UM CAMINHO CLARO



Gina andou receosa por algumas câmaras. Deu prioridade aquelas que estavam mais claras. Em hipótese alguma queria se arriscar na escuridão profunda. Seus joelhos tremiam, mas ela estava determinada: Draco tinha cuidado dela de uma forma que ela não esperava; tenro e carinhoso. O mínimo que ela podia fazer era retribuir o que ele havia feito.

Foi então que um alçapão se abriu e ela caiu em uma câmara escura. O breu tomava conta de tudo a sua volta. Sem pensar duas vezes sussurrou “Lumos” e sua varinha acendeu. Foi então que ouviu um guincho e um baque seco. “Não estou sozinha nessa câmara” pensou. Recuou alguns passos beirando a parede. O que quer que fosse, estava do outro lado da sala. Quanto mais ela se aproximava, mais o animal guinchava, desesperado. “Nox” sussurrou novamente e tudo voltou a ficar escuro. Ouviu um bater de asas, sentiu uma respiração pesada e vi um par de olhos vermelhos. “Lumos!” Quando a varinha acendeu novamente a criatura estava a poucos metros dela. Ela soltou um grito horrorizada, enquanto o animal buscava novamente as sombras. Ela pôde perceber então que a câmara era pequena, e que dava para ver o animal. “Ele já foi um homem” , ela pensou melancólica enquanto o observava. Devia medir no máximo 1,75 metro, tinha as feições de um homem e cabelos pretos ensebados. Por outro lado, tinha um par de olhos vermelhos e asas de morcego.

— Quem é você? – Ela perguntou trêmula. Ele não respondeu, apenas soltou um gemido triste. Ela perguntou novamente três vezes.

— Sou alguém com fome. – Ele respondeu pausadamente, uma voz de monstro. – Esse cheiro... Sangue!

— O que você é?

— Ah... – ele sorriu e ela pôde ver a fileira de presas grandes e afiadas – uma boa pergunta. Por que não apaga essa luz? Assim posso me aproximar?

— Só se eu estivesse louca. – Ela disse determinada e ele soltou um grito agudo de agonia. – Você sabe para onde levaram a pessoa que estava comigo?

— Tem outro aqui? – Ele perguntou arregalando os enormes olhos vermelhos. – Ninguém caiu aqui, apenas você.

— Você tem certeza disso? – Ela deu alguns passos para frente, mostrado a varinha.

— Eu só fico nessa câmara. – Ele respondeu tentando se esconder. – Como pode ver, não tenho a menor condição de ficar na claridade. Me colocaram nesse lugar há muito, muito tempo.

— Acontecem coisas estranhas nessa pirâmide.

— Mais do que você pode imaginar. – Ele disse novamente, dando os ombros.

— Quem o colocou aqui?

— Por que tantas perguntas?

— Acabei de ver o maior inimigo da população bruxa antiga renascer. Preciso saber o que está acontecendo nesse lugar.

— Eles conseguiram? Eles conseguiram fazer com que Seth ressuscitasse?

— Parece que você ficou feliz.

Ele se jogou em cima dela, fazendo com que a varinha caísse no chão e rolasse para longe. A segurou pelo pescoço.

— Há tempos eu não sinto cheiro de carne fresca. – ele disse cheirando-a do pescoço até os cabelos. – Cheiro bom. – Depois a olhou no fundo dos olhos e disse – Eu não sou essa criatura malévola como você supõe. Eu já fui um de vocês. Não quero que o mundo acabe e nem fiquei feliz com a notícia que você me deu. Tudo que eu queria era voltar a ser o que um dia eu fui.

Ela o olhou e sentiu pena. Ele parecia ser sincero.

— Você poderia por favor me soltar? – ele a estava sufocando – Vamos fazer um trato. Me ajude a sair daqui que eu te ajudo a voltar a ser um bruxo.

Ele jogou a cabeça para trás, como se fosse dar uma gargalhada.

— E o que me garante que você voltará?

— Você tem a minha palavra.

— Olha, não é nada pessoal. Mas a sua palavra não vale nada.

