Chave de Portal





Ao voltar a si, o trio se viu ainda sentado na grama fofa e úmida do jardim do prédio. Cansados, respiravam como se tivessem corrido uma maratona. Bichento, que estava sentado no banco de pedra do jardim durante o ritual, aproximou-se e começou a lamber as mãos de Mia, de onde antes emergira todo aquele fogo manipulado pelo poder mágico e influenciado pela Lua. A ruiva ainda estava em transe quando ouviu a voz distante de Hermes:

- Uau! Vocês viram o que eu fiz? Vocês sentiram? – ele demonstrava claramente o entusiasmo, mexendo os dedos das mãos para tentar perceber se aquilo era real. Levantou-se então e procurou concentrar energia com as palmas das mãos posicionadas uma em frente à outra. Um pequeno globo de ar em movimento surgiu entre seus dedos, fazendo com que o loiro desse pulos de alegria. – Cara, eu sou mesmo um bruxo! Ah, eu sabia que deveria ter algum poder especial! Eu sou o máximo!

- E é sempre muito convencido e cheio de si - Daniel parara ao lado do amigo, sorrindo com o canto dos lábios. – Nós somos bruxos - e com a imposição de sua mão direita provocou uma pequena tempestade que consumiu o redemoinho de ar de Hermes. Este, fingindo revolta, deu um tapa de leve na cabeça de Daniel.

- Ei, babaca! Não estrague o meu feitiço! – ambos riram, sentindo-se como se fossem crianças com seus novos brinquedos de Natal.

Mia observava os dois amigos com o pensamento ainda longe dali. Continuava sentada no chão frio enquanto eles se divertiam com a nova perspectiva e o novo poder. Enquanto seguia os passos dos amigos sem vê-los de fato, a ruiva ouviu dentro de sua mente a voz de Wyrda: “Conseguiste”. O primeiro passo estava dado, mas ela não sabia se o encarava com a mesma felicidade e empolgação dos amigos ou se aquele poder significaria a sua ruína, assim como fora a de Harry Potter.

Hermes e Daniel pararam de rir quando se deram conta do estado em que Mia estava: os cabelos desalinhados, com os cachos embaraçados, o rosto muito branco e o olhar perdido. Daniel sentou ao lado da amiga e tomou para si a mão dela. Um pequeno acumulo de energia entre os dois provocou uma ligeira onda de choque. Eram opostos e perfeitamente iguais.

- Eu senti – o moreno dissera, e Mia apenas assentira com a cabeça, concordando. – Aliás, eu ainda sinto – e passou a mão carinhosamente pelo rosto da menina, afastando os cabelos desgrenhados que insistiam em cair sobre os olhos dela.

- Vamos ter que fazer uma coisa difícil, meninos – Mia dissera, suspirando em seguida e forçando o corpo para se levantar. Quando os encarou, sua voz estava firme e decidida. – Vamos ter que ir até Azkaban.

- Azkaban? A prisão bruxa da qual minha mãe falou? – Hermes questionara, enquanto Daniel fazia cara de quem não havia compreendido a informação.

- Sim, a prisão bruxa, Hermes – Mia se abaixou, pegou Bichento nos braços e correu o olhar pelos rostos dos dois amigos, tentando perceber o que lhes ia ao coração. – E eu já sei como conseguir informações sobre isso sem levantar suspeitas. Mas agora não é a hora nem o lugar para discutirmos isso. Precisamos descansar nossos corpos e mentes para que possamos estar preparados para o que virá.

- Estou com medo de você, Mia – Hermes assobiou e olhou para Daniel, que parecia igualmente surpreso, mas não se manifestara. Depois, voltou-se novamente para a amiga – Você fala como se fosse a minha mãe... e isso não é nada bom...

Naquela noite, Daniel se enchera de desculpas, alegando que não poderia receber Hermes para dormir em seu apartamento. O loiro disse que já imaginara isso e fez um pouco de drama, reclamando que dormiria ao relento e que se tornaria mais um indigente perdido pelas ruas de Londres. Era óbvio que Mia já contava em receber o amigo em casa, e preparou para ele um colchão na sala. Ao sair do elevador, Daniel deixara um boa noite um tanto quanto introspectivo, como se estivesse absorto em seus próprios pensamentos e questionamentos. Quando o elevador voltou a subir rumo ao décimo quinto andar, Hermes encarou Mia, que perguntou para o amigo:

- Você está pensando a mesma coisa que eu?

