Capítulo 3



 


      Harry  instalou-se em um hotel perto do hospital. Precisava de um banho e de algumas horas de sono. O hospital tinha o número do telefone do hotel, e seria chamado imediatamente em caso de necessidade.


      Antes de ir para a cama, ele ligou para Neville.


      — Draco foi assaltado? E por que não ligou antes?


      O tom de voz ainda o intimidava, embora Harry  tivesse trinta e um anos. Neville era o mais velho dos cinco irmãos e o mais autoritário, depois de Colin.


      — Estava preocupado demais para pensar em telefonar para alguém. Além do mais, tive de resolver outro... problema que surgiu por aqui. Draco está bem. Foi um dia difícil, e só em lembrei de falar de você quando tive certeza de que não havia mais nenhum risco.


      — Entendo. — Neville  soava mais calmo. — Sabe se já existe algum suspeito?


      — Nenhum. Cheguei a desconfiar de alguém, mas estava enganado. — E não entraria em detalhes sobre Gina Weasley. — Eram dois assaltantes, e nenhum deles foi preso. É um milagre que Draco ainda esteja vivo e não tenha sido roubado. Talvez deva conversar com o chefe de polícia daqui. Só para informá-lo de que estamos todos interessados na resolução do caso.


      — Está sugerindo que devo usar minha influência para obter favores pessoais?


      — Exatamente! — Harry  explodiu impaciente. — Estamos falando do nosso irmão, Neville! Um homem grande e forte como Draco caiu sob o ataque violento de dois bandidos que permanecem soltos pelas ruas, ameaçando a integridade e a vida de outros cidadãos honestos. Não acha que isso diz muito sobre a segurança da cidade?


      — Tem razão. Discutirei o assunto com o responsável pela polícia de Houston amanhã cedo. Depois irei a Jacobsville  para apanhar Colin  e Simas, e iremos todos juntos até aí. Draco precisa de nós.


      Harry  riu. Os cinco irmãos nunca se uniam para ameaçar outras pessoas, mas, considerando o tamanho e a reputação de cada um deles, os resultados eram sempre imediatos quando entravam em ação. Aquela era uma situação de emergência. Podiam ter perdido um irmão. Os bandidos tinham de ser presos.


      — Eles já devem estar em casa, Neville. Não liguei antes porque sabia que Colin  e Simas estavam acompanhando aqueles empresários japoneses em visita ao rancho.


      — Espero que tenham conseguido assinar o contrato. Os japoneses são muito cautelosos com relação à carne que importam, mas o fato de criarmos nosso gado organicamente deve atuar a nosso favor.


      — Tenho certeza de que tudo correu bem. Agora durma e não se preocupe com Draco. Ele está bem. E mande lembranças a Anna  e aos garotos.


      — Certo. Até amanhã.


      Harry  desligou pensando em Neville  e em sua família. Anna era loira e linda, e os meninos eram uma mistura dos pais, embora tivessem os cabelos e os olhos claros de Neville. Simas e Lilá  tinham um casal de filhos. Colin e Helena  tinham apenas um garoto, mas já discutiam como seria maravilhoso terem uma menina. Harry e Draco amavam os sobrinhos, mas não tinham nenhum interesse de ingressar no time dos casados.


      O problema eram os biscoitos. Podia encomendar uma remessa diária ao café local enquanto procuravam por outra cozinheira capaz de prepará-los, mas o gasto seria muito alto, e não havia garantias de que o estabelecimento aceitaria o pedido. De qualquer maneira, se chegassem a um estágio de desespero, discutiria o problema com o proprietário e veria o que podia arranjar.


      Enquanto se preparava para dormir, Harry  pensou na cabeça de Draco  e no rosto de Gina. No dia seguinte teria de ir buscá-la para cumprir a promessa que fizera ao irmão, e não estava nada ansioso pelo momento de revê-la. Gostaria de saber por quê.


      Gina  abriu a porta e encarou-o com um misto de coragem e insolência. O olho esquerdo estava tão inchado que ela não podia abri-lo, e o hematoma se estendia por todo um lado do rosto.