— Como assim, não vale nada? – Ela disse ofendida. Foi então que enfiou a mão dentro da blusa e tirou uma correntinha – Eu lhe dou esse cordão. – Ela pegou o pingente de coração e o abriu. De um lado, a família Weasley sorria e acenava. Do outro, ela, Harry e Hermione. – Essa é uma das coisas mais importantes da minha vida. Essas são as pessoas que eu mais amo na minha vida.

Ele segurou o cordão e o olhou atentamente. Podia sentir o desejo iminente de perfurar aquela carne macia e cheirosa com seus dentes. Mas ele ainda era um pouco humano, e queria continuar sendo.

— Está vendo aquela rocha, à esquerda? É falsa. Mas eu não sei o que você vai encontrar do outro lado, sei apenas que é muito claro.

Gina se aproximou da rocha sem dar as costas para o homem-morcego. Encostou a mão na rocha e sentiu que era possível empurra-la para trás. Um fio de luz inundou a pequena câmara, e ela viu o homem se encolher. Sussurrou um muito obrigada e deixou que sua vista acostumasse novamente com a luz.

Sentou no chão, sentindo a cabeça tonta demais. Não conseguia entender, mas estava fora da pirâmide, o que justificava a luz tão forte. Ela olhou para trás, viu a rocha e pensou em voltar. O que faria? Não tinha idéia. No impulso voltou correndo e empurrou a rocha de volta.

— Você tem um nome? – Ela disse olhando destemida para o homem-morcego.

— Andrew. – Ele respondeu desconfiado.

— Pois bem Andrew. Nós dois vamos sair daqui. Me ajude a subir. – Dizendo isso ele se aproximou e ajudou que ela alcançasse o alçapão por onde tinha caído. Ela chegou no segundo andar novamente, mas pôde perceber que a pirâmide tinha se mexido. A sala era diferente. Mas ainda assim era escura. – Andrew, a câmara aqui em cima é escura. Vou te ajudar a subir. – Ela deitou no chão e estendeu a mão. – Venha!

Os dois olharam ao redor. Novamente, o escuro. Gina mal conseguia enxergar um palmo na frente do nariz, mas nesse ponto Andrew foi sensacional. Ele a guiou por todo o aposento.

— Obrigado por me ajudar – Ele disse de repente.

— Você também está me ajudando.

Nesse minuto ele a segurou pelo braço, suas unhas perfuraram a delicada pele dela.

— Estou ouvindo alguma coisa. – Ele prestou mais atenção. – O seu amigo está em perigo.

Gina olhou para o seu braço e viu que o sangue escorrer. O olhar dele ficou fixado no sangue e rapidamente ela colocou a mão para estancá-lo.

— O que aconteceu com a sua mão?

— O Jack. Ele a cortou e usou meu sangue para ressuscitar o antigo faraó. É uma longa história.

— Vamos. – Ele disse fechando os olhos.

Ele a pegou pela mão e os dois foram andando dentro da câmara. De repente ele soltou a mão dela e voou até o alto da câmara. Encostou o ouvido na parede.

— Ele está ali. – Disse indicando a parede oposta. – Mas não sei como vamos passar para lá.

— Eu sei. – Gina viu um buraco na pequena parede. – Acho que eu consigo passar por ali. – Olhou para as asas de Andrew. – Mas acho que você não. Me espera aqui.

Ele a olhou e sorriu. Tinha certeza que ela voltaria.





Gina engatinhou e passou com dificuldade pelo buraco. Abriu os olhos e viu Draco, ensangüentando e ferido no centro da câmara. Um vento frio lhe cortava o rosto e ela olhou para frente: apenas uma ponte a levava até ele. O resto era um vão aberto. Ele estava com as mãos amarradas no alto da cabeça e parecia sofrer muito.

— Draco! – Ela gritou e ele olhou para frente.

— Gina. Foi o Jack! O professor! – Ele gritou desesperado – Foi ele! – A olhou novamente e gritou - Não olhe para baixo. Em hipótese alguma, não olhe para baixo.