- Se for de onde vieram os poderes dele, pode ter certeza, eu estou pensando. Afinal, nós somos filhos de bruxos, mas Daniel não é. Muito estranho...

- É... Daniel não é...

Os dias de outubro passavam velozes em meio às aulas, trabalhos e o início das provas de algumas disciplinas. O trio continuava se reunindo quase todas as tardes, mas os filmes, jogos e até mesmo os deveres menos urgentes foram deixados de lado. O que importava agora eram os treinamentos de magia, quase sempre realizados no quarto trancado de Mia e, em algumas noites especiais, no jardim do prédio. Aprenderam uns com os outros a concentrar a energia nas palmas das mãos para realizar os feitiços. Nenhum deles, no entanto, era muito complexo. Basicamente aprendiam a controlar objetos, chamá-los para si ou expulsá-los, abrir ou fechar portas, apagar e acender luzes e desarmar os oponentes. Todos eram realizados sem varinhas, utilizando apenas a força interior que cada um deles possuía. A mão era o filtro condutor da energia. No início destruíram algumas coisas no quarto de Mia até que pudessem controlar melhor os poderes. Enquanto isso, também treinavam suas habilidades naturais, Hermes com a manipulação do ar, Daniel com a água e Mia com o fogo. Estas seriam as armas mais importantes das quais fariam uso para colocar em prática o plano da ruiva.

Nesse meio tempo, tia Gina pedira a Mia que, pelo menos por enquanto, não contasse nada aos Weasley sobre ela. Precisava primeiro fazer com que o senhor Malfoy aceitasse a idéia de que ela voltaria a se relacionar com a família. Os três não entenderam direito os motivos da mãe de Hermes, e ela também não fizera questão de os explicar. Havia ainda um mistério em torno da figura de Draco Malfoy, e Mia pretendia desvendá-lo. Qual teria sido a participação do agora tio na Última Batalha contra o Lorde das Trevas? Mesmo com todas as dúvidas, o trio concordou em esperar o tempo certo, seja lá qual ele fosse. Por outro lado, nenhum dos adultos sabia do audacioso plano de Mia para tentar resgatar os pais em Azkaban:

- Hermes vai provocar um furacão. E você, Daniel, será o responsável pela tempestade. Encha-a de relâmpagos e trovoadas, se puder. Enquanto vocês distraem os guardas, usarei um feitiço de impermeabilidade e irei procurar a cela dos meus pais. Abrirei o cadeado com um feitiço, retirarei ambos de lá e fugiremos realizando uma aparatação acompanhada. Afinal, meus pais sabem como fazer isso e nós três ainda não.

- E como você pretende colocar todo esse plano em prática? – Daniel perguntara, externando também as dúvidas de Hermes. – Afinal, você já esteve em Azkaban antes?

A ruiva achava que ainda não chegara o momento de falar sobre O Oráculo e as lembranças que vira na Penseira de Wyrda. Balançou a cabeça de um lado para o outro para indicar que nunca havia estado na prisão bruxa.

- Então como vamos descobrir onde ela fica? Somos bruxos, não videntes – Daniel insistia.

- Eu vou pesquisar na casa dos meus tios gêmeos. Eles têm muitos livros sobre o mundo bruxo e acredito que, se lê-los, posso criar uma Chave de Portal que nos levará até lá.

Daniel olhou para Hermes e sorriu. Sem entender direito, Mia buscou os olhos verdes dos quais tanto gostava e tentou imprimir a seus castanhos uma aura de dúvida. O moreno falou, escolhendo com cuidado as palavras, sem deixar de presentear Mia com o sorriso pelo qual ela se sentia capaz de matar e morrer.

- Este plano é a coisa mais maluca, insana e suicida da qual eu já ouvi falar na vida!

- E é por isso que estamos dentro! – completou Hermes, piscando um dos olhos cinzentos em seguida.




O dia das bruxas se aproximava e enchia o plano dos três amigos de simbologia. Seria a data ideal para tentar atacar as forças inimigas e resgatar o senhor e a senhora Weasley. Eles imaginavam que deveria haver uma comemoração especial para celebrar o Halloween por parte dos bruxos das trevas, o que diminuiria consideravelmente a guarda sobre a prisão bruxa. Afinal, além de ser uma data de importância para os bruxos, o Halloween marcava o dia em que Voldemort vencera a Última Batalha.

