Capitulo 2



CAPÍTULO II





Ao vivo e em cores, Hermione Granger era o supra-sumo do refinamento, do elegante ves­tido branco ao absurdo par de tênis, ela representava puro charme.


Não era esnobe, egoísta ou mimada como Harry imaginara a princípio. Estava nervosa, claro, porém, parecia divertir-se com a nova experiência. Ela tagarelava sem parar, fazendo-Ihe perguntas na velocidade de um raio.


Goste de seu trabalho?


Sente-se atraído pelo perigo?


Já levou algum tiro?


Como assim, algumas vezes?


Com os longos cabelos castanhos ao vento, Hermione exigia cada detalhe. Harry meneou a cabeça em negativa, assumindo uma expressão solene.


— Acho melhor não falarmos desse assunto. Ele me traz péssimas recordações. — Tratava-se de mais uma ficção. Na realidade, tinha tanto orgulho dos ferimentos de guerra, que guardava em sua casa as três balas que lhe foram extraídas. No entanto, Harry pressentia que seria impossível dissuadir Hermione Granger a voltar para os braços seguros do irmão.


— Sinto muitíssimo — ela desculpou-se, constrangida. — Não queria abrir nenhuma ferida.


— Sem problemas — Harry murmurou. Era raro encontrar-se em situações embaraçosas, mas Hermione Granger o perturbava sobremaneira. Ela exalava total entusias­mo, usando as mãos para se expressar e tendo o rosto sorridente iluminado pela luz amarela do painel. Não havia aspectos artificiais, muito menos presunção. Tratava-se da mesma mulher que ele vira brincar com as ondas, tal qual uma criança. Aquela era a verdadeira Hermione Granger. Parte menina, parte mulher e, aparentemente, sedenta por uma vida de aventuras e perigo. Apesar da vasta experiência, Harry jamais cruzara com uma mulher como ela. Começou, portanto, a preocupar-se.


— Não devia avisar algum parente? — ele indagou, de súbito. — Alguém que possa estar muito preocupado com sua ausência?


— Não. Deixei um bilhete, caso ele me procure. Disse que precisava me ausentar por algumas horas.


— Seu marido? — Harry perguntou, imaginando ser a atitude mais lógica.


— Não. Meu irmão, Adam. Somos apenas nós dois.


— Então, ele vai enlouquecer de preocupação quando descobrir que você saiu — Harry argumentou, tentando despertar culpa. — Não quero ser impertinente, mas... há quanto tempo está fora de casa?


— Não sei. — Hermione riu. — Umas duas ou três horas.


— E, nesse tempo, ficou sem gasolina, foi assediada por um bêbado e forçada a aceitar a carona de um estranho. E uma ficha e tanto, não acha?


— Aceitei a carona — ela apontou, na defensiva —, porque você é um policial.


— Tanto faz — Harry resmungou, frustrado. — Meu ponto é, se tudo isso lhe aconteceu em duas ou três horas, o que ocorreria em alguns dias? Suponho que não tenha o hábito de sair sozinha. Estou certo?


— Eu poderia me aventurar com mais freqüência do que você imagina.


— Nesse caso, não se esqueceria de verificar a gasolina, é claro. E também saberia onde está e aonde vai.


Por um instante, Hermione considerou a questão.


— Tem razão. Foi uma atitude impulsiva. Mas estou adorando o passeio.


— Sério?


— Claro. Eu acabei encontrando você — ela confessou, ruborizada. — É a pessoa mais interessante que já conheci.


— Sua vida deve ser bem solitária. O que, a propósito, vai deixar seu irmão ainda mais preocupado. São muito amigos?


— Sim e não. Nós nos amamos, mas não nos sentimos... confortáveis com nossas vidas. Adam tem sido um pai para mim há muitos anos e isso o está consumindo. Faço o que ele manda a fim de poupar-lhe dissabores.


— Faz o que ele manda? Isso explica tudo. Seu irmão deve tê-la obrigado a dirigir pela Flórida no meio da noite.


