Capítulo X



Os dois homens levaram os cavalos para beber água pouco antes de o sol se pôr. Eles passa­ram mais de meia hora discutindo se deveriam permitir ou não que Hermione e Luna seguissem viagem em dois dos animais, mas acabaram decidindo que o cuidado extra e mais duas bocas para alimentar só lhes traria mais problemas. Além disso, a criada não gostava de cavalgar, e Hermione admitiu que, embora sou­bessem montar, não era tão experiente quanto seu irmão.

Harry sentiu um grande alívio, apesar de não ter expres­sado seus pensamentos em voz alta. Em seguida, eles se preo­cuparam em preparar a fortaleza para a chegada da noite e os perigos que poderiam surgir, e só então Harry teve tempo para pensar em tudo que acontecera, e no que significava.

Hermione estivera certa em todos os aspectos, e ele fora cego teimoso por se recusar a enxergar a realidade que estava diante de seus olhos. Pior ainda, não se permitira acreditar, pois, se tivesse acreditado, seus planos de vingança contra Daman Granger não seriam mais os mesmos, e seu orgulho não aceitaria, em hipótese alguma, tal comportamento. Ele era o culpado por estarem passando por tudo aquilo, quase causando a morte de todos.

E a jovem prisioneira, que estivera sob seu poder até então, fora a responsável pelo equilíbrio entre o bem e o mal. Luna tinha razão. Se Hermione não os tivesse ajudado a derrubar os animais, Harry sabia que ele e Ron não teriam conse­guido vencer sozinhos.

Agora, entretanto, tudo mudara. Harry não sabia ao certo como, porém a certeza estava ali, deixando-o infeliz e descon­fortável. A verdade era que não queria que as coisas mudassem entre Hermione e ele. Não a queria em outro cavalo. Queria man­tê-la sob controle, por perto. Bem perto. No dia anterior chegara a pensar na hipótese de Daman Granger não encontrá-los, o que os manteria juntos por mais tempo.

E já tomara uma decisão bastante importante: não entrega­ria Hermione Granger aos cuidados de Sir Draco. Harry a liber­taria, é claro, em algum momento futuro. Todavia, ainda não tinha uma data específica em mente.

E agora esses pensamentos haviam desaparecido. Tudo mu­dara.

Eles tiraram as selas, deram água e comida para os cavalos, deixando-os soltos para caminhar um pouco pelos arredores. Nimrod e Meretriz ficaram dentro da fortaleza, ao lado de seus donos, observando os outros animais saírem. Ron, com a ajuda de Luna, ajoelhou-se no chão e começou a abrir as sa­colas que estavam presas às selas, em busca de algo que lhes pudesse ser útil nos dias seguintes.

Hermione ficou ao lado de Harry, observando os cavalos se afastarem.

— Será que os homens voltarão para buscá-los? — perguntou ela.

— Podem até tentar, pois são animais de grande valor, mas será um pouco difícil sem as selas e rédeas. Está claro que não tinham preparo nenhum para a batalha. Nimrod, sim. Ele odeia o cheiro de sangue, como todos os cavalos, mas não tem medo da morte.

Hermione não disse nada, apenas olhava. Depois de alguns ins­tantes, os cavalos começaram a desaparecer no meio do mato.

— Eles deverão passar a noite por ali, se nenhum perigo aparecer — murmurou Harry.

— Ou aqueles homens podem voltar — comentou ela, pas­sando as mãos nos braços para se aquecer.

Apesar de a fortaleza estar parcialmente em ruínas, o andar de cima estava bem mais conservado, oferecendo-lhes um pouco mais de proteção. Os cavalos permaneceram no térreo, e no andar superior eles fizeram uma fogueira e camas com galhos e capim. Dois ficariam de vigília no telhado, enquanto os outros dormissem. Com as defesas preparadas para o ataque, Harry acreditava que teriam uma noite sossegada, a salvo. Com ape­nas uma entrada na fortaleza, ele e Ron poderiam render quaisquer invasores, porém era pouco provável que tentassem uma nova investida.

