Capitulo 3



CAPÍTULO III





Harry Potter tinha uma ótima desculpa para se perder. E esta encontrava-se sentada a seu lado. O perfume feminino, uma sutil combinação de rosas e loção de bebê, fluía com a brisa da noite. Tudo em relação a ela parecia invadir o interior do automóvel; os suspiros, os movimentos leves e até a vivida aparência de cansaço que oprimia os olhos castanhos.


Hermione perdera a vontade de conversar e manteve-se mergu­lhada nos próprios pensamentos e questões. Harry não podia recriminá-la. Afinal, não a tratara com muito apreço. Ela se recusava a olhá-lo e o silêncio significava tudo, menos paz.


De quando em quando, arriscava olhares fugidios, fascinado pela alma indefesa. Hermione representava o oposto dele: uma de­licada fantasia repleta de curiosidade, inocente e desprotegida. Não havia ninguém semelhante a ela em Oakland.


Depois de uma hora dirigindo, por razões desconhecidas, ele ligou o rádio e percorreu as estações até encontrar uma canção melancólica que combinasse com seu humor.


Acima de tudo, Harry era realista. No entanto, tal premissa não importava naquele momento. A menos que estivesse enga­nado, a placa que avistara na estrada indicava a saída para Gator Getway. Em momento algum, vira indicações a Palm Beach. Não era de seu feitio agir dessa maneira.


— Você viu? — Hermione perguntou, rompendo o silêncio. Harry fingiu surpresa.


— O quê?


— A placa que acabamos de passar. Dizia "Saída para Gator Getway", não?


— Ah, aquela placa. Sim, eu vi. Você usa perfume de rosas?


— Não tente mudar de assunto. — Hermione pegou o mapa e abriu-o. — Onde estamos...? Oh, está de cabeça para baixo. Gator... Gator... Não consigo achar essa cidade. Tem certeza de que sabe aonde ir?


— Tenho absoluta certeza de que não sei onde estamos. Mas sei exatamente onde estávamos.


— Estamos perdidos! — Hermione exclamou com certa satisfação. — O garoto-maravilha está perdido. Perdido, perdido, perdido. E agora enveredamos por um lugar qualquer onde os jacarés se reúnem. O que tem a dizer sobre isso?


— Escolha uma palavra de quatro letras, a mais feia de todas. É isso que tenho a dizer. — Harry não estava disposto a visitar o lar dos jacarés. Se não fosse pela escuridão e pelo matagal, seria capaz de localizar-se.


Situações como aquela não aconteciam na selva de concreto. As rodovias davam em algum lugar na Califórnia, e não eram obscurecidas por plantas exóticas ou neblina. Harry sempre fi­cava preso em algum engarrafamento, mas, através das placas, sabia que direção tomar. E, quando o estresse do tráfego tor­nava-se insuportável, ele usava seu game boy para se distrair.


Porém, nenhum jogo eletrônico podia ajudá-lo naquele mo­mento. Tinha o pressentimento de que deveria acionar uma estratégia de emergência.


— É sua culpa — disse a Hermione, irritado.


— Como?


— Você não sabe o que me fez passar esta noite. — Ele não pretendia contar-lhe quão perfumada era e que pernas lindas tinha, embora tais detalhes aumentassem o estresse. — Jamais me perdi na Califórnia. Como vocês conseguem viver em uma floresta? Onde estão as vias expressas? Prefiro en­frentar a violência urbana a confrontar jacarés na Flórida. Isso, se ainda estivermos na Flórida. Tenho minhas dúvidas.


— Está brincando? Não sabe em que Estado estamos? — Hermione olhou pela janela. — Não consigo ver nada. Nem casas ou luzes. Nunca é tão escuro em Palm Beach. Há boates funcionando durante a noite. Estou com medo. Faça alguma coisa.


— O que quer que eu faça? Sou humano. Não posso ver o mapa e dirigir ao mesmo tempo. A Flórida é seu Estado, sou apenas um turista. Você devia conhecer a região. Há quanto tempo mora aqui? Vinte e cinco anos?


— Vinte e três — ela corrigiu. — Quase. E a maior parte desse tempo passei na Inglaterra. Com exceção dos meses em que viajei pela Itália. E nos verões eu ia à França. Mas Adam insistiu para que eu terminasse a escola preparatória na Suíça e...


— Como são as escolas preparatórias da Suíça?


— Bem, você aprende traquejo social e... Esqueça. Acredite, meus conceitos são totalmente diferentes dos seus.


— Pode apostar. Então você foi à Suíça para se "preparar", mas não conhece a Flórida, assim como eu. Que ótimo. O que pretendia, afinal? Na próxima vez em que decidir passear de carro, tome um ônibus.


