O ritual





Orientada por Hermes, Mia e o loiro pegaram o ônibus que os conduziria de volta para Kings Cross. O coração da ruiva estava acelerado e ela se sentia entusiasmada. Como não pensara nisso antes? Será que daria certo? Será que enfim poderia descobrir se tinha herdado os poderes mágicos dos pais?

Mas primeiro precisava de Daniel. Tinha certeza de que não era por acaso que o moreno, Hermes e ela estavam juntos agora. Sabia que o destino os havia unido para que ela descobrisse os Malfoy e encontrasse sua tia Gina. Ainda não sabia qual era o papel de Daniel em tudo isso, mas sentia que ele deveria estar junto quando tudo acontecesse. O que era esse tudo, Mia ainda não fazia a menor idéia, mas sentia uma sensação inexplicável de que tudo estava certo naquele momento. Num pequeno vislumbre, ouviu em sua mente uma voz que não pertencia a ela: Passado é passado. O mundo é agora e construímos nossa história dia após dia. Mia sorriu. Sabia que, por menos que pudesse entender seus próprios propósitos por hora, estava fazendo aquilo que deveria ser feito.

Ao chegar no apartamento, vovó Molly já estava dormindo. Mia não havia se dado conta de que já estava anoitecendo, e desde que perdera a memória, a avó passava grande parte do tempo adormecida. No começo, a ruiva tinha medo de ficar em casa sozinha com ela e pedira aos Gêmeos para que ambas pudessem ficar na casa deles. Embora preocupados com a saúde da mãe e a integridade da sobrinha, alegaram que precisariam se ausentar por uns tempos por causa de algumas coisas que explicariam mais tarde. Sem ter argumentos, Mia teve que cuidar da avó sozinha. A senhora não dava trabalho, a empregada vinha, fazia os serviços domésticos e vovó Molly conseguia cuidar de si mesma. Mas tinha lapsos de memória e, em algumas ocasiões, esquecia-se completamente da neta.

Mia entrou no quarto antes ocupado por seus pais, onde agora dormia sozinha, com Hermes em seu encalço. O menino jogou a mochila na cama, tirou os tênis e se ajeitou, apoiando as costas largas no travesseiro encostado à parede. Olhava para Mia esperando que ela dissesse algo, mas como não era lá muito paciente, precipitou-se:

- Vai me explicar o que vamos fazer ou eu espero apenas que você me ataque? Lembre-se, somos primos! Sei que sou irresistível, eu confesso, mas tente se controlar.

- Ah, Hermes Malfoy. Certas coisas nunca vão mudar em você, não importa se bruxo ou trouxa, não é mesmo? – o loiro sorria, deliciado com o comentário da amiga.

Mia pegara o telefone e discava um número.

- É a última vez que tento falar com Daniel. Se ele não atender, você vai até o sétimo andar e derrube a porta se for preciso. Enquanto isso, eu preparo tudo por aqui. Temos tempo até a virada da Lua, que de acordo com meus cálculos, será exatamente às dez e quarenta e dois, mas não quero deixar nada para a última hora.

- Mulheres... – Hermes saíra logo em seguida, resmungando, pois o telefone não atendera novamente e ele estava resignado em sua missão.

Enquanto isso, Mia se concentrava em encontrar alguns materiais que julgara importantes para o procedimento que iriam realizar. De fato, não sabia se utilizariam todos, mas era bom tê-los a mão. Em seu armário, encontrou incenso e velas coloridas. Já que não tinha um caldeirão bruxo, pegou um que a avó utilizava para ferver água.

”Isso deve servir...”- pensou, correndo excitada pela casa e juntando os elementos em uma mochila.

Voltou para o quarto e começou a ler em voz alta o pedaço de papel que imprimira na casa de Hermes.

- O ritual da Lua é feito sempre à noite. Mesmo quando o exato momento da mudança de fase ocorre durante o reinado do sol, espera-se a noite chegar e a Lua aparecer, fato que por si só sugere à maioria das pessoas uma aura de mistério. A escolha do sítio onde se dará o ritual tem que ser próximo a uma grande quantidade de água, de preferência o mar. Porém, jamais na areia, considerada estéril, e sim num campo de gramíneas naturais. Hummm....mar será impossível, estamos a quilômetros de distância dele - Mia organizava as idéias enquanto lia. - O jardim do prédio vai ter que servir, é o único lugar onde podemos fazer isso sem sermos importunados. Basta avisar o porteiro para trancar a porta que dá acesso ao local. E lá temos o pequeno lago. Pode não ser uma grande quantidade de água, mas deve servir.