Ela se perguntou o por que e se sentiu tentada a olhar. Mas o desespero no olhar dele era tanto que ela preferiu ignorar. A ponte era estreita e escorregadia. Draco acompanhava cada passo que ela dava com um nervosismo transparente. Foi então que ela pisou em falso e escorregou. Foi nesse instante que olhou para baixo. Dezenas de obeliscos rastejavam no fundo do imenso poço. Por sorte, nenhum deles a encarava, pois caso contrário ela teria morrido no mesmo instante. Ela fechou os olhos e se levantou, tomada de terror.

— Obeliscos Draco. São dezenas de obeliscos.

— Eu sei Gina, há horas escuto todos sibilando. Com certeza sentiram cheiro de sangue. E com certeza estão com fome. Foi o Jack Gina. Eu sei.

Ela terminou de atravessar a ponte e o abraçou. Desamarrou as mãos dele que estavam presas e o beijou ternamente na testa.

— Ele ressuscitou Seth. – Mostrou o corte. – E usou o meu sangue para fazê-lo. O perigo é maior do que imaginávamos.

— Pettigrew está aqui também. – Ele disse sombrio – Foi ele quem me amarrou.

— Eu sei. Ele usou a poção polisuco. Se transformou em você. Eu o matei.

Draco ergueu a sobrancelha e deu um meio sorriso.

— Quer dizer então que você ia me matar sua louca?

— Claro que não! Eu sabia que não era você!

— Sabia nada! Se ele era eu, você me matou.

— Podemos discutir isso depois? – Ela disse se levantando. – Estamos em uma pirâmide, sozinhos, estou com um amigo-morcego do outro lado dessa parede. Ele vai nos ajudar a sair daqui. Na verdade, eu encontrei uma saída. Todo o mundo corre um imenso risco.

— Você fez um amigo-morcego na pirâmide? – Ele perguntou desconfiado.

— Eu cai em um alçapão enquanto te procurava, ele tentou me comer, mas aí resolveu que não ia e... – Ela o olhou e ele estava com os olhos arregalados – Eu te conto quando a gente sair daqui. Você está sangrando muito.

— Estou impressionado. Você parece a Branca de Neve, quando não tem ninguém para conversar faz amizade com os animais, as pedras, as criaturas do mal.

— Draco, por favor, a situação não está nem um pouco boa para o nosso lado. Pode deixar o sarcasmo e a ironia de lado pelo menos por alguns instantes?

— Vou me esforçar.

— Obrigada. – Ela disse se levantando e o ajudando a se levantar.

Ela olhou para a pequena ponte, por onde tinha passado há poucos minutos e foi então que soltou um grito. Um dos obeliscos, faminto, estava subindo lentamente pela parede. Era arriscado demais atravessar a ponte, pois a qualquer minuto ele estaria lá. Gina se virou para Draco e os dois ficaram de costas para o obelisco, que já tinha conseguido chegar na ponte.

— O que vamos fazer? – Ela perguntou.

— É uma boa pergunta. – Ele fechou os olhos e, sem pensar duas vezes, tirou o imenso casaco. – Quando Pettigrew me arrastou até aqui não foi por essa ponte que ele me carregou. Viemos pelo outro lado. Ali! – Ele apontou para o outro lado – Está vendo? Uma passagem! – Pegou o casaco e o colocou no chão, metade em terra firme e a outra metade no ar.

— O que está fazendo? – Ela perguntou desesperada.

— Tem uma ponte aqui, tenho certeza. Ele não me trouxe voando. Ela deve estar invisível. – Foi então que o casaco ficou metade em terra firme e a outra metade voando. Mas na verdade, não estava voando. Estava na ponte. – Achei! Achei! Venha!

— Rápido, o obeslisco está se aproximando!

Draco colocou a mão pouco depois do casaco e sentiu medo: a ponte só existia onde houvesse algo no qual pudessem pisar.