Faltava apenas uma noite para o tão esperado plano ser colocado em prática e Mia se sentia um tanto quanto nervosa. Estava em seu quarto e analisava cada centímetro das folhas de caderno onde traçara e retraçara as táticas com Hermes e Daniel durante os últimos dias. Anotara tudo o que pudera encontrar na internet sobre bruxaria, sabendo que muito daquilo seria completamente inútil porque não passava de baboseira religiosa. Precisava dos livros dos gêmeos Weasley. E, por mais cruel que o plano fosse, teria que executá-lo para conseguir as informações necessárias e enfeitiçar a Chave de Portal. Escolhera o mesmo caldeirão que haviam utilizado no primeiro ritual da Lua, onde o trio descobrira seus poderes. Aquela seria a chave que os levaria a Azkaban. Mia gostava de jogar com o destino e traçá-lo a sua maneira. Era uma forma de provar a si mesma se estava preparada ou não para o fardo que teria que carregar. Afinal, não era apenas salvar os pais, mas também o que viria depois. A ruiva não abandonaria os Renegados e lutaria com eles até o fim para recuperar o que um dia fora o mundo bruxo na Inglaterra. Livrar a bruxidade do domínio do Lorde das Trevas era questão de honra para a menina e, apesar de não saber ao certo o porquê, tinha certeza de que tinha um papel fundamental a desempenhar nesta luta.

Resolveu apagar as luzes e tentou adormecer sem sucesso. Do décimo quinto andar ainda era possível escutar o barulho de uma Londres que nunca dormia, o trem de Kings Cross passando veloz pelos trilhos, barulhos de carros e buzinas distantes e um burburinho longínquo de gente. No entanto, tudo parecia descolado da realidade de Mia. Como pôde sentir durante tanto tempo que não pertencia àquele mundo e não fazer nada a respeito? Como passou tanto tempo apática, simplesmente vivendo um dia após o outro sem questionar sua própria existência? Agora, o peso da responsabilidade de ser quem era envergava suas costas e impedia seu sono. Era de certa forma uma das responsáveis pelo destino de um povo. E precisava mostrar que podia mudá-lo, ao mesmo tempo em que se desesperava com a hipótese de falhar. Era jovem demais para tanto.

O sol nasceu e banhou as frestas da janela com sua luz. Mia pulou da cama, pronta para a encenação. Prometendo a si mesma que, assim que voltasse, desfaria tudo aquilo, entrou devagar no quarto e viu vovó Molly ainda adormecida na cama. A ruiva havia aprendido a preparar uma Poção do Sono, na verdade uma mistura minuciosa de medicamentos trouxas que não faria mal a avó, mas que a deixaria profundamente adormecida. Usara uma dose fraca e, além do coquetel de medicamentos, fizera uma prece silenciosa para invocar os poderes de Morpheus, que potencializariam com energia mágica a beberagem. Pedindo desculpas a avó mentalmente, abriu a boca de Molly com cuidado e despejou o conteúdo da caneca, impondo as mãos sobre o corpo adormecido logo em seguida e produzindo uma luz vermelha que entrou logo atrás da bebida pelo corpo da avó. A senhora ainda produziu alguns espasmos e resmungou, ficando completamente estática depois. O coração de Mia quase saía pela boca quando ela encostou o ouvido no peito da avó e ouviu os batimentos cardíacos ritmados. Dera o primeiro passo rumo ao futuro desconhecido, mas meticulosamente planejado.

Ligou para os tios, fingindo desespero e perguntando o que deveria fazer, já que não conseguiu acordar a avó naquela manhã. Tio Fred e tio Jorge, que já haviam retornado da misteriosa viagem, demonstraram uma evidente preocupação e disseram que estariam lá em minutos. Algum tempo depois, entraram no apartamento e encontraram Mia sentada no sofá, com os olhos molhados de falsas lágrimas. Dentro de si mesma, travava uma batalha interna, enojada com suas atitudes, mas tentando internamente justificá-las como a única forma de salvar os pais. Grande parte do plano era idéia de Hermes, e assustou a ruiva perceber o quão cruel seu amigo podia ser em determinados momentos, de uma forma muito mais fria e calculista que ela. Essa personalidade a lembrou imediatamente o senhor Malfoy, dando a certeza de que Hermes era realmente um descendente de Draco.

