A Menina e o Camafeu

A Menina e o Camafeu



Capítulo 10
A Menina e o Camafeu


Subiram as escadas devagar, querendo ao mesmo tempo adiar e acabar logo com a conversa com a bisa. Sabe lá o que aconteceria. Com sua experiência, Harry sabia que as coisas com Eugênia nunca eram só o que pareciam. Restava agora aos incautos se resignarem. Batidas suaves na porta, os dois entrando no quarto confortável. E Virgínia gelada, rígida, sem mais tempo para inventar histórias e sem querer fazê-lo de fato. Foi por isso que respirou fundo e resolveu atacar:

- A senhora já sabe onde estivemos, não sabe?

Recostada em seu leito espaçoso, a bisa se ajeitou melhor, apoiando as costas nos travesseiros, e só então respondeu, aparentemente distraída:

- Acha que sei? – Eugênia devolveu a pergunta sem facilitar muito as coisas, diferente de como era o seu costume.

Ginny olhou rapidamente para Harry, querendo alguma dica ou reconhecimento. Os olhos de ambos lampejaram, como se trocassem impressões. Foi exatamente como Eugênia previra. De algum modo, além da óbvia aproximação afetiva, seus bisnetos pareciam conectados.

- A senhora sabe - Ginny dessa vez afirmou.

- Tenho alguma idéia – a bisavó conteve um meio sorriso de satisfação. Era hora de ser firme. - Mas esperava que me dissessem.

Percebendo o tom e o voto de confiança implícito, Ginny olhou novamente para Harry, que daquela vez pareceu deixar a decisão unicamente em suas mãos. A garota suspirou. No final das contas, a história era mesmo sua.

- Estivemos na casa da senhora Zabini – ela falou sem levantar os olhos. – Esta tarde.

Se tivesse arriscado um olhar teria visto apenas espera e complacência, mas Ginny não precisava de nada disso para saber o que a bisa desejava. Eugênia queria toda a história e isso, por mais difícil que fosse, era a única solução possível.

- Está assim tão assustada? – a bisa perguntou, vendo novamente aquela menininha amedrontada que ainda habitava em sua bisneta.

- Não sei bem como estou – a garota respondeu titubeante, querendo recuperar sua autoconfiança ao mesmo tempo em que achava não ser merecedora da preocupação de Eugênia. Estava sentindo-se uma verdadeira traidora.

Foi Harry quem interviu, falando diretamente com a prima:

- Está precisando pôr pra fora. Tudo. E está precisando de muita ajuda também.

Em qualquer outra ocasião, ela seria capaz de fuzilá-lo, mas acontece que, naquele momento, as palavras dele eram alívio. Pôr tudo pra fora, para alguém da sua família, do seu sangue. Não havia mesmo outro remédio. Levantando os olhos para a bisa, não enxergou censura ou mágoa. Apenas espera e amor. A velha senhora, com seus mais de noventa anos, não era apenas a bisavó, era a verdadeira Morgan, a mulher, a matriarca. “Bruxa” lhe pareceu uma palavra bem apropriada. E querendo ser o espelho de tanta coragem, Ginny automaticamente sentiu-se mais forte. Pela segunda vez naquele dia, excepcionalmente comprido, ela recontaria toda a história.

Sem nenhuma interrupção, Eugênia escutou a bisneta, não parecendo alarmada, nem tampouco feliz. Seu rosto era uma máscara tranqüila, apenas seus olhos eram mais brilhantes e seus pensamentos mais sombrios, como se prenunciando a tempestade. No final do relato, Eugênia se permitiu suspirar, parecendo um tanto desalentada, mas consigo mesma:

- Ah, então não cessará. Eu tinha esperanças de que fosse a última a precisar lidar com aquela. Sempre alimentei a crença de conseguir nos livrar do nosso... fantasma familiar. Que com a minha morte, ela se enfraqueceria finalmente.

- Tem a ver comigo? – a ruiva perguntou, lembrando-se bem das palavras de Justine.

- Tem a ver com nosso sangue, querida. Você está conhecendo o lado ruim de pertencer a ele.

- Mas a senhora Zabini...

- Justine sempre foi dramática – Eugênia fez um pequeno gesto de desdém. – Faz parte de sua profissão, imagino. E, embora ela não costume dizer absurdos, não conhece a história toda. – Ela ficou um pouco pensativa. – Assim como eu também não. Temos metades, lados diferentes de fatos. Você se espantaria como um pequeno detalhe pode modificar toda uma história.

- A senhora vai me ajudar? Se isso, essa coisa, continuar aparecendo?

- A Terra gira em torno do sol? Não vou te deixar nunca, meu bem – e abrangendo Harry, finalizou. - Nenhum de vocês.

- Ham... – o rapaz pigarreou discretamente, sentindo comichões de antiga curiosidade. – Então, seria bom conhecer alguma metade dessa tal história. E a nossa parece mais fácil de ser conseguida.

