O passeio do gato





Bichento protestou com alguns miados estridentes quando escapuliu da caixa onde fora carregado por Mia durante a mudança. O animal fez o reconhecimento do apartamento ainda sob alguns protestos, mas depois se refestelou no sofá da sala de vovó Molly e adormeceu enroscado nas almofadas. Pena que a paz para o gato não durou muito tempo.

Com o passar dos dias, depois que as coisas já estavam relativamente organizadas, Mia começou a dedicar seu tempo para a leitura de livros. Vovó Molly tinha uma estante cheia deles, num pequeno quartinho nos fundos do apartamento. Eram prateleiras de madeira desgastada que forravam a parede de cima a baixo, envergadas pelo peso de vários exemplares dos mais diversos tamanhos e formatos, dispostos sem nenhuma ordem aparente. As capas coloridas e a luz difusa davam ao quartinho uma espécie de aura intelectual que Mia adorava. Era uma pequena e fantástica biblioteca particular, que Mia fazia questão de devorar nas temporadas que costumava passar com a avó nas férias de verão. E não seria diferente agora que morava no apartamento.

As aulas não haviam começado ainda, mas o início do ano letivo estava próximo. Mia já estava matriculada num colégio vizinho, no fim da rua e do lado da estação de trem de Kings Cross. A senhora Weasley conseguira um emprego numa loja do centro movimentado de Londres, e o senhor Weasley saía todos os dias bem cedo para procurar alguma ocupação também. Mia passava a maior parte do dia com vovó Molly, que contava histórias fantásticas e fazia piadas com todos os programas de televisão. Mas a maior parte do tempo de Mia era dedicado mesmo à pequena biblioteca, onde a menina devorava alguns dos exemplares empoeirados. O único problema capaz de macular a paz da menina nesses dias era Bichento.

O gato estava impaciente de tanto ficar preso dentro do apartamento. Arranhou o sofá, rasgou as almofadas da cama e afiou as unhas nas cortinas da sala. Ronronava de modo emburrado para a janela entreaberta, atento ao menor barulho do trem rangendo nos trilhos lá embaixo. Num dia em que estava tão quente que Mia achava que seus miolos fossem derreter, Bichento escapuliu pela porta aberta quando vovó Molly foi receber um vendedor. Ele saiu miando pelo corredor e entrou pela porta corta-fogo, determinado a alcançar a escada. Intrigada pelo senso de orientação do gato, Mia saiu correndo atrás dele, perplexa com o fato de vovó Molly ficar apenas sorrindo em sua direção enquanto via o gato da nora escapulir pelo corredor.

"Droga de gato maluco! Devia ter ido passear com ele antes. Se Bichento sumir, mamãe vai me matar!"

Abriu a porta corta-fogo, que rangeu sinistramente. As dobradiças eram velhas, assim como todo o resto da construção, e a pintura vermelha descascava nos cantos. Ao fechar a porta atrás de si com um baque surdo, Mia viu-se numa escadaria escura, contornada por grades. Olhando para baixo, via o fim da escada e uma pequena e distante luminosidade amarelada. Tateou a parede a procura do interruptor, mas não conseguia encontrá-lo.

"Ai! Preciso de luz. Como vou achar Bichento sem enxergar nem ao menos o degrau a minha frente? Luz, luz, preciso de luz, LUZ!"

Os olhos de Mia se fecharam quando as paredes ficaram claras demais e a escada brilhou, completamente iluminada. A menina franziu a testa e olhou ao redor. O interruptor estava na parede oposta, longe dela.

"Bom, deve haver algum tipo de sensor, essas coisas tecnológicas."

Concentrou-se no fato de que precisava encontrar o gato e rumou para a escada. Como moravam no último andar do prédio, a única opção para Bichento era descer. A menina olhava nos cantos das portas e chamava o nome do animal enquanto se movia rapidamente pelos degraus, pulando de dois em dois. Chegou ao térreo, onde a porta estava escancarada, e viu que ela dava num pequeno jardim nos fundos do edifício.

"Deveria ter saído para dar uma volta antes. Não tem o esplendor do jardim que mamãe cultivava em nossa casa, mas é sem dúvida um espaço agradável para leitura quando o apartamento ficar abafado demais."

Bichento estava sentado num banco de pedra rústica, embaixo da pequena e única árvore que o jardim comportava. Junto com o gato estava um menino dos cabelos negros e desgrenhados. Ele usava a mesma jeans do encontro no elevador, mas tinha trocado a camiseta branca por uma verde-musgo, que combinava perfeitamente com seus olhos assustadoramente verdes e profundos. E ele sorria.

- Ei! Oi, Mia! Parece que seu gato queria dar uma voltinha por aí, não é mesmo? – falou o menino, enquanto afagava o pescoço de Bichento. O gato contorcia o corpo e ronronava de puro prazer diante do carinho de Daniel.

- Hã, é..., hã... oi, Daniel... – Mia perdera a fala.

- É um belo animal – continuou Daniel, concentrando o olhar no gesto de afagar o gato sem, no entanto, parar de sorrir. Depois, fixou os olhos na menina e perguntou – Como ele se chama?

- Bichento – Mia firmara a voz com todo o auto-controle que lhe era possível. – Mas ele é um gato muito mal educado, isso sim!