Sorrindo com sua própria constatação, não percebia que caminhava pelo quarto enquanto continuava lendo em voz alta:

- Alguns símbolos ritualísticos são fixos, isto é, utilizados em todas as fases da Lua, como, por exemplo, a serpente em forma de anel, que é usada sempre no dedo anelar. Hummm... eu não tenho um anel de serpente. Será que faz falta? O dedo médio tem a função de ligar o mundo superior com o mundo inferior. O ritual da Lua crescente se faz no sentido de costurar o que está separado, de tecer a trama do destino. Tecer não significa somente predestinar e reunir realidades diferentes, mas também criar, fazer sair da sua própria substância, como faz a aranha, que urde ela própria sua teia. Urghhhh! Detesto aranhas...

- E eu também – Hermes vinha entrando no quarto, seguido por Daniel. Os cabelos do moreno estavam mais despenteados do que nunca, e Mia não esperava encontrar uma expressão melhor na face do amigo. – Tenho medo de aranhas, escorpiões e... Ah! Do Daniel também.

O moreno estava com os olhos vermelhos e um aspecto cansado, como se tivesse travado uma batalha consigo mesmo para ceder e estar ali naquele momento. Hermes parecia igualmente cansado e se sentou ao lado de Daniel, analisando o material que Mia havia separado. Ela continuou, como se não tivesse acontecido nada que pudesse ter aborrecido o moreno:

- Separei algumas coisas para usarmos. Olhem que interessante o que eu achei aqui: A Lua crescente é a fase da esperança, da adolescência revivida em qualquer idade, do novo amor ou do retorno do amor sob novos augúrios. O círculo ritual e os pedidos devem ser direcionados no sentido de pedir coragem para tecer seu próprio destino. O que acham disso?

- Acho besteira – Daniel olhava para Mia, os olhos muito verdes e desafiadores como ela nunca havia visto antes. – Sei muito bem qual é o meu destino: estudar, trabalhar e ganhar dinheiro para ajudar minha mãe a cuidar do meu pai. Não sou nada do que vocês pensam. Meus pais são... normais, entenderam? Não há nada de mágico neles!

O tom de voz de Daniel subira e mostrava todo o rancor guardado no coração do moreno. Hermes e Mia entreolharam-se, pensando em como poderiam convencer Daniel a participar do ritual. O menino bufava, indignado. A ruiva tinha certeza de que, sem ele, aquilo não valeria a pena, e pior, nada funcionaria.

- Dan... – ela começou, abrindo espaço para se sentar entre os dois amigos e abraçando o moreno, munida de toda a coragem que pôde colocar neste ato. – Nós somos um trio. Um não faz nada sem os outros, você sabe disso. Precisamos de você para completar esse ritual.

- É, cara! – Hermes se levantara e parou em frente ao amigo, que continuava com a cabeça abaixada, sem encará-lo. – Se não fizermos isso juntos, nunca vamos saber se temos ou não poderes mágicos que poderemos usar depois para conquistar a mulherada e...

- Hermes! – Mia protestara.

- Ah, desculpa, vai, prima – Hermes continuava, o sorriso matreiro estampado no rosto ao ver que o amigo já sorria, mais maleável. – Então, Dan, vamos fazer isso, vai? Por nós todos, pela nossa amizade. Se for mesmo uma besteira como você disse, pelo menos poderemos dar várias risadas e ver a Mia sem roupa!

- O quê? – agora era a ruiva quem estava indignada.

- Ué, Mia... eu li aí nesse seu papel que há alguns rituais em que a mulher deve estar nua, ou seminua, e cobrir o corpo com óleo – Daniel não agüentava e ria das provocações de Hermes.

- Para seu governo, senhor Hermes, este ritual é da Lua crescente e não há necessidade de nudez para completá-lo – respondeu Mia, tomando para si a mochila que estava na cama, fechando o zíper e colocando a alça sobre as costas. – Agora só falta o Bichento para completarmos os materiais, ao menos o que temos disponíveis para a realização do ritual. Não sei para que ele vai servir, mas é sempre bom ter a energia vital de um gato quando se realiza um ritual desse tipo. Ao menos foi o que eu li, e isso vale para o ritual da Lua crescente, senhor Hermes! Anda, meninos, vamos! Por favor, Daniel.

Rendido, o moreno seguiu os dois amigos e ainda ouviu Hermes murmurar próximo de seu ouvido algo que o fez sorrir:

- Droga, perdemos a chance! Por que não podia ser Lua cheia, hein?




Depois de avisar o porteiro e vê-lo trancar a porta que dava acesso ao jardim, Mia, Hermes e Daniel se dirigiram para debaixo da Lonely Laidy. Mia tocou na árvore em sinal de respeito, pedindo licença mentalmente para realizar o ritual protegida por seus galhos. Sentiu um leve arrepio e uma sensação de consentimento quando uma brisa gelada intensificou ainda mais a noite já fria. A ruiva sabia que outubro não era a época ideal para se submeter a rituais da Lua, mas precisava ser agora, não tinha mais nenhum minuto para esperar. O tempo que passava podia significar menos tempo de vida para seus pais, e ao pensar nisso um nó em sua garganta se fez sentir.