Seu maior medo era pelos cavalos, que não podiam ser leva­dos para cima, mas era um risco que teriam de correr. Dificil­mente Nimrod e Meretriz seriam roubados, afinal não era uma tarefa simples. Luna e Hermione tinham tentado e falhado. Um era muito bem treinado para dar atenção a estranhos, e o outro, muito malvado.

Pouco antes de o sol se pôr, os quatro estavam reunidos ao redor da lareira, exaustos e famintos, comendo e bebendo o pouco que lhes restava. Na verdade, a refeição não era das piores. Pão, queijo, algumas frutas e um pouco de vinho. Depois de terminar de comer, todos estavam bem mais animados.

— Hermione e eu faremos a primeira vigília — disse Harry, levantando-se e vestindo a capa. — Tentem dormir. Nós os acor­daremos por volta da meia-noite.

Hermione segurava a gola da capa contra o pescoço, tentando proteger-se da brisa fria que soprava. No céu, as estrelas e a lua brilhavam com intensidade, perdendo-se de vez em quando atrás das nuvens escuras que se movimentavam no céu.

— Choverá de manhã — comentou Harry, encostado à pa­rede e olhando para Hermione, segurando a peça de xadrez na mão. — O que ela faz além de os olhos brilharem?

— Eles dão a impressão de brilhar — explicou ela, suspiran­do. — Trata-se de um tipo de truque.

— Mas não é mágica. É um pouco estranho, pois a cor muda. De vez em quando os olhos da rainha ficam dourados, outras verdes. E agora quase ficaram azuis. São bonitos como os olhos de uma mulher de verdade.

Hermione nunca vira os olhos da peça ficarem azuis, e a curio­sidade fez com que ela se aproximasse para examinar melhor. Parou ao lado de Harry, que segurava a rainha como se fosse um ser vivo.

— Já percebi o que aconteceu — disse ela, rindo. — Você a seduziu, como fez com a pedra.

Ele tirou a pedra do bolso da túnica com um movimento rápido e cuidadoso, segurando-a na palma de sua mão estendi­da, ao lado da rainha de xadrez. A pequenina pedra acendeu no mesmo instante, emitindo uma luz suave.

— Parece que ela gosta bastante de mim — brincou Harry, trazendo o objeto para perto do rosto a fim de observá-lo me­lhor — Minha doce criatura… Você brilha tanto para mim, não é, pequenina?

O brilho da pedra aumentou, como se as faces de uma mulher estivessem enrubescendo.

— Eu jamais testemunhei uma demonstração tão pecamino­sa de vaidade em toda a minha vida — disse Hermione, com des­dém. — Não sei como permiti que você me convencesse a dei­xá-lo cuidar da pedra. É vergonhosa a maneira como você a trata.

— E agora ela brilha só para mim, não é, querida?

— Por que você a trata como se fosse uma mulher?

— Claro que é uma mulher — afirmou ele. — Você duvida do meu conhecimento sobre esse assunto?

— Não, de forma alguma. — Hermione suspirou. — Não tenho a menor dúvida sobre sua experiência com o sexo oposto. Ne­nhum homem na face da terra pode dizer que seduziu uma pedra. E agora uma peça de xadrez.

Harry ergueu um pouco a rainha, virando-a de um lado para o outro.

— Não, eu não a conquistei com tanta facilidade. O coração dela já tem dono. Talvez seja o seu tio.

— Você só pode estar louco — disse Hermione. — Sim, ela é muito querida por meu tio Culain, mas não é nada além de um pedaço de madeira. Não há uma vida para se amar.

— Ah — murmurou Harry, virando a peça para que ela pudesse vê-la. — Agora os olhos da rainha estão cinzentos. Cinza-escuros. Não castanhos, como os seus. Você a ofendeu.

Hermione pegou a peça de xadrez e guardou-a no bolso.

— Então vamos deixá-la em paz para que ela possa arquitetar sua vingança. Meu tio só podia estar louco quando a con­fiou a mim.

— A Pedra da Graça deve realmente ser muito importante para a sua família, para seu tio ter lhe dado a rainha.

— Sim, é. Nem sei como lhe explicar. Agora, a peça de xa­drez… Não consigo imaginar meu tio sem ela.