- Por que diz isso, Mia?

- Porque ele fugiu do apartamento na primeira oportunidade que surgiu! O que ele queria, que a minha mãe enlouquecesse sem ele? Que ficasse ainda mais nervosa? Já aconteceu tanta coisa nessas férias de verão que eu não quero nem imaginar se algo acontecesse com o Bichento. Sabe, mamãe e papai andam bem nervosos com o desemprego e a mudança e eu...

Mia levou a mão à boca para impedir as palavras de fluírem. Por que estava dizendo tudo aquilo para um completo estranho? Quem era aquele menino senão um vizinho de apartamento, alguém com quem não se deve ter intimidade? Só porque ele era aproximadamente da idade dela, não significava que pudesse soltar o verbo e exteriorizar seus problemas familiares para alguém que não tinha nada a ver com isso.

- Quantos anos você tem?

A pergunta escapara entre os dedos de Mia. Daniel continuava sorrindo, os olhos mais brilhantes do que nunca quando se levantou e a encarou. Era como se o mundo fosse parar. Era como se eles já se conhecessem durante uma vida inteira. Era como se um poder emanasse dele e fosse essencial para a sobrevivência dela. Ao menos era isso que parecia.

- Eu tenho 16 anos recém completos. Você também deve ter por aí...

- É, tenho 15, mas faço 16 anos em 31 de julho, então está bem perto.

- Eu fiz em 15 de junho.

A conversa fluiu por mais um tempo, coisas triviais. O sol aquecia as costas de Mia, e produzia pequenas gotas de suor na testa de Daniel. Mia não conseguia se concentrar completamente na conversa porque não deixava de prestar atenção nos olhos do garoto.

"Eles ficam mais verdes com o sol, como se dançassem conforme uma música que só eu posso ouvir. Como ficariam sob a luz do luar?"

- Mia! Mia!

A menina voltou a si e disse:

- Sim?

- Eu estava falando que preciso voltar para o apartamento. Meu pai... sabe como é... a gente se vê.

Mia concordou com um aceno de cabeça e já estava pronta para dar o primeiro passo e recolher Bichento do banco, quando Daniel segurou o braço dela de maneira delicada, mas firme.

- Posso te convidar para tomarmos um sorvete qualquer dia desses?

- Claro! – pronunciou a palavra rapidamente e tomou Bichento nos braços, rumo ao elevador, deixando Daniel para trás. Ela esperava que ele não tivesse notado suas sardas da bochecha inflamadas pela pele vermelha de vergonha.




Mia entrou no apartamento e colocou Bichento no chão da sala. Ele permaneceu parado, olhando para a menina com um jeito de quem havia aprontado. Mas no fim das contas tinha sido algo bom para ela. O rosto de Daniel flutuou em sua mente até a hora do jantar, quando o senhor e a senhora Weasley chegaram juntos em casa, ambos com cara de poucos amigos. A refeição seguiu em silêncio, e a casa permaneceu assim até que a senhora Weasley, alegando uma dor de cabeça forte, resolveu se retirar para o quarto.

Vovó Molly e o senhor Weasley também foram se deitar. Mia ficou na sala um pouco mais, olhando vidrada para um televisor onde não via nada e afagando a barriga de Bichento. Desligou o aparelho quando acabou o programa de entrevistas da noite e seguiu para o quarto que dividia com a avó. No entanto, deteve-se ao passar pela porta entreaberta dos aposentos dos pais. Ao invés de conversarem de forma amigável, pareciam discutir alguma coisa num tom de voz que tentava ser um sussurro, mas era bem mais audível que isso.

- Rony, eu não agüento mais! Ninguém merece a vida que estamos levando. E não faz pouco tempo, já são mais de vinte anos! Será que não vai surgir ninguém capaz de mudar essa situação?

- É complicado para nós dois, Mione. Você acha que me sinto feliz assim, vivendo como trouxa? Não sou um deles, nunca fui! Você ainda nasceu assim, sabia como era antes de Hogwarts. E eu? E eu?

- Mas você precisa fazer algo! Nós precisamos! Tanta inteligência, tantos livros, e agora me sinto de mãos atadas! Preciso fazer alguma coisa para encontrarmos os outros Renegados!

- Como? Como? – a voz do senhor Weasley ficara mais alta e a esposa protestou, tentando fazê-lo falar mais baixo sem sucesso. – Como encontraremos os Renegados se perdemos contato até com o Harry! Nem sabemos se ele está vivo! Já não basta a dor de não saber se ele e Gina sobreviveram. E nós já conversamos sobre isso diversas vezes, nunca conseguimos descobrir onde encontrá-los.

- Mas... mas... – a senhora Weasley estava claramente em dúvida, e sua voz parecia chorosa.

- Além disso, ainda há aquela maldita e cruel arma. E todas as conseqüências que ela causa! O que fazer, Mionezinha, o que fazer?

Mia sentiu uma movimentação no quarto e correu para a cama. Bem no momento em que encostou a porta de seu próprio aposento, uma nesga de luz entrou pela abertura lateral. Encostada na madeira da porta e tentando conter a respiração para não acordar a avó, o cérebro de Mia trabalhava freneticamente.

"Trouxas? Renegados? Arma? Do que é que eles estavam falando?"

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