— Por isso, você levou tantos tiros. Não sabe se comportar — Hermione o criticou.


— Policiais que trabalham disfarçados são famosos pela má educação. A grosseria faz com que as pessoas queiram matá-los.


— É pena você não ser patrulheiro. Do contrário, seria mais gentil e saberia ler um mapa. Seu estilo está fora de moda, aliás.


Um momento de pura tensão se passou antes que Harry se atrevesse a falar.


— Infelizmente, para você, não sou patrulheiro. Agora que estou irritado, é melhor ficarmos alguns minutos em silêncio.


— Nós não...


Silêncio.


Ao ver o perfil severo de Harry, Hermione engoliu a réplica. O semblante taciturno sugeria que ele havia perdido o senso de humor. Nunca havia testemunhado uma demonstração tão vio­lenta de testosterona. Nas raras ocasiões em que perdera a fleuma, Adam somente afrouxara o nó da gravata.


No entanto, uma parte maldosa de Hermione queria ver Harry perder de vez a calma. Fascinada, ela fitou os cabelos negros e rebeldes. Havia uma cicatriz sobre a sobrancelha; no mínimo, uma recordação de alguma perigosa façanha. As mãos apertavam a direção e ele mantinha os olhos atentos à estrada.


De alguma forma, sabia que as emoções de Harry estavam à flor da pele. O intrigante era que ela própria o levara ao comitê. Nunca tivera influência nenhuma sobre os homens. Harry conhecia a realidade da vida; ela, não.


E, contudo, Hermione conseguira tirá-lo do sério. Seria então sua primeira batalha na guerra entre os sexos? Teria ela vencido?


— Por que está fazendo isso? — Harry perguntou, de repente.


— Fazendo o quê? — Ela desviou o olhar.


— Está me encarando.


— Como sabe? Você nem sequer estava olhando para mim.


— Percebo tudo que você faz.


Aquele homem possuía um jeito muito peculiar de perturbá-la.


— Não quero conversar — ela murmurou.


A civilização encontrava-se logo à frente. Pelo que Harry pôde ver, haviam chegado a uma combinação de parque temático e hotel. O painel de néon dizia "Gator Getway" e somente dois carros estavam estacionados diante da hospedaria.


— Você assistiu àquele filme chamado Psicose? — Hermione indagou, arregalando os olhos. — Este lugar é assombroso.


— Trabalhei na Califórnia, lembra-se? Nada é mais assombroso que Los Angeles. Além do mais, não posso dirigir. Estou exausto.


Na verdade, Harry poderia ficar mais três dias sem dormir, mas precisava entrar em contato com Adam Granger. E, sobretudo, descobrir onde estavam. Por mais independente que fosse, tinha de pedir auxílio.


— Creio que meus recursos financeiros são limitados — Harry confessou, antes de sair do carro. — Você e seus cartões de crédito devem resolver o problema.


— Evidente. Esqueci que você é o empregado. — Hermione pegou a bolsa e desceu do veículo, irritada. Acompanhou Harry à recepção do hotel e quase gritou ao avistar o homem atrás do balcão.


Não havia sombra de dúvida. Ele era a reprodução perfeita de Anthony Perkins, que representara o assassino do filme Psicose.


— Precisamos de dois quartos — Harry anunciou.


— Lamento — Anthony Perkins replicou, bocejando. — Estamos lotados. Só temos um quarto de solteiro, se quiser.


Harry ficou tentado a mostrar sua insígnia. Mas, sendo uma atitude ilegal, optou por guardá-la para emergências.


— Pelo que pude ver, você tem dúzias de quartos e dois automóveis parados no estacionamento. Os hóspedes vieram em um carro apenas?


— A maioria vem de trailer e estaciona os veículos atrás do prédio. Mantemos somente dois quartos disponíveis em bai­xa estação, e um deles foi ocupado há uma hora.


— Não podemos esperar até amanhã — Hermione interferiu. — Precisamos dos cômodos agora. Pago o dobro.


— Pague o dobro, se quiser, mas minha Margie só arruma dois quartos na baixa estação e não vou acordá-la às três da madrugada para providenciar acomodações. Tenho um quarto vago.


Hermione ficou perplexa. Em sua limitada experiência, o dinheiro sempre resolvia problemas.


— E se eu pagar três vezes o valor da estada?


O recepcionista bufou e encarou Harry.


— Ela é surda?


— Não. É rica, o que é muito pior. Ficaremos com o de solteiro.


— Espere! — Hermione exclamou. — Se você pensa...


