Capítulo V



O quarto era bem melhor do que Harry espe­rava. Jamais poderia imaginar que Bostwick tivesse um aposento tão limpo e bem-cuidado em sua taverna, e tão escondido. Ficava do outro lado do salão principal, e quase não se conseguia escutar a gritaria.

Era um dormitório pequeno, porém limpo e preparado para a chegada das duas mulheres, com duas camas, duas cadeiras, uma mesa e três velas, que Bostwick acendeu depressa. A la­reira, que ficava ao lado da janela, brilhava, afastando o frio da noite.

— Esse fogo não as aquecerá tanto quanto o fogo da taverna — disse Bostwick, observando as duas tremendo —, mas há algumas mantas na cama. Vocês podem tirar a roupa e se aque­cerem como quiserem.

Luna arregalou os olhos.

— Coloquem as roupas perto da lareira que elas estarão um pouco mais secas ao amanhecer. Entretanto, seria mais inte­ressante se vocês o fizessem na taverna.

Harry olhou para Hermione a fim de testemunhar a reação da jovem diante daquele comentário, e não se desapontou com o que viu.

O rosto dela, pálido de cansaço, frio e fome, se iluminou com duas manchas vermelhas.

— Nós preferiríamos nos jogar no fogo a entregar nossas roupas a vilões tão vergonhosos, ainda mais neste estabeleci­mento horroroso — disse ela, com o tom de voz digno de uma rainha. — No caso, o seu estabelecimento, Sr. Bostwick, que não nos agrada nem um pouco.

As últimas três palavras foram tão frisadas que não restou nenhuma dúvida sobre a desaprovação de Hermione.

— Além disso, Sr. Bostwick, nossas roupas estariam defu­madas pela manhã, o que nos impediria de usá-las. Não tenho a menor dúvida, entretanto, de que você e seu povo não se importam com o odor — disse ela, finalizando a frase com um olhar de desdém.

Harry teve de segurar o riso ao ver a expressão de espanto no rosto de seu amigo. Por Deus, que língua afiada! O pobre Bostwick decerto jamais escutara algo parecido.

— Pelo amor de Deus, Harry — murmurou ele, olhando espantado para Hermione, como se ela realmente fosse uma rai­nha. — Você trouxe verdadeiras damas para minha humilde taverna. Nós nunca tivemos hóspedes tão ilustres. — Bostwick esfregou o queixo, pensativo. — Então, milady, você terá de se contentar em usar roupas molhadas pela manhã, se esse é o seu desejo.

— É sim — respondeu Hermione, com indiferença. Bostwick ficou ainda mais impressionado. Ele se afastou e fez uma mesura.

— Eu as deixarei em paz, milady. Pedirei a uma das garotas para lhes trazer comida e bebida. Eu garanto que lhes será servido o melhor que temos aqui. — Agora Bostwick parecia querer ganhar a aprovação de Hermione. — E nenhum dos ho­mens, a não ser Harry e Ron, entrarão neste quarto sem permissão. Não admitirei que ninguém moleste damas tão finas na minha taverna. Pode descansar sossegada, milady.

Tendo dito essas palavras, Bostwick fez mais uma mesura e se retirou, batendo na parede antes de encontrar a porta.

— Olhe como você assustou o pobre Bostwick, Srta. Hermione — brincou Harry. — Que vergonha!

— Por favor, saia, Potter — pediu ela, ignorando a brin­cadeira. — E leve seu criado junto. Nós estamos cansadas, e vocês querem a companhia de seus amigos. E das amigas…

Harry assentiu, sabendo que era a verdade. As duas esta­vam exaustas.

— Vocês estarão a salvo, como Bostwick prometeu. Não per­mitirei que nenhum homem entre neste quarto, a não ser nós. Você e a Srta. Luna podem descansar sossegadas.

— Não haverá necessidade de vocês entrarem — disse ela, soltando Luna, que sentou-se na cama.

Ron desamarrou sua capa e ofereceu-a à jovem, que tremia sem parar. Luna recusou, claramente não querendo acei­tar ajuda de um dos seqüestradores.

— Eu já lhe prometi que não tentaremos escapar durante a noite.

Harry colocou as mãos no encosto de uma das cadeiras a fim de determinar a resistência das mesmas.

— Nós também precisamos dormir — disse ele. — Você não nos negaria o conforto dessas camas, que foram preparadas para nós.

Com habilidade, Harry levantou ligeiramente o olhar no momento em que proferiu a última palavra, tornando sua ex­pressão perfeita. Durante muitos anos, ele tinha praticado os melhores métodos de derreter o coração de uma mulher. A Srta. Hermione poderia provar ser uma de suas presas mais difíceis, porém não resistiria àquele olhar sensual. Harry usou seu me­lhor tom de voz, uma mistura de inocência e malícia, que con­quistara a maioria dos corações femininos na Inglaterra e na França. Mesmo sua mãe, uma mulher bem-nascida e elegante como sua prisioneira, não conseguia resistir.

