 


“Interlúdio” é como chamam o espaço entre dois atos de uma Ópera. Bom, acho que podem considerar que ele “divide” a fic entre antes e depois da doença da Luna ser revelada, apesar que ela está acabando (se não surgirem mais capítulos extras como esse!). Doenças não tem uma data certa e, no caso da Luna, aconteceu antes do que com sua mãe... acontece.


 


Espero que ele tenha ajudado a entender melhor a posição de Hogwarts e, somando este com o outro, as atitudes da Luna (mas ainda vou explorar mais a fundo a diferença que o Draco fez assim mesmo).


 


Bem, é isso.


 


Talvez ele tenha surgido como uma desculpa pelo anterior, de que não gostei muito. Mas a bem da verdade, espero que tenham gostado da minha versão meio torta e clichê dos Lovegood.


Uma curiosidade: eu originalmente pensei em fazer da Gerda uma porra-louca, rebelde sem causa com um pé "hippie", alguém que viajava nas forças da natureza ao mesmo tempo em que tinha largado a escola, fugia de guardas, enfrentava inimigos (talvez comensais, talvez pessoas que falsificassem varinhas...). Nessa versão, ela teria se acalmado com a maternidade, e daí ficado doente. Mas acabou que ela preferiu ficar assim, mais calminha, etérea e, se é que é possível, mais distraída e viajada (!) que a Luninha. E com uma resignação celestial... a Luna está tendo muito mais dificuldade que ela em aceitar a sua situação, tanto que tenta viver o máximo possível em menos tempo, fazendo sua lista, lendo os livros... Gerda apenas tentou confortar o marido, se anulando e colocando-o em primeiro lugar com Luna. E, é claro, a visão de mundo dela influenciou totalmente a sua filha (não é sempre assim?). 


 


Até o cap. 24, com mais Draco, Luna, e algumas mudanças inevitáveis no quadro dela.


 


 

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