— Muito engraçado. Não é crime passear.


— Duvido que ele veja a situação por esse ângulo.


— Como pode saber? Você não o conhece. Portanto, não tem base para opinar.


Harry cerrou os dentes, irritado. A jovem milionária não estava cooperando. Ele não tinha experiência em lidar com mulheres teimosas e aquela situação o frustrava.


— Não pretendo iniciar uma discussão. Sei quando uma pessoa está extrapolando. Você precisa voltar para casa e refletir.


— Não estou extrapolando — Hermione rebateu. — Pelo amor de Deus, você é pior que Adam.


No fundo, Harry queria gritar que não se assemelhava, em nada, a Adam Granger. Entretanto, controlado, justificou-se:


— Sou homem e sei como os homens protegem as pessoas que amam. E tenho mais experiência de vida que você.


— Por esse motivo é que fiquei contente em conhecê-lo — Hermione exclamou, tocando-lhe o braço. — Você surgiu em um momento oportuno. Eu me sentia triste esta noite, porque meu aniversário está próximo e... bem, não sei o que fazer. De repente, você apareceu e lutou com alguém para me defender. Nunca esquecerei sua bondade.


— Não romantize a situação — Harry retrucou, incomodado com o toque gentil de Hermione. — Não lutei para defendê-la. Só esmurrei um bêbado. Eu devia tê-lo deixado mais alguns minutos com você. Talvez, assim, resolvesse voltar para casa.


---- Você fala como se fosse um guarda-costas ou algo parecido. — Hermione cruzou os braços, insatisfeita. — Precisa conhecer meu irmão. Estou certa de que serão grandes amigos.


Impaciente agora, Harry quase esbravejou. Mas se conteve a tempo.


— Tanto faz.


— Você repete muito isso.


— O quê?


Tanto faz. E sempre o diz resmungando.


Hermione fez uma careta para imitá-lo. Estava completamente alheia à expressão engraçada que ensaiava. Mais uma faceta de sua personalidade para acrescentar ao fascinante repertório, Harry concluiu.


Sorrindo, ele voltou a atenção à estrada. Precisava manter o foco em seus objetivos básicos. Nunca misture negócios com prazer, esse era seu lema. Hermione representava trabalho. Tra­balho, trabalho, trabalho.


O sorriso cresceu, a despeito dos esforços. Permitiu-se uma rápida espiadela nas faces rosadas e na curva dos lábios. Ela não fazia idéia de como os cabelos castanhos cintilavam à luz, tampouco percebia o efeito que aquela boca causava em Harry. Até o perfume, uma fragrância sutil, impregnava-se por todo o carro. O sangue de Harry começou a ferver.


— Fique frio — ele murmurou, fitando a estrada.


— Como? — Hermione perguntou.


— Nada.


— Primeiro foi tanto faz, agora é nada. — Hermione recostou-se no banco. — Alguém já lhe disse que tem dificuldades de co­municar os sentimentos?


— Na verdade, não. Em geral, sou ótimo para comunicar... meus sentimentos. Pelo menos, foi o que me disseram.


— Suponho que não se refira à comunicação verbal.


— Suponho que não.


Dominada por uma repentina fadiga, Hermione fechou os olhos. Não estava acostumada a grandes emoções. Sua figura frágil, refletida no vidro da janela, parecia indefesa.


— Creio... — ela bocejou e tapou os lábios, como uma dama deveria fazer — que esteja arrependido de...


Harry esperou e, como não escutasse mais nada, deduziu que ela caíra no sono. Num piscar de olhos, pensou: primeiro, Hermione falava feito um papagaio e, em seguida, adormecia como um anjo. Deu-se ao luxo, então, de fitá-la, fascinado com os cabelos que acariciavam o pescoço alvo.





Ela despertou com as batidas infernais de uma música.


— Não há maneira pior de acordar — Harry brincou.