      — Draco quer vê-la — Harry anunciou sem rodeios, estranhando a opressão que dominava seu peito. — Ele quer agradecer por tudo que fez naquela noite. Não me disse que havia acompanhado meu irmão na ambulância.


      — Não? Acho que esqueci. Estava preocupada com o que aconteceria quando eu chegasse em casa àquela hora da madrugada.


      — Teve alguma notícia de seu pai?


      — Ele vai ser processado por agressão. Não posso contratar um advogado, o que significa que ele terá um defensor público. E provável que meu pai passe algumas semanas na cadeia, o que será uma bênção, porque lá ele não poderá beber.


      Odiava a compaixão que ia aos poucos superando todas as outras emoções.


      — Sua mãe o deixou?


      Gina  desviou o olhar. Ainda não se sentia forte o bastante para falar sobre o assunto.


      — De certa forma — disse com voz rouca. — Quer que eu vá com você ao hospital? Posso ir de ônibus, se preferir, mas ele só passará por aqui dentro de trinta minutos.


      — Bobagem. Você vai comigo.


      — Nesse caso, vou buscar minha bolsa e um agasalho.


      Gina  retornou minutos depois e trancou a porta ao sair.


      — Ele está consciente? — perguntou.


      — Oh, sim! Quando saí, ele estava dizendo a uma enfermeira o que ela devia fazer com a bacia de banho íntimo.


      Gina  riu.


      — Não pensei que ele fosse esse tipo de homem. Seu irmão me deu a impressão de ser um cavalheiro, não um renegado.


      — Somos todos muito parecidos.


      — Todos?


      — Cinco irmãos — Harry  contou orgulhoso ao ligar o motor do carro. — Os outros três estão a caminho daqui para conversarem com a polícia.


      — Sim, eu me lembro... Um de seus irmãos é procurador geral do estado.


      — Isso mesmo. E somos muito unidos. Como está o rosto?


      — Doendo. E vai doer por algum tempo. Mas sei que vou ficar bem.


      — Devia consultar um cirurgião plástico.


      — Para quê? Meu convênio não cobre procedimentos estéticos, e é pouco provável que  possam reparar pequenos ossos estilhaçados.


      — Como pode saber? Você não é médica.


      Ela o encarou por um instante e abriu a boca para dizer alguma coisa, mas perdeu a oportunidade quando Harry  parou o carro no estacionamento do hospital e desligou o motor.


      Draco não estava sozinho. Havia mais três homens dentro do quarto, um grande e moreno sem um dos braços  com olhos azuis, outro esguio, dono de olhos mais claros e de uma beleza impressionante, e o terceiro, o maior de todos, de cabelos loiros e um rosto ameaçador.


        — Aquele é Colin — Harry apresentou o de cabelos loiros .


        — Simas. — Ele apontou para o de olhos mais claros.


          — E Neville — concluiu sorrindo ao indicar aquele que tinha apenas um braço. — Rapazes, esta é Gina Weasley. Ela salvou Draco.


     — E bom revê-la e saber quem você é — disse Draco, olhando com atenção para a jovem discreta que acabara de entrar. — Srta. Weasley, presumo?


     — Sim, sou eu — ela confirmou encabulada. Todos olhavam para seu rosto.


      Neville  foi o primeiro a reagir.


      — Que diabo aconteceu com você?


      — O pai a espancou por ter chegado tarde em casa — explicou Harry.


      Draco  assumia repentinamente a mesma aparência ameaçadora dos outros três.


     — Onde ele está?


      — Preso — respondeu Gina. — E vai ficar lá por algumas semanas. Pelo menos sei que,     na cadeia, meu pai não poderá beber.


      — Ótimo. — Draco olhou para Neville. — Talvez possa providenciar sua integração em um programa de reabilitação antes de ele deixar a prisão.


      — Verei o que posso fazer — respondeu o procurador. — Somos todos gratos pelo que fez por Draco, srta. Weasley.


      — Não foi nada.


      Draco  estendeu a mão e sorriu.


      — Chegue mais perto. Eles são todos grandes e assustadores, mas moles como marshmallow. Não precisa sentir medo, porque estou aqui para protegê-la.


      — Ela não precisa de proteção contra nós! — protestou Harry.