- Sim – Ginny concordou. – Talvez assim, eu consiga entender porque ela é tão ligada a nossa linhagem. Porque não assombra seus próprios parentes ou coisa assim.

Eugênia cabeceou num meio sorriso:

- Mas nós somos os seus parentes mais próximos, meu bem. Os mais amados. De um modo tão doentio que se tornou obsessão e, por fim, ódio. Ódio... que não passa de uma outra forma de amor que se perverteu.

- Ódio é o amor doente – Ginny citou alguma passagem dos livros que já lera, não sentindo-se minimamente confortada pela constatação. – Imagino que não dá pra fazer as pazes com ela ou algo do tipo.

- Não, querida. Sangue vai correr. Tem coisas que só são resolvidas assim – e meio que afastando o efeito daquelas palavras, Eugênia sorriu animadora. - Acho que vocês precisam mesmo conhecer toda a história, de um modo que apenas Candie conheceu. – Ela piscou os olhos com certa malícia. – Mas podemos esperar até amanhã. Vocês devem estar cansados de tantas estripulias.

- Sem chance. – Ginny se aboletou aos pés da cama da bisa, sendo imediatamente seguida por Harry.

- Se a senhora não está cansada, nós também não temos desculpas.

Ela sorriu, apreciando o casal:

- Deixe ver... conseguem imaginar uma linha do tempo? Uma dessas linhas onde estão marcadas datas e acontecimentos? – os garotos assentiram, meio eletrizados. – Então vamos dar uma volta por meados de 1900, poucos anos antes do novo século. Nossa imensa família já vivia instalada na América há muitos anos, vinda em parte da França, vocês sabem. E, naturalmente, como em todas as famílias muito grandes e antigas, nos espalhamos um pouco pelo mundo, proliferamos, e apesar de nossos sucessos, tivemos nossos pecados, nossos pequenos segredos sujos e nossas ovelhas negras. Carmilla foi o mais alto nível de tudo isso. Mas nesta época, ela ainda não era nascida. De certo modo, as coisas começaram bem antes, e estou voltando no tempo para que possam compreender de um jeito mais completo. Nossos acertos e erros costumam sobreviver a nós mesmos.

Eugênia olhou para a bisneta, confirmando sua afirmativa. O que estavam vivendo atualmente era mesmo conseqüência de acontecimentos muito distantes. Os dois jovens compreenderam, e ela voltou a falar:

- Os Morgan tiveram um longo histórico no cultivo de algodão. Tanto em Oak’s Heaven como em outras fazendas. História foi a única coisa restante de tudo isso. Mas naquele tempo, mesmo com o término da escravidão há décadas, a produção ainda era intensa e a casa grandiosa. Os antigos escravos, em sua maioria, não nos abandonaram ao serem libertos. Sempre foram bem tratados, é o que reza a história, e por isso mesmo permaneceram nas plantações, mas sendo pagos a partir daí. Então, imaginem que estamos em 1890, 1891, onde a fazenda era completamente produtiva, belíssima, já rodeada pelos mesmos carvalhos que se mantém até os dias atuais. Uma fazenda totalmente habitada por membros da família e descendentes destes mesmos escravos. Éramos prósperos, mas a guerra de secessão não fora tão gentil com muitos de nossos familiares. Muitos Morgan, embora escapando da guerra vivos e incólumes, ficaram inteiramente falidos, e um destes descendentes cultos e em situação delicada de favores, era um certo Duncan Morgan, um jovem ainda solteiro e de aspecto distinto, adorado por todas suas velhas parentes. Um “hóspede” acolhido temporariamente por minha avó, na casa grande. Eu também não era nascida, vejam bem, de modo que foram outros olhos e ouvidos, os de minha mãe, que registraram os acontecimentos que deram início a todos os nossos problemas.

- Eu ainda não era muito crescida quando mamãe me contou toda a história de como o adorável e belo Duncan, entediado pela vida monótona na fazenda, tão diferente da agitação a qual estava acostumado, se envolveu com uma das meninas das redondezas. Uma bela jovenzinha de seus dezesseis anos, uma das netas dos antigos escravos. Mas o que, para Duncan, foi apenas uma diversão passageira para espantar o tédio e o frio de sua cama, para a pobre menina teve conseqüências muito mais sérias.

Eugênia fez uma breve pausa, mas tanto Harry como Ginny já adivinhavam o que vinha.

