Tentativa e erro





A bruma cobria o campo onde o trio aterrissou com a Chave de Portal. Era uma neblina gelada e triste que tomava conta de qualquer coisa que estivesse por perto. Mia, que já havia viajado com uma Chave de Portal antes, teve apenas um leve desequilíbrio, mantendo-se de pé depois que soltaram o caldeirão. Já Daniel e Hermes caíram estatelados no chão, de cara para a terra batida onde não crescia nenhum ser vivo. Hermes içou o corpo e já estava prestes a xingar quando Mia levou a mão aos lábios num pedido mudo de silêncio. O loiro engoliu a fala e o pomo de adão na garganta saltou. Daniel já batia o pó da jeans e olhava ao redor, examinando com a ponta dos dedos as paredes negras e sólidas de uma grande fortaleza.

- Como é que vamos passar por isso? – Daniel perguntou em voz baixa, enquanto examinava atentamente as paredes e as tocava em busca de alguma rachadura, o que parecia impossível.

- Água mole em pedra dura tanto bate até que fura – Mia repetiu o ditado popular, agora mais literal que nunca.

- Você quer dizer que eu vou fazer chover nessa parede até que se abra um buraco de um tamanho possível para que nós possamos passar? Vou esgotar toda a energia que eu tenho, Mia! Depois, como vou provocar a tempestade quando estivermos lá dentro?

Pronto. Mia não havia pensado nisso. Na verdade, estava tentando resolver uma parte do plano com a qual não contava. Tanto planejamento e ela simplesmente se esqueceu de que, na vez em que esteve lá sozinha, só conseguiu ultrapassar as sólidas paredes do muro externo de Azkaban porque se tratava de uma lembrança. A única coisa que conseguiu fazer foi bater os pés no chão, amaldiçoando-se em silêncio por ser tão estúpida a ponto de esquecer algo tão básico.

Enquanto se irritava consigo mesma, ouviu um psiu murmurado de longe. Era Hermes, que caminhou para uma curva no paredão, e agora chamava os dois amigos para o local onde estava. O loiro apontava para alguma coisa que Daniel e Mia não conseguiam enxergar. Ambos olharam na direção para a qual Hermes apontava e ao redor, mas não viam nada além de neblina e paredes negras. Aquilo era bastante estranho. Hermes percebeu a atitude dos amigos e fez cara de contrariado. Aproximou-se deles para que pudessem ouvi-lo:

- Vocês não estão vendo? Temos dragões alados aqui. Pelo menos eu acho que são dragões, apesar de serem tão pequenos e esquisitos. E também não cuspiram fogo pelas ventas ao me verem e...

- Do que é que você está falando, Hermes? Bateu a cabeça na terra quando caímos, foi isso? – Daniel questionava, olhando para Mia sem compreender a atitude do rapaz.

Hermes parecia transtornado. Tocava o focinho do animal ao seu lado, que tinha as asas abertas e prontas para alçar vôo. Era um exemplar escuro, dotado de articulações poderosas, que agüentaria facilmente o peso dos três. O bicho era bastante grande e possuía um couro negro e duro, além de feições répteis que fizeram o loiro supor que o animal só podia ser um dragão, como aqueles que já vira em desenhos na televisão.

- Qual é? Ficaram cegos? O bicho está aqui do meu lado, oras! – e para provar o que falava, Hermes içou o corpo para cima do animal, montando em suas costas e acariciando o pescoço dele. – Vocês vêem agora?

Daniel e Mia quase caíram para trás ao ver Hermes flutuando no ar como se estivesse montado no dorso de um quadrúpede. O moreno levou o nó do dedo indicador dobrado aos olhos, coçando e piscando as pálpebras para parar de ter alucinações. A ruiva permanecia boquiaberta. O loiro, então, percebeu que os amigos não enxergavam o animal. Mas... ele estava ali! Afinal, Hermes não sabia voar e estava sentado nas costas do bicho.

- Bem, a gente não vê nada, Hermes, mas eu acho que sei o que é isso – Mia, com um estalo, se lembrou da penseira, onde viu os pais voando em alguma coisa que não conseguia enxergar. – Se esse negócio que você diz ser um dragão realmente voa, então é com ele que vamos atravessar essa muralha. Você acha que o bicho agüenta nós três?

- Eu acho que sim – Hermes olhava para o animal alado, buscando se certificar do que dizia.

- Então anda, desce daí e venha nos ajudar, afinal, não podemos enxergar onde vamos subir sem a sua ajuda.

Daniel parecia estupefato e nada feliz com a idéia de voar no dorso de alguma coisa que ele sequer enxergava. Hermes desmontou do bicho e tomou Mia pela mão, ajudando-a a subir. Depois, virou para o moreno e falou:

- Vai, Daniel! Eu não vou ficar segurando a sua mãozinha para você montar no meu dragão!

- Seu dragão, Hermes? – Daniel vinha tateando o ar, até que encontrou o pescoço do animal e içou o corpo logo atrás de Mia. – Já se apoderou do bicho que só você vê?