      Os outros olharam para ele com surpresa e espanto. Harry  não costumava agir daquela maneira.


      Ele tossiu embaraçado. Não queria ser submetido a um interrogatório constrangedor.


      — Desculpem — disse. — Não dormi bem esta noite.


      Gina  estava parada ao lado da cama. Draco segurava a mão dela e sorria com doçura.


      — Já foi ao médico? — ele quis saber.


      — Seu irmão me levou ao pronto-socorro ontem.


      — Harry. O nome dele é Harry.


      — Parece bem melhor hoje, Draco. Ainda sente dores na cabeça?


      — Um pouco, mas a visão é nítida e não estou desorientado. O prognóstico é muito bom.   — Estava repetindo as palavras do médico.


      — É bom saber disso. Você sofreu uma agressão violenta que podia ter tido terríveis conseqüências.


      — Tudo teria sido muito pior, não fosse por sua ajuda. Soube que não vai poder trabalhar por algumas semanas, até seu rosto melhorar. Sabe cozinhar?


     — Sei.


      — Sabe fazer pão?


     — Pão?


     — E biscoitos — ele explicou com expressão radiante.


      — Bem, sei fazer biscoitos, e roscas, pães doces, bolos, tortas...


      Draco olhou para Harry , que o encarava em silêncio. Sabia o que estava por acontecer, mas não sabia como agir diante do inevitável.


      — Que tal passar um tempo em Jacobsville, no Texas, numa casa espaçosa de um rancho produtivo e próspero? Seu único trabalho seria fazer biscoitos todas as manhãs.


      Harry e os outros irmãos olhavam para Draco com evidente expectativa. Por quê? E Harry tinha a testa franzida, como se não gostasse da ideia. Provavelmente, ainda acreditava estar lidando com uma prostituta.


      Pensando nisso, Gina  concluiu que não seria uma má ideia aceitar o emprego no rancho. Assim poderia provar que ninguém deve julgar um livro pela capa. Aquele caubói arrogante precisava de alguém que o ajudasse a reduzir o tamanho de seu ego, e sabia que era a mulher ideal para essa tarefa.


      Gina  sorriu. O rosto doía, mas que importância tinha um desconforto passageiro diante de uma causa muito maior? Ela olhou para Draco.


      — Sr. Potter, acho que gostaria muito desse trabalho.


Capítulo 6


      Quando Harry deixou o hospital para ir levá-lá em casa, Gina  parecia feliz.


      — Tem certeza de que quer ir trabalhar no rancho? — ele insistiu.


      — Oh, sim! Preciso tomar algumas providências antes de viajar, mas não estou em condições de perder essa oportunidade.


      — O trabalho no rancho é duro, especialmente para nós, os proprietários. Estamos sempre com os caubóis, percorrendo a propriedade e cumprindo tarefas diárias, mas a recompensa é mais do que válida. No seu caso, só terá de cozinhar.


      — Posso cuidar da casa, também.


      — E claro que acertaremos seu salário antes de partirmos. — Ele abriu a porta do carro. — Draco  parece gostar muito de você.


      — Que bom! Também gosto dele.


      A resposta o aborreceu, mas Harry  procurou não demonstrar. Não queria que ela gostasse de Draco. Só não sabia por quê...


     — Não tem família além de seu pai? — ele perguntou enquanto dirigia.


      Um ou dois primos perto de Fort Worth. — Gina  olhou pela janela e tocou o dedo anular da mão esquerda, tentando não engasgar com as palavras. — Como é Jacobsville? — Precisava distraí-lo.


      — Pequena. A região é ocupada por ranchos. Temos bons pastos e um solo fértil, e o índice anual de chuva é suficiente para garantirmos colheitas fartas. A maioria dos criadores prefere o procedimento orgânico, mais antigo, e agora que a indústria passa por um período de dificuldades, provavelmente manteremos nossas cabeças fora da água, enquanto outros rancheiros sucumbem.


      — Gosto de alimentos orgânicos. A alface pode ter mais lesmas, as laranjas, mais larvas, mas se a comida não mata os insetos, também não vai me matar.


      — É verdade — Harry  concordou rindo. — Gosta de animais?


      — Adoro! Sempre quis ter um gato, mas meu pai é alérgico.