Piscando algumas vezes, Hermione olhou ao redor e notou que encontraram-se em um posto de gasolina. Harry havia estacio­nado ao lado de uma bomba, atrás de um jipe, que emitia aquele barulho ensurdecedor.


— Dormi por muito tempo? — Ela se espreguiçou. — Onde estamos?


— Você dormiu durante uma hora. — Harry desligou o motor. — E não sei onde estamos. Tivemos sorte de encontrar um posto aberto no meio da noite. O tanque deste carro está quase na reserva.


Harry ficou grato por haver um telefone público no posto. Tinha de ligar para Adam e assegurar ao pobre homem que a irmã estava bem e a salvo.


— Preciso ir ao banheiro. Por que não enche o tanque? Pedirei um galão de gasolina ao vigia.


Ele se afastou antes que Hermione tivesse a chance de dizer que jamais enchera o tanque de um carro.


Mas havia certa vantagem nisso, pensou. Harry devia achá-la uma perfeita idiota; logo, não precisava reforçar tal opinião.


Teria apenas de acrescentar combustível ao carro. Quão di­fícil isso poderia ser?


Hermione saiu do veículo, estremecendo ante a música do jipe. Não era Chopin, mas tudo fazia parte da experiência. Atenta, observou um adolescente descer do jipe, abrir a pequena portinhola do tanque e inserir a extremidade da mangueira no buraco. Voilà.


O adolescente olhou para ela e sorriu.


-- Ei! — cumprimentou-a.


-- O quê? — Hermione rebateu, pelejando com a tampa do tanque.


— Nada de mais, morena. Está com problemas?


A tampa não abria.


— Não — ela resmungou, puxando-a. — Acho que isto está emperrado.

         -- Você não conseguirá abri-la sem a chave. Do contrário, qualquer um poderia roubar sua gasolina — explicou o rapaz. Depois de destrancá-la, gire a tampa.

         -- Que chave? — Hermione perguntou, incerta.


— Está brincando? Nunca encheu o tanque de um carro? Nossa!


— Não deste carro em particular — Hermione confessou parte da verdade. — Pode me mostrar como devo fazer?


— Posso mostrar o que você quiser. — O garoto a abraçou pelos ombros, guiando-a até a porta do motorista. — Pegue a chave da ignição. Isso. Agora vamos voltar ao tanque para que eu faça uma demonstração. — Ele a guiou com paciência. — Coloque a chave e gire a tampa. Exato. Insira a mangueira e aperte este botão. Viu? É fácil. Qual é seu nome?


Hermione encarava a mangueira, temendo que a gasolina transbordasse.


— Meu o quê? Oh, é Hermione. Obrigada pela ajuda.


— Sou Jeff.


— Adeus, Jeff.


— O que uma boneca como você está fazendo aqui às duas da madrugada?


— Esta coisa vai parar sozinha?


— Pobre criança. Quem a abandonou na escuridão cometeu um grave erro. Sim, a mangueira vai parar automaticamente. — O garoto acariciou o braço de Hemione. — Você me deve um favor. Tem telefone?


— Todo mundo tem telefone — ela respondeu, recuando.


— Que tal você me dar o seu?


— Que tal eu adotá-lo como filho? — Hermione o encarou como se o rapaz fosse um inseto desprezível. — Adeus, Jeff.


— Não está interessada?


— Não. Mas guardarei lembranças maravilhosas de você pelo resto da vida.


O adolescente ergueu as duas mãos.


— Azar seu, morena.


— Vamos conversar sobre o azar — Harry interveio.


De tão entretida na mangueira, Hermione não notara a aproximação de Harry. Ele carregava um galão de gasolina, que colocou diante de Jeff.


— Há vários tipos de azar — Harry prosseguiu, sarcástico. — Você pode ter o azar de perder um dente e, por conseqüência, sentir muita dor. Já perdeu algum dente, garoto?


O semblante ameaçador de Harry fez Hermione postar-se entre os dois.


— Isso não é necessário. Ele estava me ajudando a pôr gasolina no carro.