— Vou dormir no chão — Harry avisou-a. — Não se apoquente.


— Não estou apoquentada. E não seja condescendente comigo.


— Não são casados — o recepcionista deduziu. — Parabéns, amigo. Ela é linda, mas arrogante demais.


— Nem imagina quão arrogante — Harry replicou, observando a fúria de Hermione. — Tudo que fiz foi ajudá-la porque seu carro quebrou e, quando dei por mim, estava selado a uma granada loira.


— Como na guerra — comentou o homem.


— A chave do quarto, por favor. — Hermione jogou o cartão de crédito no balcão. — E agradeceria se não falassem de mim como se eu não estivesse presente.


— Tudo bem. Não me incomodo de dizer que é irritante, senhora. Vão ficar no quarto número três, segunda porta à esquerda,


— Como disse? — Hermione perdeu a calma por completo. — Sou sua hóspede, embora não tenha compreendido o fato. Por menos que isso, meu advogado...


— Quarto número três. — Harry calou-a, tapando-lhe os lábios. — Obrigado. Assine o recibo, Hermione. Boa menina.


Hermione assinou, resmungando.


— Que mulher geniosa — o recepcionista retrucou. — Ela me faz gostar ainda mais de minha Margie. Pegue a chave, colega. E boa sorte.


Harry assentiu, ainda tapando a boca de Hermione. Podia sentir os lábios se mexendo, fervorosos.


— Muito obrigado. Vou precisar de toda a sorte do mundo. Agora é melhor tirá-la daqui antes que ela me morda.


A raiva de Hermione transformou-se em espanto quando entrou no quarto número três. Embora conhecesse muitos hotéis quatro estrelas, nunca vira uma pocilga como aquela. As acomodações eram chocantes. O cômodo minúsculo exalava odor de pinho e não possuía mobília, somente uma cama, um gaveteiro e uma cadeira de plástico. Não havia televisão, frigobar ou trufas de chocolate sobre o travesseiro. No entanto, um jacaré sorridente fora desenhado na parede.


— E tão... diferente — ela comentou, encarando o jacaré. — Já viajei o mundo inteiro, mas nunca vi nada semelhante a isto.


Harry a observava com extrema atenção. Os imensos olhos castanhos estavam lívidos de curiosidade e apreensão, absorvendo cada detalhe. Ela era tão linda, tão encantadora naquele vestido cintilante e com o ridículo par de tênis. O corpo pequeno inspirava perfeição e os cabelos sedosos emolduravam o rosto de porcelana. Cada pensamento era revelado através da expressão facial. Hermione não sabia dissimular como Harry.


Após três ou quatro horas, ela o tinha na palma da mão. Ninguém jamais o afetara com tanta força e tão pouco esforço. A despeito da vasta experiência, não entendia como aquela mulher havia conseguido isso.


Fitou a cama de solteiro, coberta apenas por uma colcha. Repreendeu-se em pensamento e mirou as cortinas surradas da janela.


— Já estive em lugares piores — comentou.


— Meu Deus! — Hermione exclamou. — Quão pior?


Muito pior. — Harry passou a mão pelos cabelos, encarando o telefone de disco sobre a mesa de cabeceira. A única maneira de contatar Adam seria pelo celular que deixara no veículo.


— Vou lá fora trancar o carro. Volto logo.


— Irei com você.


— Posso fazê-lo sozinho.


— Tenho certeza de que pode, mas não gosto da idéia de ficar sozinha neste quarto, olhando para aquele jacaré.


— Pensei que apreciasse novas aventuras — Harry considerou.


— Minha quota de aventuras se encerrou por hoje. Aliás, acho que você correria menos risco se deixasse o carro destrancado.


As fortes emoções que vivera nas últimas horas recaíram sobre ela em forma de uma repentina fatiga. Pelo jeito, o pobre Adam teria de esperar mais um pouco, Harry pensou, notando a aparência pálida de Hermione. Escolher entre o sossego de Adam e o bem-estar de Hermione era tarefa fácil.


— Certo. Vamos dormir. Mais algumas horas não farão diferença.


— O que quer dizer? — Hermione irritou-se. — Está ansioso para se livrar de mim?


Harry não podia responder. Sem saber a razão, não queria contar outra mentira a ela. Quanto mais tempo passava com Hermione, menos vontade sentia de devolvê-la ao irmão.


— Não foi o que quis dizer. Responda-me uma coisa — ele acrescentou, com o objetivo de distraí-la. — Desculpe-me a indiscrição, mas... você sempre se veste assim?


— Assim como? — Confusa, ela fitou o vestido. — O que há de errado? É um Versace. Nunca se está malvestida com um Versace.