      — Ainda acho que devia ir procurar um cirurgião plástico.


      — Não posso pagar por isso. E mesmo que pudesse, não quero enfrentar dezenas de pequenas cirurgias que podem nem surtir efeito.


      — Faça como quiser.


     — Vou ficar bem. — Gina  sentia a tensão crescendo dentro do carro, e por isso decidiu dar um toque de humor à conversa. — Não sei se ir trabalhar para vocês é uma boa ideia. As pessoas podem pensar que se uniram para espancar-me.


      Harry  explodiu numa gargalhada divertida.


      — Ninguém que nos conheça pensaria tal coisa, especialmente com relação a alguém que saiba conhecermos. Draco e eu somos viciados em biscoitos!


      — Eu gosto de cozinhar.


      O tom sincero e casual atraiu sua atenção, e ele analisou o estilo discreto das roupas de Gina.


      — Não parece aquela mulher que conheci naquela noite em que meu irmão foi atacado.


      — Que bom! Odiaria ter aquela aparência para sempre. — Ela respirou fundo. — Estava falando sério quando disse que era uma fantasia. Não ganho a vida nas ruas.


      — Quantos anos você tem?


      — Vinte e três.


      — E ainda não se casou?


      — Tive muitas responsabilidades nos últimos anos. Meu pai é a maior delas. Tenho receio de deixá-lo sozinho.


     — É evidente que o homem é perigoso quando bebe.


      — Papai tornou-se alcoólatra da noite para o dia. Pensei que poderia lidar com ele, controlar a situação, romper o ciclo... Não consigo nem convencê-lo a aceitar ajuda. Meu pai não admite que é alcoólatra e, assim, nenhuma instituição o aceita. Sou muito grata por seu irmão ter oferecido auxílio, e espero que ele tenha mais sorte do que eu. Como já disse, o problema é recente, mas não fui capaz de solucioná-lo sozinha.


      — Vai trabalhar para nós, e o problema nem é tão grande assim para Neville. Ele é um profissional muito competente.


      — O rancho onde vivem é muito grande?


      — Enorme! E é um dos cinco que possuíamos como uma família. Os dias são frenéticos na época dos rodeios, como vai descobrir se ainda estiver por lá na primavera.


      — Não estarei. Assim que meu rosto melhorar, voltarei para retomar meu trabalho.


      — O que faz aqui em Houston? É cozinheira em um restaurante ou na casa de alguma família conhecida?


     — Por quê? Acha que não tenho qualificações para fazer outra coisa?


      — Eu nem a conheço, srta. Weasley. Só acho que tem um estilo bastante... doméstico.


      Não estava com disposição para retaliar, mas, um dia, faria com que ele engolisse as palavras de desprezo.


      — Já arrumei camas e fiz limpeza — disse, evitando falar sobre sua atual profissão.


      — Não é ambiciosa? Hoje em dia, quase todas as mulheres sonham com carreiras de sucesso.


      — Por que tenho a impressão de que esse comentário soou amargo? Foi abandonado por uma mulher ambiciosa?


      — Por algumas — ele respondeu com tom frio.


      Era difícil de acreditar no que ouvia. Harry Potter  era arrogante, antipático e preconceituoso, mas não podia negar sua sensualidade natural. Não era tão bonito; com exceção de Simas Potter, os outros irmãos pareciam ter sido amaldiçoados por uma total ausência de beleza convencional.


      Mas Harry tinha traços marcantes e movimentos harmoniosos, mãos longas e cabelos negros e rebeldes  que combinavam com o rosto quadrado. Ele era o tipo de homem que poderia atrair muitas mulheres, exceto por sua personalidade. Harry  despertava nela sentimentos incômodos de insegurança, nervosismo e desconforto. Normalmente, não se deixava abalar desse jeito pela presença de um homem. Não que houvesse convivido com muitos deles nos anos mais recentes. A natureza  possessiva e superprotetora do pai cuidara para que não fossem muitos os encontros. Ele sempre tivera certeza absoluta de que a filha acabaria seguindo o exemplo da mãe.


      Gina  fechou os olhos e tentou banir da mente as odiosas recordações.