— Então precisamos pegá-la de volta de Caswallan assim que conseguirmos a Pedra da Graça.

Hermione ficou boquiaberta.

— Pegá-la de volta? — repetiu ela. — De Caswallan?

— Sim, pois eu não gostaria de ver seu tio sem a rainha de xadrez. E acredito que ela só ficará contente quando voltar para o lado dele.

Não era possível que Harry estivesse lhe dizendo o que ela estava entendendo.

— Você decidiu me levar até Gales para encontrar Caswal­lan? — Hermione colocou a mão no braço dele, quase temendo acreditar na verdade. — Eu lhe pago a quantia que você quiser. Bem mais do que Sir Draco lhe ofereceu e…

— Hermione — interrompeu ele, segurando-lhe a mão. — Eu não quero nenhum dinheiro, e não toque mais nesse assunto a não ser que queira me irritar. Você salvou a minha vida e a de Ron também.

— Nesse caso, estamos quites. Você salvou a minha vida e a de Luna. E eu devo muito a Ron, pois ele se colocou na frente do que seria a minha morte.

— Se não fosse por mim e Ron, nenhum de nós estaria neste lugar arriscando nossas vidas. — Harry olhou para bai­xo, onde suas mãos se encostavam. — Não, Mione, eu errei ao prendê-la a pedido de Sir Draco, e errei ainda mais ao usá-la para satisfazer meu desejo de enfrentar seu irmão. Você não me deve nada. Sou eu que lhe devo.

— Está abrindo mão de lutar com Daman?

Harry levantou os olhos, oferecendo-lhe o sorriso ao qual ela já estava se acostumando.

— Não. E mesmo que estivesse, agora já seria tarde demais. Seu irmão viria atrás de mim de qualquer maneira, mesmo que fôssemos para Londres neste instante. Não há como evitar o que acontecerá entre mim e Daman.— Irritada, Hermione puxou a mão.

— Suas palavras não fazem o menor sentido. Não seria melhor se você ficasse em paz com meu irmão? Eu não quero ver você morto pelas mãos de Daman. Seria o início de uma grande inimi­zade entre nossas famílias, e eu não quero que isso aconteça.

Harry riu.

— Minha família de certo sentiria a minha falta, mas é bem pouco provável que comecem uma guerra por minha causa.

— Como pode ter tanta certeza? — desafiou Hermione. — Está claro que, de certa forma, você foi reconhecido por seus pais. Foi você mesmo quem me disse.

— Sim, eu tenho muita sorte por ter sido reconhecido por ambos os lados da minha família, mas nada mudará as circuns­tâncias do meu nascimento. Nem o amor nem laços sangüíneos podem apagar esse pecado, e por mais que meus familiares me amem, eles jamais permitiriam que seu sobrenome fosse alvo de tamanha humilhação. E eu nunca consentiria com tal atitu­de. Isto é, se eu estiver vivo para fazê-lo. É bem capaz que o seu irmão me despache para outro mundo apesar das minhas tentativas de impedi-lo. — Harry falou as palavras em tom de brincadeira, mas Hermione não conseguiu achar engraçado.

— Duvido que sua família o deserdasse pelas circunstâncias do seu nascimento. Muitos dos que nasceram sem tantas posses tornaram-se poderosos e ricos. Olhe só para o falecido rei Hen­rique e seus irmão, entre eles o duque de Exeter.

— Mas o pai deles, John de Gaunt, casou-se com a amante e exigiu que todos seus filhos bastardos fossem reconhecidos tanto pela igreja quanto pela coroa. Isso jamais acontecerá co­migo. Minha mãe é uma mulher nobre, descendente de uma família numerosa e muito importante, casada com um grande lorde e, a não ser por seu único pecado cometido em um mo­mento de embriaguez, o meu pai, lorde James, é extremamente devotado à esposa e aos filhos legítimos.

Hermione notou que Harry se esforçava para manter o sorriso nos lábios.

— Dentre todas essas pessoas bem-nascidas e confiantes — murmurou ele, baixando os olhos — Eu sou o único deslize.