Entretanto, a Srta. Hermione Granger resistiu.

Para consternação de Harry Potter, ela franziu o nariz como se estivesse diante do ser mais desprezível da face da terra, ignorando-o completamente.

— Não vejo motivo para você não ficar na taverna com os seus amigos, seja divertindo-se, seja dormindo. Aposto como daqui a algumas horas eles se acalmarão. E duvido que as mu­lheres permitam que você as deixe tão cedo, ainda mais para dormir. Você e seu criado estarão muito ocupados esta noite para voltarem a um quarto humilde como este, Potter. Saiba que aqui você não fará nada além de dormir.

Pela primeira vez depois de muitos anos, Harry experimen­tou uma sensação de irritação na presença de uma mulher. Era algo além de raiva ou derrota. Ele sentiu-se… feio. Sem atra­tivos. Desprezado. Tais emoções não lhe eram desconhecidas. Longe disso. Desde o dia de seu nascimento, Harry soube como não fora desejado, o único bastardo em uma família de filhos legalmente reconhecidos, apesar de todo o amor que seus pais demonstravam. Mesmo seu sobrenome era diferente do dos ir­mãos: James Potter e não apenas Potter. Estava além de suas forças mudar ou controlar aquela situação.

Por outro lado, com as mulheres… Se nunca conseguira con­trolar nada em sua vida, Harry pelo menos conseguia controlar as mulheres.

Menos aquela.

— Você tem uma língua bem afiada, Srta. Hermione — disse ele antes de se dar conta, tão irritado que nem sabia direito o que falava — E a usa demais. Não é de se espantar que ainda seja solteira. E não tenho a menor sombra de dúvida que con­tinuará assim por muito tempo.

Foram as palavras mais cruéis que ele poderia ter dito a uma mulher. Mais dolorosas do que qualquer golpe de adaga. Harry se arrependeu de sua grosseria no mesmo instante.
Ele olhou para Hermione, que tinha os olhos arregalados e a face pálida. Ron,que estava ajudando a Srta. Luna, virou-se para Harry, incrédulo.

— Milorde! — exclamou o criado, incapaz de se conter, re­velando todo seu espanto. Ron era um órfão que fora educado pelos mais cruéis bandidos e assassinos que existiam na terra, portanto, não tinha sentimentos, a não ser nos raros momentos em que Harry exagerava.

Como ele acabara de fazer, atacando uma mulher vulnerável. E não importava que a jovem fosse briguenta e adorasse discutir.

— Perdão — desculpou-se Harry, incapaz de encará-la. — Eu não deveria ter sido tão… — Ele blasfemou, sabendo que não havia como se desculpar por seu péssimo comportamento. — Boa noite — foi tudo que Harry disse antes de se retirar.

Ron saiu correndo atrás, e segurou o mestre pelo braço antes que ele alcançasse a escada que os levaria de volta à taverna.

— Pelo amor de Deus! O que foi aquilo? — ordenou ele.

— Nada! — resmungou Harry, soltando-se. — Ela me irri­tou. Você escutou muito bem a nossa conversa.

— Eu escutei o que você disse.

— Então. Ela me irritou.

— As mulheres não costumam irritá-lo — comentou Ron. — Nunca. Você não se incomoda com o que elas dizem, a não ser quando se trata de sua mãe ou irmãs. Entretanto, um dia na companhia da Srta. Hermione Granger alterou comple­tamente seu comportamento. Não estou gostando nada disso. Nem um pouco.

Harry passou a mão pelos cabelos, exasperado.

— Nem eu. Não estou acostumado a lidar com mulheres perspicazes — admitiu ele. — Vamos descer. Quero uma bebida.

— Eu preciso de uma — falou Ron, seguindo-o.

No quarto, Luna olhava para sua senhora com os olhos ar­regalados.

— Ele não sabe o que diz — comentou ela. — Pelo visto, Harry Potter está acostumado a ter as mulheres a seus pés.

— Também acho — respondeu Hermione, engolindo a dor que as palavras lhe tinham causado. Mas era tolice se magoar. Ela sabia que não possuía nenhum atrativo. E também não se im­portava com o que Harry Potter pensava a seu respeito. Ele era um bandido, mau-caráter e canalha. Nenhuma pessoa de valor se preocuparia com as palavras ou pensamentos de um homem como aquele.

Os tremores de Luna a trouxeram de volta à realidade, e ela começou a tirar sua capa ensopada.

— Tire a roupa. Depressa — ordenou ela. — A porta não tem chave, mas eu ficarei de guarda até que você tenha se enrolado em uma manta. — Com um movimento rápido, Hermione jogou a capa em cima da cadeira e encostou-se contra a pesada porta do quarto.