— Gina, tire seu casaco. – Ele disse enquanto tirava a camiseta. Ela o olhou intrigada e entregou o casaco. Ele colocou a camiseta depois do casaco e o casaco dela depois da camiseta. Aos poucos, viu a ponte se formar. – Vamos ter trabalho. Eu piso na camiseta, você no casaco. Eu piso no seu casaco, você pega o meu, pisa na camiseta. Vamos ter que andar devagar.

— Tempo é uma coisa que nós não temos, Draco. Olhe! – A imensa cobra estava praticamente na ponte.

O medo fez com que eles andassem relativamente rápidos. Quando estavam no meio da ponte, que devia ter no máximo oito metros, o obelisco estava chegando no final da ponte visível. Eles deram mais alguns passos e a cobra armou o bote, com certeza não queria mais perder tempo. Draco escutou um barulho, a pirâmide começava a se mexer novamente. Olhou para a passagem e viu que ela ia se fechar. Olhou para trás e segurou Gina pela mão.

— Nós vamos pular no três.

— O que??!!!

— Um, dois três!!

Os dois pularam e se agarraram ao pequeno penhasco perto da passagem. Draco subiu, agarrou Gina pela mão e os dois a atravessaram. Quando olharam para trás, o obelisco estava no ar, com a boca aberta e os imensos dentes a mostra.

A passagem se fechou, prendendo a cabeça da imensa cobra. Ela abriu a boca, tentando morder um dos dois jovens. Mas eles já estavam longe. Sem tomar nenhum cuidado, Draco entrou na primeira porta que já estava quase se fechando.

— Acho que conseguimos. – Gina falou colocando a mão no peito e tentando controlar a respiração.

— Onde será que estamos exatamente? – Ele perguntou confuso.

— Não faço idéia. – Ela olhou em volta, o lugar estava vagamente iluminado – Só sei que ainda estamos no centro da pirâmide. As salas ainda mudam de lugar e são muito parecidas. Será que tem alguém nos procurando?

— Acredito que não. Jack deve ter dado uma desculpa qualquer.

— Eu, você e Phillip desaparecidos. Será que alguém vai acreditar que nós apenas... voltamos para casa?

— Com certeza ele vai dar um jeito de convencê-los.

— Estou com medo Draco.

— Vai dar tudo certo Gina. Não podemos perder a cabeça. – Ele olhou para ela como se só então se lembrasse – Você está com a minha varinha?

— Estou. Pettigrew estava com ela. – Ela enfiou a mão dentro da manga e pegou a varinha. – Aqui está. Ela só funciona direito com você.

Ele a pegou e, como um simples aceno, marcou um “x” em uma das paredes. Ela o olhou horrizada e quando abriu a boca para protestar ele explicou.

— Essas câmaras se mexem. Precisamos saber por onde já passamos e onde realmente é seguro.

— Mas estamos danificando a pirâmide.

— Gina – ele se aproximou e colocou uma mão no ombro da garota – Prefiro mil vezes danificar a pirâmide do que ela nos danificar eternamente.

— Você está certo. – Ela sorriu.

— Agora vamos. Você disse que tinha encontrado uma saída. Precisamos achá-la.

— Por Merlim! Esqueci o Andrew! Ele está na outra sala nos esperando! Precisamos voltar para buscá-lo!

— Você está louca?! – Ele disse – Como vamos passar pelos obeliscos? Não dá para voltar. Temos que seguir em frente.

— Mas eu prometi que voltaria.

— Você não pode voltar. Nos vamos encontrá-lo. Você vai ver.



Draco deu alguns passos para a frente e Gina o seguiu um pouco contrariada. Eles ainda o encontrariam. Com toda a certeza.



A câmara onde estavam não tinha nada demais. Era muito grande, mas não possuía nada extraordinário. Atravessaram a sala e chegaram a uma imensa porta. Em cima dela, uma frase escrita em egípcio. Gina a olhou.

— Pronto. Agora estamos perdidos.

— Não estamos não. – Ele olhou para cima e leu a frase.

— Você sabe ler egípcio! – Ela disse embasbacada – Eu não sabia.