Harry deu de ombros, como se não se importasse, entretan­to, o gesto não apagou a dor que Hermione viu em seus olhos e escutou em sua voz.

— São pessoas boas. Eu fui amado e bem tratado, e não tenho nenhum motivo para me queixar. Duvido que qualquer outra criança nascida nas mesmas condições tenha tido tanta sorte. Fui criado com os filhos legítimos do primeiro casamento de minha mãe e também com aqueles que ela deu mais tarde ao meu padrasto. Quando fiquei mais velho, fui morar com meu pai, que me criou junto com seus outros filhos. Eu tive bem mais do que merecia, e retribuí levando uma vida desregrada e infrutífera. — Harry respirou fundo e ergueu os olhos para o rosto de Hermione. — Tenho motivos de sobra para ser conside­rada a ovelha negra na minha família. Eles me salvaram de várias situações desastrosas no passado. Não espero que o fa­çam outra vez.

Antes de se dar conta de seus movimentos, Hermione tocou-lhe o rosto.

— Eu os obrigaria a ajudá-lo — disse, envergonhando-se em seguida da declaração. Ela afastou a mão, porém Harry segurou-a.

— É mesmo, Mione?

— Sim — respondeu ela, soltando-se e virando-se para es­conder o rubor que lhe cobria a face. O que ele pensaria escutando-a falar assim? Hermione já sabia. Harry James Potter decerto acharia que ela se apaixonara, como acontecia com todas as outras mulheres.

Nervosa, ela deu alguns passos, rente à parede. Para seu alívio, ele não a seguiu. Houve um silêncio tenso por alguns instantes. E quando Harry falou, foi como se estivesse respon­dendo às perguntas que a assombravam.

— Minha mãe casou-se pela primeira vez aos treze anos de idade. Ela fora prometida a esse homem desde o momento de seu nascimento, portanto, não podia opinar a respeito. Trata­va-se de um lorde importante, bem mais velho do que ela, mas era uma pessoa extremamente boa e generosa. Pelo menos foi o que minha mãe sempre me contou. Ele adotou várias crianças, e entre elas estavam meu padrasto e o primo dele… que é o meu pai.

A perturbação de Hermione desapareceu no mesmo instante. Com os olhos arregalados, ela virou-se para Harry, que estava encostado à parede alguns passos à frente. Ele tinha os braços cruzados diante do peito musculoso, protegendo-se da brisa fria da noite, que fazia sua capa esvoaçar. O sorriso sumiu do rosto formoso, tornando-lhe a expressão sombria.

— Eles são primos — murmurou Hermione, sem esconder a surpresa. — Como isso é possível?

— Não é comum que parentes sejam criados juntos em casas que não sejam as suas — admitiu Harry. — Os dois agiam mais como amigos do que como parentes. Minha mãe era mais nova do que eles, e muito bonita. Ela e meu pai eram amigos, mas meu padrasto se apaixonou perdidamente por ela. Vários anos se passaram. Minha mãe cumpriu seu dever dando três filhos ao marido, meu irmão mais velho e duas irmãs, também mais velhas do que eu — Ele respirou fundo antes de continuar.

— Meu pai e meu padrasto terminaram o treinamento e foram embora. Meu pai voltou para casa e casou-se com a moça que lhe fora prometida desde a infância, mas meu padrasto recusou-se a se casar com a mulher escolhida por sua família, alegando que não poderia entregar sua afeição a outra mulher que não fosse a esposa de seu pai de criação. Ele assumiu a administração da propriedade do pai, que um dia seria sua, e então, alguns anos mais tarde, ingressou no exército e foi para a França servir ao rei. Meu pai, que teve três filhos, foi logo depois com seu próprio exército.

— E sua mãe? — perguntou Hermione, apertando a capa contra o peito para se proteger do vento frio.

— Ela passou os seis anos seguintes à partida do meu pa­drasto cuidando do marido, que ficou muito doente, bem como da propriedade e dos filhos. Minha mãe tinha acabado de com­pletar vinte e quatro anos quando ele morreu, deixando-a uma viúva muito rica e bonita. Os pretendentes não tardaram a apa­recer, implorando para se casar com ela. E ameaçando também.