Luna levantou-se e começou a desamarrar sua capa, que co­locou em cima da outra cadeira.

— Essa pequena lareira jamais secará nossas roupas até o amanhecer — disse ela, abrindo os botões de seu vestido com os dedos gelados. — O Sr. Bostwick tem razão. Ah, meu Deus, eu não consigo tirar meu vestido. Está muito molhado e pesado.

— Venha até aqui para que eu a ajude — instruiu Hermione. — Precisamos ser rápidas, antes que nos tragam a comida e bebida que prometeram. Juro que não conseguirei comer en­quanto não estivermos secas e um pouco aquecidas. — Ela au­xiliou a criada a baixar as mangas compridas do vestido, liberando-lhe os braços.

— Que frio! — reclamou Luna, arrepiada. — Como vamos conseguir nos aquecer?

Hermione apontou para uma das camas.

— Tire suas roupas íntimas, depressa, e enrole-se em uma das mantas. Vou secar suas roupas primeiro, e quando você estiver vestida de novo, será a minha vez.

— Mas como nos aqueceremos milady? — perguntou Luna, despindo-se o mais rápido possível e envolvendo-se com a manta.

— Espero que isso funcione — murmurou Hermione, desamar­rando a pequena bolsa de couro presa em sua cintura. — Eu vi meu tio usando este pó em uma situação parecida, embora admita que gostaria de ter prestado mais atenção. Não sei ao certo quanto usar, nem se adiantará, mas precisamos tentar. Estenda suas roupas aqui no chão. Depressa, Luna! Acho que é só uma pitada — falou ela, momentos depois, enfiando a mão na bolsa para pegar uma pequena quantidade dos grãos brilhantes

Inspirando devagar, ela abriu a palma da mão sobre as rou­pas à sua frente e soprou com calma. Os grânulos foram caindo, brilhantes, como se estivessem vivos. Hermione sabia que se tra­tava apenas de ilusão. Logo uma fumaça púrpura se formou e se espalhou pelo quarto.

Tossindo, Hermione afastou-a, inclinando-se para tocar o ves­tido de Luna. Percorreu os dedos por toda a extensão do tecido, certificando-se de que não se enganara. Por fim, ela ergueu o rosto e sorriu para a criada.

— Está seco!

Luna abaixou-se no mesmo instante para confirmar.

— É mesmo! — exclamou ela, verificando suas roupas ínti­mas e sapatos. — Está tudo seco! Funcionou! Que Deus e seu tio sejam louvados! Eu sempre soube que a magia dele era po­derosa, mas é bem mais do que eu imaginava.

— Não é magia, Luna — falou Hermione. — É alquimia, uma combinação benéfica de alguns elementos da natureza. Não há nenhum tipo de mágica.

— É o que a senhora diz, milady — respondeu Luna, levantando-se com suas roupas — Mas é a única a pensar assim.

Hermione não se incomodou em discutir. Estava com muito frio e molhada para se preocupar naquele momento sobre a opinião do mundo a respeito de magia.

— Eu nem acredito — murmurou ela, aliviada, dez minutos depois, terminando de abotoar seu vestido. — Juro que nunca mais brigarei com tio Albus por passar tanto tempo em sua sala de trabalho.

Uma batida na porta anunciou a chegada da comida que o Sr. Bostwick prometera. Era simples, porém quente e bem pre­parada. Hermione teve a impressão de que jamais comera algo tão saboroso em toda a vida. Havia pão quente com sementes de erva-doce, uma sopa rala de legumes, fatias de queijo forte e, o mais surpreendente em uma taverna tão tosca quanto aquela, deliciosos bolinhos de amêndoa. O vinho que acompanhava a comida estava um pouco ácido, mas a jovem também lhes trou­xera cerveja. E embora não estivessem acostumadas a beber, Hermione e Luna secaram suas canecas.

Pouco depois, as duas decidiram se deitar, contentes e acon­chegadas. Hermione se esqueceu completamente da pedra brilhan­te e da peça de xadrez em sua capa, agora seca, pendurada na cadeira. Ela pegou no sono assim que se deitou e nem se mexeu quando Harry entrou no quarto, minutos depois da meia-noite.

O seqüestrador ficou imóvel ao ver algo brilhando entre as dobras da capa de Hermione.

— Santo Deus! — murmurou ele. — Acho que bebi demais — Ele fechou os olhos e balançou a cabeça, mas não adiantou nada. Quando reabriu os olhos, a capa continuava a brilhar, com menor intensidade.

— Mas o que significa isso? — Harry foi até a capa e tocou-a com cuidado. — Está seca! Como pode ser? É impossível!