— Tem muitas coisas a meu respeito que você não sabe, Virgínia Weasley.

— E o que está escrito?

— É uma charada. ”Diga a senha amigo, e a porta se abrirá para você”.

— Você sabe a senha? – Ela perguntou esperançosa.

— Não faço idéia! Não é porque sei ler egípcio que sei todos os segredos desse lugar.

— Tente o nome dos faraós. – Ela arriscou.

Draco ficou cerca de quinze minutos falando o nome de todos os faraós que já tinham passado pelo Egito. Depois de um tempo, começou a inventá-los.

— Eu desisto. – Ele disse sentando no chão, derrotado.

— Leia a frase novamente Draco.

Ele leu a frase novamente e Gina a repetiu.

— É isso! – Ela disse satisfeita. – Não é diga a senha amigo, e a porta se abrirá para você. É diga a senha, amigo, e a porta se abrirá para você. Como dizemos amigo em egípcio?

— Ora Gina, isso é ridículo!

— Apenas diga!

Draco disse amigo em egípcio, as palavras no alto da porta brilharam e ela se abriu. Ele a olhou surpreso e ela apenas sorriu. Deu um passo em direção a porta e ele a segurou.

— Pode ser muito perigoso.

— Acho que não. Amigo é uma boa palavra, você não acha? – Ela o pegou pela mão. – Venha, vamos entrar juntos.



Os dois deram alguns passos e passaram por um estreito corredor. Foi então que ouviram um canto e algumas palavras, todas em egípcio. Gina apertou a mão de Draco e os dois andaram mais um pouco, se escondendo atrás de uma grande pilastra. Não conseguiam acreditar no que seus olhos viam. A pirâmide, que já estava um pouco destruída e corroída pelo tempo, estava impecável. E várias pessoas estavam um pouco mais na frente, entre guardas, homens bem vestidos com imensas túnicas e, no alto, o trono vazio cercado por mulheres e crianças. Gina colocou a mão na boca para não gritar e Draco nem ao menos piscava.

— Gina – Draco sussurrava com o canto da boca – Estamos na Antecâmara. Aqueles ali são os sacerdotes – ele indicou quatro homens muito velhos, usando roupas coloridas – E naquela cama está o faraó que morreu.

Ela esticou o pescoço e então pode ver que o faraó era ninguém menos que Seth.

— Não sei por que, mas voltamos ao passado. Com certeza isso é algum tipo de miragem. Vamos ver o que está acontecendo.

Eles viram dois sacerdotes extraírem o cérebro do faraó introduzindo um gancho no nariz, depois de terem partido o osso etmóide. A seguir; marcaram, com a varinha uma linha no lado esquerdo do corpo, onde fizeram um corte para extraír as vísceras.

— Eles vão mumificar o faraó. Vão tirar todos os órgãos, com exceção do coração e dos rins. O coração é porque eles acreditam que vai controlar o corpo no Além. Os rins, ninguém nunca descobriu.

Um cheiro bom invadiu o lugar, e quando Gina foi olhar sentiu um forte arrependimento: as vísceras do faraó estavam sendo lavadas com substâncias aromáticas e colocadas em vasos de pedra. Draco a olhou e explicou:

— Esses vasos são chamados Vasos de Canopus, e representam divindades chamadas Filhos dos Hórus, que protegem as vísceras da destruíção. São quatro vasos, com tampa em forma de homem, de chacal, de falcão e de macaco.

Draco estava achando tudo simplesmente fantástico, mas Gina estava sentindo seu estômago revirar. Sem pensar duas vezes sentou no chão encostada na pilastra, de costas para o ritual. Draco continuou firme, olhando com adoração para o que via. O corpo do faraó foi depositado em natrão, carbonato de sódio natural, durante algum tempo e, depois, lavado e massageado com perfumes, óleos e incenso para a cabeça. Draco viu os sacerdotes colocarem olhos de vidro no faraó e sabia que era para dar sensação de realidade. Cobriram a incisão do lado esquerdo do corpo, (de onde foram extraídas as vísceras, com uma placa de madeira com o símbolo Udyat, Olho de Hórus. Draco sabia que naquele momento o corpo estava pronto para ser enfaixado, e foi isso que aconteceu. Ele deu um puxão em Gina e voltou a sussurrar.