Os tios gêmeos levaram Molly para o hospital e, enquanto ela era examinada, Mia alegou que precisava descansar um pouco, pois não dormiu direito à noite por pressentir algo. Os tios engoliram facilmente a isca e Fred foi encarregado de levá-la para a mui antiga e nobre casa. A ruiva percebeu que, antes de sair, Fred passou pela porta do quarto secreto murmurando algumas palavras, provavelmente para reforçar o feitiço de proteção do local. Mal sabia ele que a sobrinha havia descoberto que era bruxa e teria meios de entrar lá, independente do que ele fizesse. Com orientações de cuidado e informando que viria buscá-la dentro de algumas horas, Fred saiu de casa para fazer companhia ao irmão e esperar os resultados dos exames de Molly no hospital.

Assim que o tio bateu a porta da frente, Mia telefonou para Hermes e se dirigiu ao mesmo tempo para a porta lacrada. Quando o loiro atendeu o telefone, ela apenas disse:

- Pronto.

Era o sinal. Hermes chegaria dentro de alguns instantes com Daniel, pois ambos estavam próximos à casa dos gêmeos esperando o consentimento de Mia para prosseguir. Enquanto isso, a menina abriu a porta do quarto secreto com a ajuda de um feitiço e adentrou no aposento, que não mudara nada desde a primeira e última vez em que estivera lá. Olhou com carinho para o armário sumidouro, se lembrando de Wyrda. Mas agora não havia tempo para pedir a opinião do Oráculo sobre o que faria. Era uma chance única e eles precisariam aproveitá-la. Parou em frente ao espelho, fitou-se mais uma vez e viu a mesma imagem refletida: Daniel ao seu lado, os pais ao fundo, e o olhar de tristeza estampado em sua face. Tocou o próprio rosto de leve e percebeu uma lágrima deslizando pela bochecha sardenta da imagem refletida, sem entender. Sua mente estava bloqueada pela adrenalina naquele momento, pois se pudesse ouvir as vozes que bradavam dentro dela mesma jamais teria prosseguido com o plano. Mas não havia tempo a perder. Olhou os livros das prateleiras, escolhendo um título do qual se lembrava muito bem: Viagens mágicas. Na época em que vira o exemplar pela primeira vez, imaginou tratar-se de contos fantásticos. Ao abrir a capa e ler as páginas amareladas, se deu conta de que aquilo era exatamente o que precisava. Buscou no índice a parte referente à Chaves de Portais e começou a ler o procedimento, retirando o caldeirão da mochila que trouxera consigo. Agora precisava provar que era uma bruxa de verdade.

Foram seis tentativas até Mia ter certeza de que o objeto os levaria para Azkaban. Apesar de só ter estado lá numa lembrança, Mia era capaz de visualizar com perfeição e riqueza de detalhes o local em sua mente, o que era necessário para realizar o feitiço sobre a Chave de Portal. Nesse meio tempo, Daniel e Hermes chegaram, abrindo a porta de entrada da casa dos gêmeos com um dos feitiços que vinham treinando durante aquele tempo. Acompanharam o procedimento da amiga, observando as gotas de suor que desciam pela testa enquanto ela pronunciava as palavras mágicas e impunha as mãos sobre o caldeirão para realizar o encantamento. Sempre que conseguia produzir um feitiço, saíam da palma de Mia feixes de luzes avermelhadas, assim como as de Hermes e Daniel tinham tons diferenciados de azul.

- Você tem certeza que isso aí vai nos levar para lá? – Hermes parecia em dúvida depois que Mia anunciou ter finalizado a execução da Chave de Portal. – Um caldeirão velho vai ter o poder de nos mover para um lugar que nem sabemos onde fica?

- Não é o caldeirão velho que vai nos levar. É o poder da nossa magia.

Ao dizer isso, Mia encostou a ponta do dedo indicador no corpo do utensílio doméstico e sentiu uma energia pulsante que não estava ali antes. Incitou os dois amigos a fazer o mesmo e, no momento seguinte, o trio rodopiava com as pernas esticadas, varando os céus de não se sabe onde rumo ao desconhecido que, até então, Mia só presenciara nas lembranças da Penseira do Oráculo.

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