- Claro! Se só eu vejo, é meu – Hermes completara, com um olhar de desdém, como se a coisa fosse tão clara quanto água.

- Anda, parem os dois! – Mia interrompera a exibicionisse dos rapazes. – Hermes, suba e vamos logo, quanto mais rápido fizermos o que precisa ser feito, mais rápido poderemos sair daqui. Este lugar me dá arrepios.

Hermes concordou com um aceno de cabeça e montou à frente de Mia. Pediu para os dois amigos recuarem um pouco e ajustou os joelhos dobrados quase em volta do pescoço do animal. Quando o loiro se sentiu pronto e ao abrir a boca para ordenar que o bicho voasse, este abriu as asas e levantou para o céu velozmente, como se tivesse lido seu pensamento. Com o tranco, Daniel se agarrou à cintura de Mia para evitar que escorregasse o corpo pelo dorso liso do animal. Ao tocá-la, ambos sentiram um leve choque lhes percorrer a pele, e permaneceram assim enquanto Hermes estava extasiado, com os braços abertos, o vento batendo no cabelo loiro e despenteando o potente gel. O bicho atravessou as altas paredes da fortaleza com a facilidade de um pequeno pássaro, e pousou ao lado de uma árvore morta e retorcida que havia próximo ao muro. Daniel foi o primeiro a desmontar de maneira apressada, seguido de perto por Mia. Hermes ainda permaneceu um tempo nas costas do animal e murmurou algumas palavras próximo ao que deveria ser a sua cabeça. Para a ruiva e o moreno, a cena era chocante e desconexa. Sabiam que havia alguma coisa ali, que inclusive os levara pelos céus até o interior da fortaleza, mas o fato de não conseguir enxergá-la tornava aquilo um tanto quanto sobrenatural. E qual era a explicação para que Hermes pudesse vê-lo?

Não havia tempo para buscar respostas. O loiro desmontou e se juntou ao grupo, que caminhou devagar rumo ao que parecia ser a porta de entrada da prisão. Mia notou que não havia nenhum daqueles estranhos guardas patrulhando o local. Lembrou-se deles com um arrepio: encapuzados, flutuando de um lado para o outro, com enormes feridas nas mãos descarnadas e produzindo uma fumaça modorrenta ao respirar. Não vê-los, ao invés de trazer alívio, deu certeza a menina de que havia algo errado por ali.

Escondendo-se como podiam ao longo da construção, atravessaram a enorme porta de pedra que guardava o interior da fortaleza de Azkaban. Não havia resistência nenhuma que pudesse impedi-los de avançar. Mia tomou a escada que outrora vira na Penseira e começou a descer os degraus, seguida de perto pelos dois rapazes. Os archotes das paredes laterais estavam quase apagados e o fogo que ardia mal iluminava o degrau a seguir. Mia impôs as mãos à frente do corpo, produzindo um pequeno feixe de luz, e continuou descendo vagarosamente a escada de pedra.

Ao chegar nas masmorras que serviam como prisão, Mia entendeu porque os guardas não estavam patrulhando a área externa. O barulho era ensurdecedor e não havia como notar os três corpos que se esgueiraram pela parede da masmorra e se esconderam num canto aonde a luz não chegava. Os horríveis seres, que tinham como obrigação vigiar os prisioneiros de Azkaban, estavam dispostos em um círculo. Observavam dois bruxos mascarados segurarem pelos braços um homem e uma mulher, ambos ajoelhados no chão duro. O casal estava seminu, com feridas abertas e sangrando espalhadas por toda a extensão do corpo. O trio tinha a impressão de que os gritos e lamentos dos outros prisioneiros podiam ser ouvidos a quilômetros de distância dali, mas as paredes grossas isolavam bem a barulheira. Era como se eles protestassem contra algo que aconteceria em breve, algo cruel e mortal que não poderia ser evitado.

O coração de Mia estava na boca e um arrepio gélido percorria toda a extensão de seu corpo, provocando ligeiros espasmos. Podia sentir a mão de Daniel, fria e suada, apertando a sua de um lado, enquanto Hermes segurava seu ombro do outro. Os dois mascarados levantavam as varinhas para o alto e riam, enquanto os guardas continuavam em círculo, apenas observando um pouco afastados.

- Chegou a hora de vocês pagarem por não fornecerem a ajuda que nosso Mestre precisa – uma voz feminina, cruel e fria como gelo, ecoou por debaixo da máscara que cobria o rosto de um dos algozes.

- Sim, minha cara – o outro mascarado tinha voz de homem, e gargalhou logo depois de concordar com a mulher. – Terei o maior prazer em enfeitiçá-los, malditos Weasley traidores do sangue!

O choque fez com que os joelhos de Mia envergassem, e ela caiu logo em seguida, o rosto contorcido pelo horror da revelação. Não fora capaz de reconhecer os próprios pais! O que haviam feito com eles? Daniel e Hermes levantaram o corpo da amiga, um de cada lado. O trio sabia que era a hora de agir, antes que fosse tarde demais. De repente, dois gritos estranhos e dois feixes de luz amarela explodiram diante dos olhos assustados dos jovens, atingindo em cheio o senhor e a senhora Weasley.