— Essa parte é interessante, Gina. Eles já enfaixaram o corpo, e agora vão colocar uma máscara nele. É um retrato idealizado do rosto dele. O império era tão rico que as máscaras dos faraós eram feitas de ouro e lápis-lazúli. Para eles, a carne dos deuses era de ouro, o cabelo de lápis-lazúli e os ossos de prata, e esse material era muito raro no Egito. Agora eles vão depositar o cadáver no sarcófago e fazer uma procissão até o túmulo.

Os guardas, homens fortes, trouxeram um rico sarcófago e colocaram o faraó morto dentro dele. Dois pares pegaram de cada lado e cantaram uma música melancólica. As crianças e mulheres desceram, cantando em coro. Em poucos segundos uma pequena fila foi formada, o sarcófago na frente. Sem pensar duas vezes Draco arrastou Gina pela mão por trás das pilastras até entraram em uma das câmaras atrás deles.

— Chegamos ao túmulo. – Draco disse deslumbrado – Outros faraós também foram enterrados aqui! – Vamos ver o que vai acontecer.

Um dos sacerdotes, o que parecia ser o mais velho de todos, falou várias palavras em egípcio antigo e abriu a boca da múmia. Draco e Gina viram todo o material funerário, o sarcófago e as oferendas, serem depositado no túmulo. Logo em seguida, ele foi selado, para que nada perturbasse o eterno repouso do faraó.



Aos poucos as pessoas foram desaparecendo e a pirâmide, de limpa e arrumada, voltou a ser ruínas. Os túmulos ainda estavam ali, todos em perfeito estado. Mas logo os dois jovens perceberam que estavam de volta a realidade.

— O que aconteceu conosco? – Gina perguntou surpresa.

— Tivemos uma visão, entramos em transe, não sei. – Ele arregalou os olhos. – Psss... Estou ouvindo um barulho. Venha!



Os dois deram a volta e passaram por um estreito corredor. Draco encostou em uma das paredes e sentiu algo pegajoso em sua mão. Aproximou dos olhos e viu que era sangue.

— Estamos no “Hall dos Julgamentos das Nações”! Se eu realmente estiver certo, como acredito que estou, a câmara seguinte é a “Sala das Duas Verdades”. – E o garoto realmente estava certo. — É aqui que o faraó será julgado. – Ele disse baixinho.

— Será o que?? – Gina perguntou.

— Julgado!

— Como você sabe essas coisas??

— Eu prestei atenção em todas as aulas que tive no ano passado! – Ele percebeu o olhar perplexo dela e disse em tom irônico. – Eu sei que você me acha burro, mas eu não sou.

— Eu nunca pensei isso de você! – Ele a olhou – Tudo bem, eu pensei – Ela abaixou os olhos. – Todo mundo comete erros ué!

Aos poucos a câmara foi se refazendo e voltou a ser como era a milhares da anos atrás. Draco e Gina a olharam maravilhados. Uma balança antiga e diferente se refez no centro da sala. Um homem alto e forte, vestindo uma túnica vermelha, apareceu seguido por outros quarenta e dois homens, todos muito bem vestidos.

— Esse de vermelho deve ser Anúbis, guardião das necrópoles e Deus da mumificação.

Anúbis, conhecido também como Anupu, andou até um canto da câmara e pegou o faraó morto pelo braço. Ele estava de volta a vida e Gina soltou um grito de terror. Draco a olhou desesperado, mas como ninguém fez nenhum movimento ele presumiu que eles não podiam vê-los. Os dois caminharam até o centro da câmara e foi então que tudo ficou extremamente claro. Descendo dos céus, uma criatura estranha apareceu. Tinha corpo de homem e cabeça de chacal. Ele levitava com graciosidade e desceu até um trono que apareceu entre os quarenta e dois homens. Segurava um cetro com uma caveira na ponta, e sua aparência impunha respeito e medo. Depois dele vários outros deuses apareceram, entre eles Maat, deusa da verdade.