— Tanto faz — Harry enfatizou.


— E ela precisava de ajuda — o adolescente argumentou. — Não sabia manusear a mangueira, por isso eu a ajudei. Pergunte a ela se não acredita em mim.


Aflita, Hermione confirmou a história.


— Certo, garoto. Pode ir embora.


Jeff não esperou nem mais um segundo. Entrou no jipe, parou para pagar a gasolina e desapareceu na estrada, cantando os pneus.


— Você não sabia mesmo encher o tanque? — Harry perguntou, irado.


— Se soubesse, eu teria passado por um vexame desses? — Hermione esbravejou. — Era apenas um menino. Não precisava assustá-lo. Você já foi adolescente, não?


— Nunca. — A frustração era tão grande que ele almejava a oportunidade de socar algo ou alguém. Adam tinha acabado de atender a chamada, quando Harry avistou Hermione em outra enrascada. Afobado, desligara o telefone para socorrê-la. — O que há com você? Não aprendeu na primeira vez? Não fale com estranhos!


— Jamais falo com estranhos! Não conheço nenhum estranho.


— Por que espero obter lógica de você? — Harry perguntou, exasperado. — Hermione, aquele garoto era um estranho. O bêbado que a abordou na estrada era um estranho. Droga, eu sou um estranho! Não devia falar com nenhum de nós. Entendeu?


— Você é policial. Não corro perigo a seu lado.


— E se eu fosse um policial malfeitor? Já pensou nisso? Não pode confiar em qualquer um que encontre, ou nunca mais voltará para casa. Aprenda com seus erros.


A essa altura, Hermione não sabia se preferia chorar ou estapeá-lo. Antes que pudesse erguer a mão, as lágrimas começaram a brotar.


-- Não precisa gritar comigo. Já passei por muitos apuros esta noite, sem ter de agüentar sua grosseria. Está exagerando. Não sou sua responsabilidade. Sei que não... entendo certas coisas, mas não sou estúpida. Leve-me até meu carro e siga seu caminho.


— E você irá para casa? — Harry persistiu, comovido com as lágrimas.


— Quando eu quiser, irei — ela rebateu, recusando-se a fraquejar como Jeff. — O que pode levar meses a partir de agora!


Em silêncio, Harry contou até dez.


— Entre no carro.


— E se eu não entrar?


Ele deu dois passos à frente e baixou a cabeça, quase tocando aqueles lábios carnudos.


— Vou obrigá-la a me obedecer, nem que eu tenha de usar a força.


— Você não se atreveria.


— Ah! Querida, atrevimento é meu sobrenome.


Durante uns vinte segundos, ambos se entreolharam, de­safiadores. Hermione empinou o corpo para confrontá-lo, mas o movimento sutil diminuiu a distância entre eles. Chegou a sentir os próprios lábios roçando os dele, e um calor súbito a envolveu. Em algum lugar das profundezas de sua mente, ela desejou mais.


Por fim, Harry recuou, abriu a porta do carro e a empurrou para dentro do veículo. O desejo estava explícito naqueles au­tênticos olhos castanhos. Mesmo porque era o que ele também queria.


Mais.


Enfim, concluiu que seu salário não valia o sacrifício daquele trabalho.


O lado positivo da história foi que o bêbado, que Harry es­murrara, tinha desaparecido quando chegaram ao local onde Hermione havia abandonado o Porsche. O negativo era que o veículo dos Granger não mais estava lá.


— Oh, meu Deus — ela sussurrou, boquiaberta. — Será que me distraí a ponto de deixar a chave...


— ...no contato? — Harry completou. Se fosse emotivo, ele teria caído em prantos àquela altura. — Caso não saiba, proprietários de automóveis caros e luxuosos não costumam deixar a chave na ignição.


— Não sou debilóide, quer você acredite ou não. Jamais deixei a chave na ignição, mas, em tais circunstâncias, foi difícil raciocinar. Aquele homem hediondo, que supostamente roubou meu carro, deixou-me apavorada. — Hermione calou-se, piscou algumas lágrimas. — O que mais pode dar errado esta noite?