— Ameaçando? — repetiu Hermione, imaginando todas as implicações possíveis da palavra. Ouvira falar de mulheres força­das a se casar com homens poderosos e ricos o suficiente para comprar a aprovação do rei a respeito do assunto. Ela arrepiou-se diante da idéia de tudo que a mãe de Harry deveria ter passado na mão daqueles homens gananciosos.

— Sim, e embora minha mãe fosse uma mulher de muita fibra, ela sentiu necessidade de apoio. Tentou entrar em contato com meu padrasto, mas descobriu que ele estava na França, então mandou uma carta para meu pai, pedindo-lhe que fosse ajudá-la. Meu pai tinha retornado da França um ano antes por ter se acidentado na batalha. Depois de curado, voltou a admi­nistrar sua propriedade, e engravidou mais uma vez a esposa. Por mais estranho que possa parecer, a criança nasceu e mor­reu, no mesmo dia em que o marido de minha mãe faleceu. Meu pai, abalado com a morte da única filha e de seu pai de criação, estava emocionalmente abalada quando viajou para aten­der ao pedido de minha mãe. Ele jamais poderia ter lhe negado ajuda naquele momento, mesmo se quisesse, pois ela era esposa de seu pai de criação, portanto, devia-lhe muito por tantos anos de treinamento.

Hermione imaginava perfeitamente o que tinha acontecido. Uma mulher e um homem tristes com a perda de uma pessoa queri­da… buscando conforto onde não o teriam feito em outras cir­cunstâncias.

Harry fez uma pausa e desviou os olhos do rosto de Hermione, fitando o horizonte.

— Minha mãe e meu pai eram grandes amigos, mas foi um grande erro terem se encontrado em um momento daqueles. Ela estava muito abalada com todo o ocorrido e ficou extrema­mente agradecida quando meu pai despachou todos os preten­dentes indesejados. E ele, com saudade da esposa e lamentando a perda da filha, passava as noites bebendo para afogar as mágoas. Em uma dessas noites, eles se entregaram um ao outro em busca de conforto. Na manhã seguinte, os dois não sabiam o que fazer para se livrar do remorso que sentiam. Na verdade, acho que eles nunca mais teriam se encontrado se minha mãe não tivesse engravidado. Como era de se esperar, meu pai par­tiu o mais depressa possível, e só mais tarde, através de uma carta enviada por minha mãe, ele descobriu o terrível fato de minha existência.

— Não fale assim! — exclamou Hermione, incapaz de conter as lágrimas que lhe inundaram os olhos. — Não foi terrível! Não admitirei que você, nem qualquer outra pessoa, fale assim!

— Mas essa é a realidade, minha cara Mione — disse ele, ainda sem lhe dirigir o olhar. — A dura realidade. Imagine a situação constrangedora de minha mãe por ter cometido um adultério tão grave. Na verdade, ela poderia ter mentido e dito que eu era filho de seu falecido marido, porém todos duvidariam que um homem tão doente fosse capaz de conceber um filho naquelas condições.

— Seu pai mostrou muita honra ao reconhecê-lo como filho — afirmou ela. — Foi uma atitude bastante arriscada, que po­deria lhe trazer conseqüências indesejáveis.

Harry suspirou e assentiu.

— Sim, é verdade, ainda mais pela devoção que a esposa lhe dedicava. Eles foram, e ainda são, um casal completamente apaixonado. A sorte é que minha madrasta sempre foi uma mulher muito compreensiva. — Por fim, Harry olhou para Hermione, lançando-lhe um sorriso tímido. — Eu sou rodeado pela bondade e pela compreensão da minha família. Houve momen­tos em que eu quase enlouqueci.

Hermione sabia o que ele queria dizer com aquelas palavras. Ela também se sentia uma estranha entre seus parentes, porém todos lhe demonstravam muito amor e carinho para que ela fizesse qualquer tipo de queixa.

— E o que seu pai fez quando recebeu a carta de sua mãe?