- OBLIVIATE!

O casal não se moveu com o feitiço, mas seus olhos adquiriram um aspecto completamente vazio. Os mascarados viraram as costas para se retirar, ordenando que as criaturas encapuzadas cuidassem do casal. Nesse momento, as capas que cobriam os corpos cheios de feridas começaram a voar por conta do enorme vendaval que atingiu a masmorra. Raios e trovões foram ouvidos e uma tromba d´água gigantesca arrastou a maior parte dos guardas que anteriormente estavam dispostos em círculos. Enquanto Daniel e Hermes controlavam seus poderes para tentar causar o máximo de desordem possível, Mia corria em direção aos pais. Agarrando-os pelos braços, tentava forçá-los a se levantar e seguir com ela. No entanto, ambos estavam estáticos, sem forças para se movimentar e sem perceber o que acontecia ao redor. A água que escorria de seus corpos manchava o chão ao redor de sujeira e sangue. Os dois mascarados notaram a movimentação próxima ao casal e avistaram Mia ajoelhada ao lado dos pais. Apontando a varinha na direção da menina, a mulher gritou:

- CRUCIO!

Uma dor sem limites atingiu o corpo da menina, fazendo com que ela emborcasse no chão e se contorcesse inteira. Era como se um milhão de facas ultrapassassem seu corpo inteiro e produzissem uma dor tão grande que Mia imaginou que a morte seria mais agradável. Os mascarados aproximavam-se, protegidos do vento e da tempestade por algum feitiço repelente semelhante ao que a ruiva utilizava.

- Ora, ora! Se não é mais uma Weasley traidora do sangue. Veio salvar mamãe e papai, pequena nojentinha? – a mulher sorria com desdém, o olhar crispado de ódio colado em Mia, que se contorcia no chão. – Você acha que, sendo trouxa como é, poderá ser páreo para MIM? A serva mais fiel e mais leal ao Mestre? Aquela a quem ele deu o poder e a imortalidade?

A dor cessou de repente, mas a mulher mascarada se aproximava com a varinha apontada para a menina, cada vez mais perto. Mia abriu os olhos e notou que a chuva e o vendaval estavam diminuindo. Daniel e Hermes pararam ao lado da amiga com as mãos ainda impostas, molhados da cabeça aos pés e visivelmente cansados pelo esforço de controlar a natureza por tanto tempo. Sem a bagunça generalizada, os guardas de Azkaban voltaram a se organizar para encurralar o trio e o casal Weasley, que não reagira ainda. Mia começou a sentir uma tristeza e um pessimismo tomarem conta de si mesma. Tudo fora em vão. Ela havia falhado. Como poderia ser a salvação dos Renegados e de seu povo se não fora capaz nem de resgatar os próprios pais? Diante de si mesma, tudo o que via era a perdição, o fim se aproximando velozmente na cavalgada de um corcel prateado.

Um corcel prateado? - pensara a ruiva, enquanto o cavalo trotava diante de seus olhos, afastando os guardas e deixando estáticos os dois mascarados. Quando criou coragem e olhou para o lado, viu a figura do Oráculo, trajando as mesmas vestes verdes com detalhes marrons e segurando uma varinha, de onde o fiapo de luz prateada saía para dar origem ao belo animal. Aproximando-se da menina, Wyrda pediu para que ela retirasse da mochila a Chave de Portal, enquanto ele afastava os dementadores.

- Dementadores? – Hermes perguntara, ainda com a mão imposta, mas já sem produzir nada além de uma pequena brisa. – O que são dementadores?

- São os guardas da prisão de Azkaban – Wyrda dissera. – Mas agora não há tempo a perder. Quando eu disser três, toquem no caldeirão e saiam daqui. Mia, tu tens que segurar os braços de teus pais para que dê certo.

Mia fez com que a mãe e o pai dessem as mãos e agarrou o pulso esquerdo do senhor Weasley. Posicionou o dedo na Chave de Portal e estava pronta para voltar quando deu por falta de Daniel. O desespero tomou conta da menina, que olhava para Hermes enquanto o loiro deslocava o corpo de um lado para o outro para tentar localizar o amigo.

- DANIEL!!!

O grito de Mia ecoara pelas masmorras quando avistou o moreno, completamente dominado por uma série de dementadores. Ele não lutava, permanecia estático, enquanto uma das criaturas estava prestes a depositar um beijo em sua boca.

- Rápido, Wyrdfell! A Chave de Portal!

Wyrda recolhera o corcel prateado e tocava no caldeirão. Hermes também colocou um dos dedos da mão no metal frio e esperava que Mia fizesse o mesmo, mas a menina não conseguia tirar os olhos de Daniel. Hermes agarrou a mão dela e, com um grito, começaram a girar, afastando-se de Azkaban e deixando um pedaço de si mesmos para trás.

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