— Não me referi ao vestido. Esses tênis são uma excentricidade dos ricos ou uma moda hippie?


Intrigada, ela inclinou a cabeça.


— Tirei o salto alto antes de sair de casa. Meus pés estavam doendo. Diga-me, o que é uma moda hippie?


Ela era adorável. Primeiro, agia tal qual uma sereia obediente; depois, transformava-se em uma colegial curiosa. Interessava-se por tudo, uma qualidade que Harry achava rara e irresistível. Como gostaria de responder a todas as questões!


— Tenho de ir até o carro — ele alegou, necessitando de ar puro.


— Vou com você.


— Na verdade, acho melhor tomar um banho frio... quente para relaxar, antes de me deitar no chão. — Tinha certeza de que ela não o seguiria ao banheiro. Além disso, Harry necessitava de tempo para pôr as idéias no lugar. Pressentia que Hermione precisava de outro guarda-costas para protegê-la daquele que a protegia. — Ou será que prefere ir primeiro?


— Não, obrigada. — Partilhar um espaço tão diminuto era constrangedor, mesmo em se tratando de camas separadas. Funções corpóreas,não faziam parte da rotina de Palm Beach. — Fique à vontade. Farei minha toalete depois.


Sem mais palavras, ele entrou no banheiro e fechou a porta. Hermione esquadrinhou o quarto, como se a ausência de Harry estagnasse o tempo. Caminhou devagar pelo cômodo, pegou a Bíblia, leu o folheto de Gator Getway e, corajosamente, fitou a foto dos jacarés.


Então, sentou-se na cama e escutou o som do chuveiro.


— Harry — sussurrou só para ouvir a própria voz dizendo o nome.


Fechou os olhos, visualizando a água deslizando pelos músculos bem definidos. A imaginação era tão limitada quanto a experiência, mas, ainda assim, perdeu a compostura. Percebeu a súbita tensão que a dominou.


Ele era muito diferente dos homens que ela conhecera até então. Havia uma marcada sensualidade em Harry, um vigor rústico misturado ao charme de renegado. Os olhos tornavam-se mais verdes quando ele sorria.


Hermione tocou os próprios lábios, tentando reviver a sensação do toque acidental. Uma irresistível curiosidade começou a nas­cer desde então. Ela sentia tantas emoções ao mesmo tempo que seu interior parecia criar nova vida. E, por intuição, sabia que tudo era causado por um único homem.


O barulho do chuveiro cessou de repente. Hermione voltou à realidade, tirou os tênis, o vestido e deitou-se sob a coberta apenas de lingerie. Harry saiu do banheiro com uma toalha enrolada à cintura. Os cabelos negros estavam molhados e os olhos, ainda mais expressivos. O quarto encheu-se de uma sensualidade perigosa, que tanto a assustava quanto perturbava. Por um instante, ela se esqueceu de respirar.


— Você só tem olhos, garota — Harry comentou. — Parece um coelho apavorado, enfrentando um lobo. Espero não precisar dizer que...


— Não precisa — Hermione adiantou-se, cobrindo-se até o queixo. — Sei que estou perfeitamente segura.


— Se eu tivesse com que dormir...


— Não se preocupe. Também não tenho nada e estou... — a voz falhou — confortável. Na verdade, estou vestida. Não me interprete mal. Só tirei meu...


— Não vamos conversar sobre o que você tirou — Harry sugeriu. Pegou um cobertor no armário e o estendeu no chão. — Pode me emprestar um travesseiro? Obrigado. Boa noite.


— Harry?


Ele já estava enrolado no cobertor, tentando não se concen­trar em Hermione.


— Sim?


— Alguém tem de apagar a luz. Se fechar os olhos e prometer não espiar, eu...


— Deve estar brincando — Harry resmungou e levantou-se, enrolado no cobertor. — Não estamos na escola. "Prometer não espiar" não faz parte do meu vocabulário. — Ele pousou a mão sobre o interruptor de luz.


Hermione esperou. A mão de Harry continuava imóvel.


— O que foi?


Harry respirou fundo e a fitou. Os olhos verdes a observavam como se ela fosse a criatura mais fascinante do universo.


— Queria dar mais uma olhada em você — ele respondeu. O quarto ficou escuro. Hermione escutou-o deitar-se novamente no chão. Sentiu os seios túrgidos e a pele tão quente quanto as chamas do fogo. Ninguém jamais lhe dissera algo parecido sem artifícios. Tais palavras nunca tiveram um impacto tão profundo. Estava atônita; viu-se envolta por uma nuvem sensual. Adormecer nunca foi tão difícil.



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