— Na verdade, ele não pôde fazer muito por ela. Meu pa­drasto soube da morte de seu pai de criação e voltou depressa para a Inglaterra, na esperança de conseguir casar-se com mi­nha mãe.

— E ele se aborreceu quando a encontrou grávida?— Harry deu uma sonora risada.

— Não, mas estava pronto para matar o próprio primo, meu pai. Quanto a minha mãe, não. Ele a amava demais para ficar bravo. Ele a pediu em casamento e disse que me daria seu sobrenome e me trataria como um verdadeiro filho. Só que minha mãe é uma mulher extremamente orgulhosa e teimosa. Como você, creio eu.

— Como assim? — perguntou ela, franzindo a testa.

— Ela não entregaria facilmente seu coração a qualquer ho­mem, como você. Você entregaria, Hermione?

— Não, acho que não — respondeu ela, apesar de não ter certeza absoluta. A grande verdade era que seu coração já não lhe pertencia mais. Já o entregara àquele homem. Sem pensar duas vezes. Sem tentar controlar seus sentimentos.

Harry deixou os braços pender para os lados.

— Minha mãe não amava meu padrasto da mesma maneira que ele a amava, e não foi nada fácil convencê-la a se casar apenas por minha causa. Como uma mulher de extrema cora­gem, ela estava disposta a enfrentar a ira da igreja e da coroa, certa de que meu pai não a deixaria sozinha em um momento como aquele. E foi exatamente o que aconteceu. Ele lhe garantiu que me reconheceria como filho e que me daria seu sobrenome. Mesmo assim, minha mãe poderia passar por grande vergonha, e até ser punida, por ter concebido um filho bastardo tão pouco tempo após a morte do marido. A sorte foi que meu padrasto conseguiu persuadi-la a se casar com ele, o que lhe garantiu proteção.

— E ela chegou a se apaixonar?

— Graças a Deus — respondeu Harry, enfático. — Ela nun­ca tinha amado antes, amado de verdade, apesar de ter um carinho muito grande pelo primeiro marido. E quando se apai­xonou… foi algo avassalador. Entretanto, esse amor não acon­teceu logo. Eu devia ter uns cinco anos quando notei a mudança. Posso dizer que os esforços e a paciência do meu padrasto não foram em vão. É uma dádiva conquistar o amor de uma mulher como minha mãe. Ou como você.

Hermione enrubesceu novamente, mas a escuridão da noite es­condeu sua perturbação. Harry também tinha o olhar distante, perdido no horizonte.

— Eu não sou tão perfeita quanto sua mãe deve ser — disse ela com voz trêmula.

— Bem mais do que você imagina — falou Harry, olhando-a — E a prova disso é que eu nunca contei essa história para ninguém. Nem mesmo para Ron.

Afastando-se da parede, Harry caminhou na direção dela com passos lentos, determinados. Hermione tentou se mover, mas sentiu as pedras contra suas costas. Ele parou na frente dela, sem tocá-la, porém tão perto que o calor do corpo másculo a contagiou.

— Tudo mudou entre nós, Hermione — murmurou Harry. — Você não é mais minha prisioneira.

Devagar, ele ergueu a mão, acariciando-lhe o rosto frio com seus dedos quentes, um toque tão delicado e suave que Hermione suspirou de prazer. Nunca fora tocada por um homem antes, não assim. Seu coração palpitava aceleradamente à medida que as carícias de Harry continuavam.

Eu prometi que não faria isso… que não me permitiria ter sentimentos por você… Todavia, pela primeira vez na vida, não sei como me controlar.

Hermione engoliu em seco, esticando o braço para segurar a mão que estava prestes a tocar-lhe os cabelos.

— Por favor, não — implorou ela, envergonhada por sua fraqueza. — Faz alguns dias que você não tem a companhia de uma mulher, por isso alguém tão sem graça como eu lhe atrai. Por favor, Harry… Não me torne o alvo de suas brincadeiras. Sei perfeitamente que não sou o tipo de mulher que o atrai. E jamais poderia ser. — A voz de Hermione tremia, e ela sabia que estava a ponto de chorar. Tomada pela humilhação, fechou os olhos.