      — Se quiser ir ver seu pai antes de partirmos para Jacobsville, pedirei a Neville  para tomar as providências nesse sentido.


      — Não quero vê-lo novamente enquanto ele não recuperar a sobriedade. Nós dois precisamos de tempo para superarmos o que houve.


      — Ele só a atingiu no rosto?


      — Nas costas e em uma das laterais do corpo, mas foram só hematomas sem importância. O médico fez um exame completo.


      — Melhor assim. — Harry  parou o carro diante da casa dela. — Agora trate de descansar. Ligaremos amanhã, quando tivermos notícias sobre o estado de Draco  e alguma previsão sobre o dia de nossa partida.


      — Está bem.


      Quando a levou até a porta e viu os dedos trêmulos lidando com a chave, ele teve a impressão de estar diante da mulher mais vulnerável que já havia conhecido. Mas havia aço em seu estojo de maquiagem. Pressentia que ela não era sempre frágil; podia vislumbrar em seus olhos uma personalidade forte, independente e determinada.


      — Não foi a primeira vez que apanhou dele, foi?


      Ela o encarou surpresa.


      — Não — confessou. — Mas as outras vezes foram mais humilhantes do que dolorosas. Como soube?


      — Quando estava na escola, tinha dois amigos cujos pais tornavam-se violentos depois de beberem. Creio que há uma... postura, uma atitude que é comum a todas as pessoas que sofrem esse tipo de agressão. Não consigo explicar o que é, mas sei reconhecer quando a vejo.


      — Quer saber o que é? — Gina  perguntou com um sorriso triste. — Impotência. É um sentimento provocado pela certeza de que jamais poderemos enfrentar ou conter um homem enfurecido e disposto a machucar. Lutar pode ser pior. Talvez até fatal. Não gosto desse sentimento. E ele nunca mais terá outra oportunidade de fazer o que fez. Aquele homem é meu pai, e o amo profundamente, mas não serei vítima de ninguém. Nem mesmo dele.


      Harry  pôs as mãos nos bolsos e sorriu para ela. Havia um toque de cor em seu rosto e um brilho intenso em seus olhos. Pensou nos cabelos ruivos  soltos sobre seus ombros e tentou imaginá-la vestindo apenas uma camisola de seda cor-de-rosa. O pensamento causou um choque tão grande, que ele perdeu a capacidade de ação.


      — O que foi agora? Meu nariz está fora do lugar? Por que está olhando para mim desse jeito?


      — Eu... tive um pensamento maluco. Precisa de um adiantamento de salário? Quero dizer, vai ter de fazer compras para a viagem? Algo que não possa pagar?


      — Não tenho um carro — ela mencionou, odiando lembrar o que a levara a perdê-lo.


      — Não vai precisar de um automóvel para viajar. Neville  trouxe o meu carro, e você irá comigo e com Draco.


      — Uau! Uma mulher solteira e dois homens ricos e atraentes...


     Harry  riu da brincadeira, mas não perdeu a chance de preveni-la.


      — Draco  é um sedutor barato, mas não tem a intenção de se casar com ninguém. Nem eu.


      — Ah... Que decepção! E pensar que só aceitei esse emprego pela chance de dar um golpe do baú!


     — Sarcasmo não vai levá-la a lugar algum, srta. Weasley. Estou apenas deixando claras nossas posições. Precisamos de uma cozinheira, não de uma eventual alma gêmea.


      — Fale por você. — Gina  virou-se de costas para abrir a porta. — Acho que Draco  gosta de mim.


      — Eu acabei de dizer...!


      Ela o encarou com irreverência e ousadia.


      —  Seu irmão é um homem adulto capaz de expressar as próprias opiniões. Você é meu chefe, mas não é meu proprietário. Farei o que quiser e julgar melhor para mim. Fui clara?


      — Maldição!


      — Com todo esse charme, não é de espantar que ainda esteja solteiro — ela disparou antes de entrar em casa.


      — Sou muito charmoso quanto tenho motivos para isso — Harry respondeu com frieza. — Mas você jamais saberá!


      — Graças a Deus!


      Ele abriu a boca para falar, mas desistiu e partiu sem despedir-se.