Apesar da frustração, Harry queria apagar o olhar triste de Hermione.


— Veja o lado bom, garota. Ele lhe deixou uma caminhonete velha. Você pode vender as partes em algum desmanche.


— É a primeira vez que isso me acontece.


— Bem-vinda ao mundo real. E agora?


— Bem... preciso de outra carona.


— Outra carona?


— Até um telefone — ela explicou. — Podemos tomar a direção de Palm Beach e parar no primeiro telefone público que encontrarmos. Vou ligar para Adam e depois você poderá seguir seu rumo.


— Parece que estou vivendo um pesadelo e não consigo acordar — Harry murmurou. — Você é tal qual um tornado, criando estragos aonde quer que vá. Sinto pena de seu Irmão.


— Meu irmão não perceberá minha ausência até amanhã de manhã. — Os lábios de Hermione tremiam. — E não há motivos para ser rude. Todos somos especialistas em determinadas áreas.


— É verdade. Tive a impressão de que está acostumada a depender dos outros, mas creio que me enganei. Qual é sua especialidade?


Hermione parou para refletir. O que iria dizer? Que era especialista em usar cartões de crédito?


-- Minha especialidade não é da sua conta. Basta dizer que tenho uma. Várias, aliás.


Harry expressou um sorriso terno. Era extremamente difícil zangar-se com ela. Na época em que trabalhara como policial disfarçado, ele acreditara ter visto de tudo, mas jamais havia encontrado uma mulher tão espirituosa e com tão pouca ex­periência de vida


De certa forma, Harry a invejava. Como seria desconhecer o lado obscuro do mundo e esperar sempre o melhor das pessoas? A doutrina que seguia era não alimentar ilusões ou expectativas para não se decepcionar. Embora não fosse uma escolha cons­ciente, considerava-se um desiludido desde que nascera.


Quando Harry tinha dois anos, seu pai saíra para comprar cerveja e nunca mais retornara. A mãe trabalhara dia e noite para vesti-lo, alimentá-lo e completar o curso de enfermagem. Ela dera o melhor de si, mas não tivera tempo ou recursos para protegê-lo da realidade. Cinco anos após formar-se como enfermeira, ela descobrira a leucemia. Falecera depois de quatro agonizantes meses com Harry em seu leito de morte.


— Sinto muito — ela havia dito, antes de dar seu último suspiro. Harry suspeitara na ocasião de que a mãe havia se desculpado por tê-lo colocado no mundo.


Desde então, ele vinha criando o próprio destino. Muito cedo, decidira enxergar a vida como um jogo perigoso. E assim apren­deu a sobreviver. Sempre esperava o pior dos adversários e às vezes, desapontava-se. Em seu mundo, a inocência era uma fraqueza. A pureza estava extinta e o idealismo representava um defeito. Tais atitudes podiam matá-lo.


O mundo não era um lugar seguro. Por que algumas horas com Hermione Granger o fazia pensar que encontraria um arco-íris? Achou-se um idiota, mas continuou a observá-la, devorando-a em pensamento. Ela sentou-se no banco de passageiro e bateu a porta, bufando.


— Eu só queria dar um passeio de carro — resmungou. — Sem Adam, sem Beau, sem motorista...


— Espere um minuto. Quem é Beau?


— Um amigo. Eu desejava apenas um momento de total solidão, livre de escolta e ansiedade alheia. Somente um pas­seio, nada mais.


Contudo, Harry sentira o tom de medo e derrota na voz dela. Surpreso, ele descobriu que estivera enganado quanto aos mo­tivos de Hermione. Não se tratava de uma atitude rebelde contra a existência privilegiada. Era algo bem diferente. Notou uma gota de lágrima rolando pela face delicada.