Olhando depressa para a cama onde Hermione dormia, Harry pegou a capa e enfiou a mão nos bolsos. Não demorou muito para encontrar alguns objetos, afinal de contas era um exce­lente ladrão.

— Minha nossa! — sussurrou Harry, olhando para sua mão. A pequena pedra que Coll roubara de Hermione, aquela pequena e insignificante pedra, brilhava mais do que a lua. E brilhava tanto que todo o quarto estava iluminado. Entretanto, a pedra estava tão fria quanto antes, reluzindo sem emanar calor.

Feitiçaria.

Só podia ser feitiçaria.

Sir Draco comentara que os rumores sobre a família Granger eram falsos, e Hermione dissera o mesmo, mas com certeza aquilo era magia. Com cuidado, ele encostou na peça de xadrez ao lado da pedra, imaginando qual seria o poder daquele objeto. Talvez a rainha falasse, ou fizesse profecias. A simples idéia o arrepiou todo.

— Ladrão!

De repente, a pedra e a peça de xadrez não estavam mais em sua mão. Harry sentiu um golpe no ombro e se virou para deparar-se com Hermione. O golpe doeu mais nela, o que a enfureceu ainda mais.

— Como você se atreve a mexer nas minhas coisas? — berrou ela, alto o suficiente para que toda a taverna escutasse, mesmo com a barulheira.

Harry levou o dedo aos lábios.

— Fale baixo para não acordar sua criada.

— Eu não me importo se ela acordar! — exclamou Hermione, segurando a pedra e a rainha contra seu peito. — O que quer com as minhas coisas? Você me deu sua palavra de honra, jurou que estaríamos a salvo neste quarto, que não havia o que temer.

— E é verdade — respondeu Harry, irritado por ter sua honra questionada. Era um bandido, mas mantinha seus jura­mentos como qualquer cavalheiro da realeza o faria. — Eu não roubei nada, e só vim até aqui para ver se vocês estavam bem e confortáveis. — Ele chegou mais perto, encontrando o olhar furioso de Hermione. — E quando abri a porta, deparei-me com sua capa brilhando, por causa da pedra que lhe tinha sido rou­bada. Pensando bem, agora compreendo o motivo do seu ner­vosismo naquele momento. Não era a fraqueza que fazia sua mão tremer quando eu lhe devolvi a pedra, mas o pavor de ter um objeto tão precioso roubado.

— Não, foi a alegria de recebê-lo de volta. — Ela abriu a palma da mão, estendendo-a. — Você queria que alguém en­contrasse isto? Uma pedra brilhante? Queria?

Não, não queria, admitiu Harry em silêncio, porém em sua família não havia feiticeiros.

— É algum tipo de mágica — disse ele. — Não há como negar.

— Nego. E com veemência. Essa pedra brilha apenas por possuir os elementos certos. Não é diferente do carvão que bri­lha com o fogo, ou de diamante, que reflete luz colorida.

Harry balançou a cabeça.

— Não é só isso — disse ele, esfregando um pedaço do tecido da capa de Hermione entre os dedos. — Suas roupas estão secas. Sua capa está seca. E não faz nem duas horas que você estava ensopada. — Harry tocou-lhe os cabelos. — Seus cabelos ainda estão molhados. Eu ainda estou molhado, apesar de ter ficado na frente da lareira. E aposto como as roupas da Srta. Luna também estão secas. Se não se trata se magia, Srta. Hermione, então peço que me explique o que é.

A face tão expressiva de Hermione, iluminada pela pedra bri­lhante, encheu-se do desdém que o deixara tão nervoso horas atrás.

— Eu sou sua prisioneira, Harry Potter. A não ser que você ameace me bater, não pretendo lhe dar nenhum tipo de explicação.

Ela se abaixou, pegou a capa no chão, e enfiou imediatamen­te a pedra brilhante e a rainha de volta em um dos bolsos. A iluminação no quarto diminuiu, e a capa voltou a reluzir.
Hermione levou-a consigo para a cama e não disse mais nenhu­ma palavra a Harry.

Ele ficou parado dentro do quarto por mais alguns instantes, escutando o barulho da taverna, os gritos e as risadas. A Hermione estava de costas, com o rosto virado para a parede, mas o brilho da pedra iluminava-lhe as feições.

Harry suspirou, sabendo que enfrentaria grandes dificulda­des nos meses seguintes. Lembrou-se da brincadeira de Ron, que dissera que Hermione se apaixonaria no momen­to em que o visse, e ele concordara. Como tinham se enganado… E agora tinham uma preocupação a mais com aquelas duas prisioneiras. Uma pedra que brilhava e a misteriosa rainha de xadrez, além de magia.

Ele não esperava por isso, o que o deixou confuso. Estava preparado para enfrentar a ira do irmão de Hermione, mas como poderia se defender de feitiçaria?

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