      Gina  entrou, fechou a porta e encostou-se nela, tremendo da cabeça aos pés. De todos os homens pretensiosos e irritantes que conhecera, aquele era certamente o pior!


 


      No dia seguinte, Harry  telefonou no meio da manhã para avisar que ele e Draco  iriam buscá-la à uma da tarde para a viagem a Jacobsville.


      Com a mala pronta e a casa fechada, ela viu o grande e luxuoso automóvel parar diante do portão. Era um modelo moderno e muito caro, e era estranho vê-lo estacionado na frente de um imóvel tão velho.


      Quando se dirigiu ao veículo, notou o movimento das cortinas e compreendeu que os vizinhos a espiavam. Deviam estar pensando que a quadrilha passara para apanhá-la. A ideia a divertiu, e ela nem tentou conter o riso. Era bom poder rir de alguma coisa e esquecer o pai e todo o sofrimento dos últimos meses.


      — Não pensamos em aproveitá-la como mão-de-obra para os rodeios — Harry  disparou ao vê-la vestindo calça jeans, camisa xadrez e botas.


      — Nem eu disse que aceitaria esse tipo de tarefa — ela respondeu. — Mas não pode esperar que eu faça o serviço da casa num vestido!


      — Por mim... Pode usar até um casaco de peles, se quiser. Desde que prepare meus biscoitos todas as manhãs... — Harry  lembrou irritado enquanto jogava sua bagagem no porta-malas.


      — Bom dia — Draco  cumprimentou-a sorrindo do banco da frente.


     — Bom dia — ela respondeu ao acomodar-se no banco de trás. — Parece estar bem melhor.


     — E estou, com exceção da dor de cabeça. Seu rosto ainda dói?


     — Muito.


     — Por que não contratamos uma enfermeira? — Harry  sugeriu irônico ao ligar o motor.


      Gina  respirou fundo, mas, antes que pudesse falar, Draco reagiu exasperado.


     — Não preciso de cuidados especiais!


     — Nem eu — concordou ela.


      — Já vi vítimas de acidentes com aparência melhor.


      — Não permita que ele a insulte, Gina — Draco  interferiu. — Prometo revelar todos os seus pontos fracos para que possa enfrentá-lo.


      Não esperava que Harry Potter tivesse fraquezas. De qualquer maneira, manteria a boca fechada e as alternativas abertas até segunda ordem. Seu novo chefe era um homem formidável, e até Draco se mostrava surpreso com a frieza demonstrada pelo irmão.


      — Todos vocês nasceram em Jacobsville? — Gina  perguntou, tentando amenizar a tensão.


      Draco  respondeu:


      — Não. Somos de San Antônio. Herdamos a propriedade de Jacobsville, e como o lugar exigia muitos reparos e trabalho constante, decidimos torná-la nosso quartel-general. O lugar fica próximo de Houston e de San Antônio, mas é isolado o bastante para garantir nossa privacidade. Não somos criaturas urbanas.


      — Entendo. Também prefiro o campo à cidade — ela confessou, lembrando o belo jardim da avó na velha casa perto de Fort Worth. — É uma pena que meu pai tenha aceitado o emprego em Houston.


      — O que ele faz?


     — É aposentado. — Não entraria em detalhes. Era doloroso falar sobre a família.


      — Neville  conversou com as autoridades — disse Harry. Seu pai terá acompanhamento médico e psicológico e não será liberado enquanto não controlar o vício. Eles acham que será melhor se você não tiver nenhum contato com ele por algumas semanas, até que seu pai supere a síndrome de abstinência.


      — Entendo. Certos hábitos criam raízes rapidamente.


      — Vocês dois devem ler muito. Nunca vi tantos livros em uma só casa! Nem nossa biblioteca é tão cheia, e todos nós gostamos de ler.


      — Adoro ler — Gina  admitiu. — Temos uma televisão, mas nenhum de nós tinha muito tempo para passar diante dela. Isto é, até recentemente — acrescentou relutante. — Espero que os homens que o atacaram sejam presos, sr. Potter. — Era melhor conversar com o outro irmão.


      — Draco— ele corrigiu. —Todos me chamam pelo primeiro nome. Somos sempre muito informais com nossos empregados.