— E isso que você pensa de mim? — perguntou ele, inter­rompendo os carinhos no mesmo instante. — Que eu teria co­ragem de usá-la para satisfazer meus desejos?

Harry afastou-se e voltou para perto da parede, apoiando as mãos nas pedras frias.

— Sim, só pode ser isso. E por que seria diferente? Afinal de contas, eu a capturei e a tornei minha prisioneira. Todas as minhas atitudes servem para demonstrar o tipo de homem que eu sou. E até a pior delas seria verdadeira. Por Deus! — Ele se endireitou, passando a mão nos cabelos desgrenhados. Então virou-se para Hermione outra vez. — Agora você, Hermione… Como pode se desprezar dessa maneira? Você é uma mulher mais do que desejável.

— Claro que sou — zombou ela, com um riso choroso. Hermione abriu as mãos ao lado do corpo. — Olhe bem para mim. Olhe como sou atraente e feminina. Não faltam pretendentes para pedir a minha mão em casamento. — Ela cerrou os dentes e fechou os punhos, levando-os ao estômago. Em seguida, sentiu as mãos de Harry envolvendo-lhe os ombros, puxando-a para perto de seu corpo quente e forte.

— Ah, Mione — murmurou Harry, aninhando-a em seus braços. — Se eu tivesse coragem… eu lhe provaria a veracidade das minhas palavras.

De repente, ele levantou a cabeça e seus braços penderam.

— Eles chegaram.

Hermione fungou e enxugou os olhos, virando-se para onde Harry apontava, próximo ao celeiro.

— Você está vendo?

— Onde? — perguntou ela, aproximando-se. — Sim. Ah… estou vendo.

Os dois homens que se salvaram tinham voltado para buscar os corpos dos companheiros mortos, como Harry previra. Ti­nham apenas dois cavalos, e colocavam dois corpos em cada uma das selas. Minutos depois, eles desapareceram de volta na floresta.

Hermione soltou a respiração e tentou acalmar os nervos.

— Será que eles voltarão depois de enterrarem os amigos?

— Acho pouco provável. Somos quatro contra dois, e eles já sofreram bastante em um dia. Depois de enterrar os corpos, eles seguirão por estradas mais calmas. E evitarão encontrar Sir Draco como se ele fosse um leproso.

Hermione o encarou com preocupação.

— Se não receber notícias de seus homens, dizendo que es­tamos mortos, Sir Draco poderá mandar mais alguém atrás de nós. Ele fará de tudo para evitar que eu recupere a Pedra da Graça.

— Então ele terá de se esforçar muito, pois você a terá de volta, e logo. Mas não tenha medo de Sir Draco. Eu cuidarei dele — jurou Harry. — Por ora, vamos nos concentrar em seguir até Gales, em busca de Caswallan. Partiremos quando o dia amanhecer.

— Ah, Harry, estou tão contente…

— Ainda é cedo para comemorar. Teremos um longo dia de viagem, depois outros mais. Amanhã à noite, porém, teremos cama quente, comida gostosa e um teto decente sobre nossas cabeças.

— Aonde iremos? — perguntou Hermione, sem poder acreditar naquelas palavras. Nenhuma das tavernas nas quais tinham se hospedado se aproximava daquele luxo.

— Vou levá-la para a casa de uma das minhas irmãs, que fica a um dia de cavalgada daqui. Não é caminho para Gales, mas perto o suficiente para que possamos fazer o desvio. Você e Luna se alegrarão com a companhia e conforto a que estão acostumadas, mesmo que por pouco tempo.

— Mas o que sua irmã achará de nos receber assim, tão de repente?

— O de sempre, eu diria. Que o irmão é um andarilho que não se dá ao luxo de avisar de sua chegada. — Harry riu ao ver a expressão de espanto no rosto de Hermione. — Não tenha medo, senhorita. Eunice ficará mais do que contente com a nos­sa visita. E vocês se entenderão muito bem. Na realidade, antes de nossa estada em Hammergate terminar, você ficará surpresa ao imaginar que ela e eu tenhamos algum tipo de parentesco.

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Poxa, quase ninguém comentou a fic...

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