— O que eles vão fazer Draco?

— Não sei te dizer com certeza Gina, mas parece que esse é o julgamento final mesmo. O faraó morreu e começou sua viagem para o Além-Túmulo. Esse que desceu dos céus é o Osíris, soberano do reino dos mortos. Ele e os outros deuses vão realizar um ritual.

O ritual era chamado psicostasia, em que o coração do defunto era pesado. Se as más ações fossem mais pesadas que uma pena, o morto iria para o Inferno Egípcio. Se passasse satisfatoriamente por essa prova, podia percorrer o mundo subterrâneo, cheio de perigos, até o paraíso, conhecido como Campos de Iaru.



Embora Gina estivesse tremendo e Draco maravilhado, Seth parecia estar perfeitamente sob controle. Sua terrível cara de mau parecia estar tomada de uma paz inexplicável.

— Osíris, meu irmão. – Ele começou com uma voz tranqüila – É com grande alegria que busco o meu descanso eterno.

Anúbis se ajoelhou diante da balança e a ajustou. Voltou para perto de Seth e, pelo buraco de onde os sacerdotes tinham tirado suas vísceras, tirou-lhe o coração. Gina soltou outro grito de pavor e começou a tremer, enquanto ficava histérica. Draco a abraçou e a virou de costas para que não pudesse mais ver nada.

— Draco, vamos embora por favor, vamos embora, vamos embora por favor Draco! – Ela repetiu inúmeras vezes. Mas ele estava praticamente em transe, maravilhado demais com o que seus olhos estavam vendo.

O coração de Seth foi colocado no prato direito. Anúbis chegou perto da deusa Maat e, com uma enorme reverência, pegou uma pena que ela lhe estendeu. Ele voltou para perto da balança e colocou a pena no outro prato. Seth se aproximou da balança também, e pediu que seu coração não o contradissesse.

— O que está acontecendo? – Gina sussurrou.

— Eles estão pesando o coração dele com uma pena. Os egípcios acreditavam que o coração humano era a sede da consciência. Assim, ao ser pesado contra a verdade, verificava-se a exatidão dos protestos de inocência do morto. Como as negativas vinham de seus próprios lábios, ele será julgado pelo confronto com o seu próprio coração na balança. Por isso pediu que seu coração não vá contra ele.

Depois de dizer isso, o faraó colocou-se diante de cada um dos juízes e recitou outra fórmula, na qual se declarou inocente de todos os pecados:

"Não pratiquei pecados contra os homens. Não maltratei os meus parentes. Não obriguei ninguém a trabalhar mais do que era legítimo. Não pratiquei enganos com o peso da minha balança. Não causei a fome de ninguém. Não pratiquei fraudes na medição dos campos. Não subtrai o leite da boca das crianças."

Como era de conhecimento de todos, Seth foi o faraó mais maligno que tinha governado o Egito em todos os tempo. Por isso, ao prato da balança do seu coração pesou mais. Começou a escorrer sangue das suas mãos e cabeça e ele começou a gritar.

— Gina, não olhe. Essa cena não é muito boa. – Draco disse sentindo seu estômago revirar. – Ele vai se tornar um demônio.

Depois que o homem ficou totalmente coberto de sangue, um monstro com cabeça de crocodilo e patas de leão e hipopótamo apareceu. Seth o olhou de uma forma hipnótica, e o monstro se curvou. Os deuses e juízes o olharam assustados. Aos poucos, todos se retiraram, restando apenas Osíris. Ele olhou para Seth e rosnou. Em segundos o deus Chesmu apareceu e o levou para o inferno, onde ele sofreria uma série interminável de castigos.

Aos poucos a sala voltou a ficar destruída e todo o brilho foi apagado. Draco se abaixou e sentou ao lado de Gina, abraçando-a. Ela estava em estado de choque.

— Eu não sei o que foi isso que nós vimos. Mas sei que fez um pouco de sentido.

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