      — E têm muitos?


      — Alguns em Jacobsville. Não temos um veterinário contratado, mas contamos com diversos contadores, gerentes de rebanho, analistas de informática, vendedores... Hoje em dia, criar gado é um negócio de grande porte. Temos até um funcionário que não faz nada além de acompanhar toda a legislação capaz de causar algum impacto sobre nós.


      — Vocês têm cachorros e gatos?


      — Muitos — Harry  respondeu. — Temos collies que nos ajudam a reunir o gado, e mantemos sempre os gatos nos celeiros para espantar os ratos.


      — Tínhamos um gato em casa, mas o animal pertencia a Colin e Helena, e eles o levaram quando se mudaram para a nova residência. Pelo menos ela não vai ter de lidar com Nagini— Draco  comentou com o irmão.


      Os dois riram.


      — Não aceitaria trabalhar para nós se ainda tivéssemos Nagini — Harry  acrescentou.


      — Quem é Nagini? — Gina quis saber.


      — A sucuri albina de  Colin. Ela vivia em uma jaula no quarto dele, mas Colin  doou o animal quando se casou com  Helena. Ele disse que seria loucura manter uma cobra daquele porte perto do bebê. Todos estão tão apaixonados por aquele garoto!


      — Seu irmão agiu corretamente. Lembro-me de uma garotinha que teve de passar por várias cirurgias plásticas depois de ter sido mordida no rosto pela jibóia que o pai mantinha em casa como animal de estimação.


     — Nagini  não atacava ninguém, mas Helena  quase  teve  ataque quando foi trabalhar para nós e encontrou a serpente na máquina de lavar roupa.


       — Posso imaginar! Também não gosto muito de criaturas que rastejam.


      — Temos muitas cobras no rancho. Precisa tomar muito cuidado e olhar por onde anda.


      — Vou me lembrar disso.


      — Também temos um grande apartamento sobre a garagem — Draco contou. — As janelas são amplas e há uma banheira de hidromassagem no banheiro. Helena  morou lá até se casar com  Colin . Acho que vai gostar do lugar.


      — Só preciso de uma cama e de algumas gavetas. Sou grata por ter um emprego, mesmo que temporário. Não poderia trabalhar em Houston com o rosto neste estado. Teria sido embaraçoso para meu chefe.


      — No rancho, ninguém vai ficar embaraçado ou assustado por causa de um simples hematoma. E em pouco tempo as marcas terão desaparecido.


      — É verdade. Por outro lado, você vai ter de repousar por mais alguns dias. Imagino que alguém o tenha orientado no hospital. Concussão é um quadro traiçoeiro, e um esforço maior pode provocar uma recaída.


      — Eu sei. Tivemos um empregado que foi atingido na cabeça pelo coice de um cavalo. Ele caiu morto três dias mais tarde, quando caminhava pelo curral. Aprendemos uma dura lição sobre ferimentos na cabeça, e nenhum de nós jamais a esquecerá.


      Gina  desviou os olhos. Não gostava de pensar em ferimentos na cabeça.


      — Vou parar para abastecer — Harry  informou algum tempo depois, quando alcançavam os limites da cidade. -— Alguém quer beber alguma coisa?


      — Eu quero café — Draco respondeu animado. — Gina?


      — Café, por favor.


      — Vou buscar as bebidas enquanto o frentista enche o tanque. — Harry  desceu do automóvel, entregou a chave ao funcionário do posto e foi comprar os dois cafés.


      Draco girou o corpo no banco para encarar a adorável passageira.


      — Ainda está enfrentando dificuldades com meu irmão, não é?


      — Ele não gosta de mim, e devo admitir que também sinto uma certa relutância em aproximar-me. Harry  parece disposto a acreditar sempre no pior sobre mim. Ele estava convencido de que eu o ataquei para roubá-lo.


      Draco  riu.


      — Você não é alta o bastante para bater na minha cabeça! O problema de Harry  é muito mais antigo, Gina, e se estende a todas as mulheres. Ele teve um envolvimento com uma jovem por quem se apaixonou, mas acabou descobrindo que ela era uma garota de programa. Meu irmão já havia comprado as alianças e escolhido o local para a lua-de-mel, mas cancelou o casamento ao descobrir a verdade sobre a mulher que amava. Ele levou anos para superar a dor da decepção e do rompimento. Foi devastador.