Harry estava habituado a lágrimas. Esposas, mães e namo­radas de criminosos haviam chorado diante dele várias vezes. No entanto, fora treinado para oferecer apoio profissional, o que bloqueava o sentimento genuíno. A bem da verdade, era famoso por seu total desprendimento emocional.


Frio calmo e controlado sob quaisquer circunstâncias.


— Podia, por favor, parar com isso? — ele pediu, aflito.


— Com o quê?


— Chorar. — Harry pegou um punhado de guardanapos de papel que havia recolhido na loja do posto. Era o tipo de homem que sempre carregava uma arma, em vez de um lenço. — Assoe o nariz pense em coisas boas. — Agora falava como Mary Poppins.


— Desculpe-me. — Hermione enxugou as lágrimas. — Você não tem nada a ver com meus problemas. Poderia me levar a um telefone para que eu ligue para Adam e acabe logo com esta situação ridícula? Como diz o ditado, tentarei outro dia.


— Tentará o quê?


— Por que quer saber? Se minha vida está por um fio, não é da sua conta. O importante é se livrar de mim.


— Lá vem você com esse drama. De que está falando?


— Esqueça — ela murmurou.


— Escute, Hermione. Você se encrencou hoje e não creio que esteja familiarizada com encrencas. Dadas as circunstâncias, vou levá-la até sua casa.


— Não sei onde estou exatamente, mas acho que o trajeto é longo até Palm Beach. — Ela o encarou, desconfiada. — Você não me parece muito animado em minha companhia. Por que insiste em me levar para casa?


Aquele era um terreno conhecido para Harry. A profissão de detetive lhe oferecera uma vasta experiência em improvisações.


— Ora, eu não disse que o serviço seria de graça. Você deve saber que policiais não ganham bem, mas...


— Entendo. — Hermione reconheceu o brilho das cifras naqueles olhos verdes. — Se eu lhe pagar, vai me ajudar?


— Não sou esse tipo de homem. Você pode contratar meu carro alugado por um preço.


Hermione puxou os cabelos para trás. Era magnífica, Harry pen­sou, quando ofendida. Viu-se envolvido por um certo remorso ante o que teria de fazer.


— Por um instante, pensei que viveria a melhor experiência de minha vida — Hermione comentou. — Que tola eu fui.


— O que é isso, mulher? Hoje aprendeu a encher o tanque e gasolina. É uma experiência única para uma princesa pa­paricada como você.


— Incomum — ela o corrigiu. — Você, entretanto, não é. Quanto um policial em férias cobra para bancar o samaritano? Não é barato, imagino.


Após trinta e três anos de árdua sobrevivência, Harry de repente viu-se mergulhado em emoções conflitantes. Não queria que ela o achasse oportunista, mas a pobre menina rica perderia o fascínio pela aventura se ele a levasse para casa. Não haveria alternativa, a não ser dispensar o trabalho de guarda-costas. Adam Granger fora bem claro ao afirmar que a irmã não poderia saber que era vigiada vinte e quatro horas por dia.


Portanto, aquele seria o início e o fim de seu contato com Hermione Granger. A palavra "fim" nunca soara tão dolorosa como agora.


— Apenas a gasolina, princesa — Harry respondeu, evitando fitá-la. — E uma gorjeta, quando eu entregá-la sã e salva, será bem-vinda. Você determina o valor. Combinado?


— Aceita cheque?


— Claro. Pegue o mapa no porta-luvas e vamos a Palm Beach.


— Para que o mapa? Dirija a esmo e engorde sua recompensa — Hermione sugeriu, irônica. — Não sou tão ingênua quanto pareço. Na verdade, sou especialista em gastar muito dinheiro.


Harry fechou os olhos para conter a vontade de retrucar. Claro, seria uma péssima atitude, já que estava na folha de pagamento dos Granger.


Resmungando, ele ligou o motor e manobrou o carro. A gar­ganta ardia, tamanha era sua frustração. Jamais sentira-se tão impotente na vida.


— Tanto faz — esbravejou. — Coloque o cinto. Vou levá-la de volta a seu castelo, princesa.




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