O jardim estava um tanto escuro, mas isso não seria problema depois que acendessem as velas em forma de círculo. Mia se recordava dos livros da Trilogia da Magia, de Nora Roberts, que lera há pouco tempo. Neles, as três bruxas eram capazes de acender as velas dos rituais que praticavam apenas com a força de seus poderes. Quis experimentar, mas se sentiu frustrada ao perceber que perderia tempo e energia se continuasse mentalizando uma vela acesa sem de fato conseguir acendê-la. Os dois meninos já estavam sentados no chão e acendiam os pavios para iluminar o local. Mia explicara que, como precisavam de força, coragem e manifestação de poderes, escolhera velas vermelhas.

- Achei que vermelho fosse paixão. Uhu!!!

- Ah, não enche, Hermes! Agora não é hora para esse tipo de brincadeira – a ruiva permanecia de pé, os cabelos longos e cacheados balançando com o vento.

Mia colocou o pequeno caldeirão no centro da roda e jogou dentro dele algumas ervas e incensos, para perfumar o ar. Bichento foi solto pelo jardim e ficou sentado no banco de pedra, observando o grupo e miando esporadicamente. Os três amigos traçaram um círculo com o dedo indicador em volta de si mesmos e, sentados na terra, começaram a entoar um mantra em latim que Mia havia ensinado. Ele significava algo como primeiro encantamento, único encantamento, e servia para as reuniões de iniciação da bruxaria natural.

- Priori Encantatem, unique encantatem.

Repetiam o mantra em voz baixa, os três sentados em volta das ervas que queimavam. A aura mística começou a deixá-los num estado de torpor onde não tinham mais consciência de seus próprios corpos e se sentiam parte da natureza daquele pequeno jardim. O mantra continuava, repetitivo, ritmado. Mia sentia o vento ficar cada vez mais forte, mas ao abrir os olhos, viu que as velas continuavam acesas, brilhando cada vez mais intensamente. O vento uivava e a chama não se extinguia. Foi quando a ruiva sentiu uma enorme vontade de se libertar, de voar o mais alto que pudesse, de deixar a terra para sempre e ir de encontro a sua verdadeira natureza. A Lua a chamava, a Deusa-Mãe de todas as coisas. Levantou-se para abraçar a própria mãe, vendo na Lua um pedaço daquela que há tanto tempo estava desaparecida. Lágrimas brotavam de seus olhos enquanto a imagem de sua mãe ia se distanciando, ficando alta e longínqua como a Lua no céu. Uma lágrima rolou pela bochecha sardenta enquanto ela permanecia de pé, o rosto voltado para cima e os longos cabelos ondulando com a ventania.

Foi quando uma aura prateada surgiu diante dos olhos de Mia. Ela já não estava mais no jardim. Hermes e Daniel estavam ao lado dela e os três podiam sentir a força da magia da Lua dominando suas vidas. O mantra fora interrompido, mas não era mais necessário. O silêncio dominava tudo e nada, pois os sons da natureza eram ouvidos além e além, como se toda a Terra estivesse ali, ao lado deles, fornecendo energia e luz para o que precisassem. Mia brilhava intensamente, e Hermes, sem poder resistir, aproximou-se dela e beijou-a na testa, em sinal de extremo respeito. Virou as costas para a amiga e levantou a mão para o alto em sinal de comando. O vento tornou-se ainda mais feroz, rodopiando como se fosse um furacão, balançando as roupas e os cabelos do trio, envolvendo-os num redemoinho de ar furiosamente em movimento.

Daniel aproximou-se de Mia, tomou a mão da menina e ela estremeceu. O choque foi instantâneo, o reconhecimento também. Eram predestinados. Eram eternos. Assim era e assim seria para sempre.

- Ainda não é a hora...- Daniel dissera, num sussurro, sentindo o cheiro de Mia tão próximo e tão longe, tão soberano.

- Não importa – Mia respondera, tocando de leve o lóbulo da orelha do moreno. – Ela chegará.

Nisso, Daniel virou as costas para a ruiva e levantou as mãos para o ar da mesma forma que Hermes fizera, no exato instante em que o loiro interrompera a ventania. Com um trovão, Daniel produzira uma tromba d´água que envolvia os três amigos como se estivessem dentro de uma cachoeira cristalina.

Mia suspirou, fortalecida pelo poder do amor em suas mais poderosas formas: o amor de um homem e o amor da família. Aquilo era sua base, seu maior poder e seu eterno diferencial contra as Forças das Trevas. Levantou os braços e clamou, numa voz rouca que era mais do que apenas a de uma quase mulher, mas que encerrava em si mesma todo o poder de séculos e séculos de culto ao feminino e à Lua. Até o fim. Até o infinito.

- AD INFINITUM!!!

O círculo explodira em chamas, envolvendo Hermes, Daniel e Mia num ciclo de magia eterna, pura e natural. A magia eterna com a qual eles teriam a chance de vencer o Lorde das Trevas.

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