      — Posso imaginar! Agora entendo por que ele pensou o pior quando me viu vestida daquele jeito!


     — Estava fantasiada?


      — Eu havia saído de uma festa de Halloween quando vi aqueles homens parados a seu lado. Corri na direção deles gritando e acenando, e eles fugiram assustados.


      — Que espécie de maluca é você? — Draco explodiu. — Tem ideia do risco a que se expôs?


      — Já havia feito isso antes. Aprendi o truque com... com o melhor amigo de meu irmão — ela corrigiu a tempo. Ainda era cedo demais para tentar falar sobre sua tragédia. — Ele dava aulas de caratê no exército e sempre dizia que, em algumas ocasiões, um grito e o elemento surpresa são suficientes para espantarmos um agressor. Funciona.


      — Nem sempre. E não com mulheres. Sou a favor da igualdade, mas os homens são maiores e mais fortes do que as mulheres, e você não teria nenhuma chance num confronto físico. Não pode contar com a certeza de que um agressor vai fugir assustado por causa de meia dúzia de gritos!


      — Bem, consegui espantar os homens que o atacaram. Felizmente, porque não poderia derrotá-los usando os punhos — ela riu.


      — Espero que se lembre disso no futuro. Não corra riscos. É mais seguro buscar ajuda.


      — E onde esperava que eu fosse buscá-la? Na festa de onde havia saído? Só havia bêbados e drogados naquele lugar, e quem ainda estava em pé tinha coisas mais interessantes para fazer, ou perderia um tempo enorme vestindo as roupas antes de sair.


      — Céus! O que fazia num lugar como esse?


      — Fui convidada por uma colega de trabalho. Ela insistiu muito, e eu decidi usar uma velha fantasia e divertir-me. Foi um engano. Não bebo, não uso drogas, e um dos convidados tentou me levar para o quarto. Para sua sorte, decidi sair da festa minutos depois de ter entrado nela.


    — Também não gosto muito de festas. Beber está muito distante do que considero divertido.


      — Seu irmão bebe?


     — Muito raramente. Eu costumava beber quando estava zangado ou aborrecido, mas Harry é mais equilibrado e sóbrio. Ele pode ser duro e tem o temperamento mais carrancudo de todos nós, mas é alguém com quem todos querem contar num momento de dificuldade.


      — Ele não gosta de mim.


      — Dê tempo ao tempo, e vai ver que está enganada. Enquanto isso, tente alegrar-se, está bem? Tem um emprego e um lugar onde ficar até que se recupere dessa violência. Todo mundo tem problemas, mas o ser humano é capaz de superar obstáculos, mesmo quando os considera intransponíveis. É só uma questão de tempo e determinação.


      — Obrigada — Gina  respondeu sorrindo. — Você é um bom homem.


      — Bom, sóbrio, limpo, modesto e lindo. E ainda nem mencionei meus pontos fortes!


      — Comparado a seus irmãos, você é...


      Harry  abriu a porta do carro antes que ela pudesse concluir a frase. Ele ofereceu um copo descartável a Gina  e entregou o outro a Draco  antes de ligar o motor.


      — Está quente — avisou, retirando do bolso da jaqueta uma lata e encaixando-a no porta-copos do painel.


      — O que é isso? — Draco perguntou com uma careta de desgosto. — Cafeína fria? Por que não pode beber café como a maioria dos normais?


      — Eu bebo café de manhã. — Harry engatou a marcha com um olhar significativo para o irmão.


      — Ah! Viu esse olhar? — Draco  perguntou a Gina. — Quando ele olha desse jeito para alguém, é inútil tentar argumentar. Nós o chamamos de "o olhar". Tive a oportunidade de vê-lo encerrando uma briga de socos com ele.


      — Não tenho a menor intenção de discutir — Gina  prometeu.


      Harry  brindou-a com "o olhar", prolongando-o por alguns segundos antes de olhar para a frente.


      Gina  encostou-se no assento de couro e imaginou se não estava cometendo o maior engano de sua vida.

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