Alta.



No dia seguinto do meu aniversário não recebi nenhuma visita de fora. Apenas o doutor e a enfermeira que vieram.
- Abra a boca. Abra os olhos. Diga: "AA". - O doutor falava as coisas e me examinava. Olhou dentro da minha boca, meus olhos, meus ouvidos, sentiu minha pulsação, examinou meus braços, pernas, pés e mãos e, finalmente, olhou todas as infelizes cicatrizes que foram as unicas lembranças de como fui parar no hospital.
Depois de tantos exames o médico e a enfermeira sairam rapidamente do quarto, ela sempre anotando tudo que ele dizia, falaram um pouco alto fora do quarto, mesmo eu não entendendo quase nada.
A enfermeira entrou no quarto e sentou na beira da cama, que eu já considerava como minha.
- Querida, vamos arrumar suas coisas. Você recebeu alta e vai embora amanhã de manhã.
- Mesmo? Mas... Não tenho para onde ir. Não posso encomodar minhas irmãs com isso.
- Não se preocupe, você vai para uma espécie de reabilitação. Ela foi criada muito antes de descobrirem o processo de desobliviação. Mas não é o seu caso. Você perdeu as memórias em um acidente com a magia ou não. Então terá que aprender coisa por coisa, até saber tudo. Mas confie em mim, aprender pela segunda vez é mais fácil que pela primeira.
A enfermeira deu um sorriso largo por entre suas rugas e me ajudou a levantar, mesmo eu não precisando.
- Mas, como eu vou chegar nessa "reabilitação"?
A enfermeira riu quando eu fiz o gesto de aspas, mesmo não sabendo o que era, Annie o usava muito.
- Sua irmã Annie te levará até lá, não se preocupe.
Peguei as minhas roupas que estavam jogadas no "vestiário" do banheiro, e não eram poucas, as dobrei e quando ia colocando elas na mala a enfermeira tirou-as de mim.
- São roupas sujas, mocinha. Vou lavá-las e prepará-las para você as levar amanhã. Arrume o resto das suas coisas que logo venho lhe ajudar, só vou até a lavanderia.
Depois que a enfermeira saiu do quarto, arrumei tudo. Joguei as roupas que Luna trouxe pra mim em uma mala, meus presentes em outra.
Separei apenas um casaco comprido e um par de botas.
Quando fui pegar o álbum da família, que estava na cama mas caiu no chão quando a enfermeira sentou, caiu um bilhete dele. Escrito em um papel com aparência antiga, colocado delicadamente dentro do envelope, que também parecia antigo. Quando lí o que estava escrito no bilhete um calafrio percorreu meu corpo.
" Matarei. Matarei um por um. Matarei todos neste álbum. Matarei todos que me subestimaram. E, para não ferir meu orgulho, farei isso da pior forma possível. Matarei, começando pelos mais velhos."
No começo apenas ignorei. Não poderia ser algo sério. Mas, por via das dúvidas, guardei o bilhete de volta no álbum, eu o mostraria depois para Annie.
Eu já havia arrumado tudo quando a enfermeira chegou.
- Nossa. Tem certeza de que ficou dois anos e meio em coma? Arrumou tudo rapidinho.
A enfermeira soltou uma gargalhada que fez suas rugas aparecerem em seu rosto emoldurado pelo cabelo branco.
- Sua vida vai ficar muito mais prática depois que aprender os feitiços e poções direitinho. - Disse a enfermeira depois do seu ataque de riso.
- Posso ir lá fora? Quero sair um pouco deste hospital.
- Claro, ninguém gostaria de ficar quase três anos em um quarto que cheira a mofo.
- A senhora me acompanha?
- Não, querida. Não posso. Tenho muito trabalho para ser feito. Vou mandar alguém ir com você, venha.
Saímos do quarto e ví Felipe sentado no sofá que ficava depois do corredor dos quartos.
- Esse menino pode te acompanhar. Vocês se conhecem, certo?
- Ah, é. Claro. - Eu disse. Sabia que o conhecia há muito tempo, só não lembrava disso.
Felipe me guiou até a saída do hospital e, quando saímos, demos de cara com uma praça belíssima, um jardim maravilhoso. Fomos caminhando, contornando o hospital e ele me contava sobre os velhos tempos. Como tudo era e histórias muito engraçadas.
- Nos conhecemos perto do olho de Londres. Você estava carregando um algodão doce enorme e estava sozinha. Não sei se foi por educação ou por estar enjoada daquele algodão doce, mas você me ofereceu um pouco. Aceitei e entramos na fila para a roda gigante. Como estávamos os dois sozinhos, fomos juntos na roda gigante. Conversamos esperando na fila, na roda gigante e depois. Te deu o número do meu celular e você ligou. Viramos amigos, na verdade, grandes amigos. Em pouquíssimo tempo nos falávamos todos os dias e andávamos por Londres. Mas você apenas disse que iria viajar, por um longo tempo. Mas voltou um tempo depois. Mais crescida e madura. Me contou histórias incríveis sobre um bruxo que salvou o mundo. E nos falamos todos os dias de novo. Você era minha melhor amiga. Acho que era minha única amiga. Mas me disse adeus de novo, iria viajar. E depois daquele 1º de setembro, nunca mais lhe ví. Talvez por culpa do ocorrido. Alguns anos depois encontrei Annie, sua irmã gêmea, e achei que era você, de cabelo pintado com cor diferente, ela me explicou que não era você e que você estava muito doente no hospital, mas havia melhorado repentinamente. Ela me convidou para vir te fazer uma surpresa de aniversário e aqui estou eu, desde terça-feira.

Continuamos caminhando e conversando até escurecer, ele me mostrou algumas músicas que eu costumava ouvir e, cara, eram incríveis. A enfermeira gritou da janela do meu quarto para nós subirmos, era perigoso vagar por um hospital de noite com vários bruxos doentes e alguns com doenças desconhecidas.
Deitei e, depois de algum tempo, dormi. Uma hora acordei no meio da noite e apenas senti doces mãos acariciando minha cabeça, achei que era Luna, e era Felipe, sentado na cadeira que as visitas sentavam. Caí em sono profundo e, dessa vez, sem pesadelos.

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