- A menina arrumou barriga, como se falava então. E um cavalheiro da estirpe de Duncan Morgan, belo e solteiro, embora sem vintém, e cobiçado pelas jovens casadoiras, jamais admitiria a hipótese de se consorciar com tal moça. Aparentemente, Duncan tentou resolver as coisas como um gentleman sulino. Arrumou uma quantia em dinheiro e arranjou uma fazedora de anjos, dando um jeito no possível escândalo. Não fiquem espantados, era assim que homens como ele agiam naquela época... e, talvez, hoje também. E não pensem que era o pior que ele poderia ter feito. Poderia ter simplesmente abandonado a jovem à sua própria sorte, poderia ter se livrado dela sem maiores problemas, mas Duncan não era um homem cruel, ele apenas não tinha muito interesse pelas outras pessoas. E assim, depois de abafar o acontecido, ele partiu de Oak’s Heaven, indo passar uma temporada com parentes de Atlanta. Duncan não sabia então, mas estava deixando para trás bem mais do que um coração partido. A pobre menina enganada não era assim tão frágil, afinal. Mostrando uma têmpera rara para sua idade, ela não procurou pela fazedora de anjos. Enfrentou os pais, e o anjinho dela e de Duncan nasceria alguns meses depois.

- Jerome Maurice Daomè, um belo nome francês para aquela criança saudável, mestiça, que carregou apenas o nome da mãe. Um menino que era a mistura perfeita entre o sangue de seus pais. Desde cedo o garoto se habituou às histórias sórdidas sobre o seu nascimento – coisa que acontecia, mesmo tendo em vista a proibição de minha avó neste sentido. E, embora nem todos respeitassem aquele segredo, Jerome cresceu negando seu parentesco com Duncan Morgan, pelo qual tinha um desprezo compreensível e inabalável. Por sua vez, algum tempo depois, Duncan se casaria com uma jovem de Atlanta, uma parente distante, possuidora de alguns bens. Portanto, eles viviam muito distantes de fofocas, ignorando completamente a existência de outro herdeiro. E, por ironia do destino, um herdeiro foi o que Duncan mais ansiou em ter com sua esposa, sem jamais conseguir. Ah, ele foi pai, sim. De algumas frágeis crianças que mal sobreviveram até a infância. E - me desculpem a indiferença – mas teria sido bem melhor se tivessem continuado deste modo. Todos mortos. Mas quis o destino que uma destas crianças vingasse. Nossa bem conhecida Carmilla Morgan.

- Sem se importar com tudo isso, Jerome Maurice levou sua vida em Oak’s Heaven, casou-se, enterrou sua mãe e jamais falou uma palavra sobre ter sangue Morgan. Na época era assunto muito discutido, mas nunca com Jerome. Era briga certa. E vocês compreendem, por mais que se falasse, um nascimento ilegítimo sempre levantava dúvidas. Dúvidas que a mãe de Jerome jamais esclareceu, dizendo que o filho era apenas dela. Talvez por isso, nossa família tenha se mantido a certa distância. Acredito que vovó tenha agido desta forma como respeito à decisão da garota. Mas continuando, Jerome se casou e teve uma filha, uma criança que diferia em poucos anos da única filha viva de Duncan. Era uma menina tão bonita e foi tão amada, que Jerome e a esposa demoraram semanas para encontrar um nome que os agradasse. Por fim, escolheram Jasmine, porque assim era a menina, bela e cheia de vida, uma florzinha nascida para perfumar a vida do casal. Mas as pessoas já haviam se habituado tanto à falta do nome que continuaram por toda a vida a chamá-la simplesmente de a menina.

- O tempo correu e logo Jasmine, já com cinco anos de idade, ganhou uma irmãzinha, batizada como Justine. Sim, a mesma Justine que vocês estão pensando. E pela cara de espanto dos dois, já perceberam que temos um parentesco. Controverso, mas parentesco. Eu nasci cerca de um ano depois. – Eugênia sorriu de lado ao perceber os bisnetos fazendo suas contas. – Sim, mais um pouco e eu seria centenária, mas vamos deixar isso apenas entre nós.

- Meus primeiros anos de vida foram todos passados na fazenda, tendo por maior companhia, minha Bá, uma espécie de ama daqueles dias, brinquedos e a companhia de outras crianças da região. Ao contrário do que possam imaginar, apesar da mesma idade, Justine e eu não éramos próximas, e duvido mesmo que ela fosse muito próxima de qualquer outra criança. Desde muito pequena, e sempre muito precoce, ela preferia a companhia dos adultos, em especial das mulheres mais velhas, consideradas por nós, feiticeiras. Justine tinha verdadeira adoração por minha avó, e acho mesmo que começou sua iniciação com ela. Mas são apenas “achismos”. Justine jamais me falou a respeito e eu tampouco perguntei.

- Mas com meus quatro anos de idade, não me importava realmente com Justine ou outras crianças pequenas. Como muitas outras crianças e adultos, eu estava fascinada por Jasmine, que com onze anos, já se tornara a vida e a alma de Oak’s Heaven. Vocês precisariam conhecê-la para saber do que estou falando. Como tudo parecia mais colorido quando a menina estava presente.

- Jasmine era toda a alegria da vida, toda a beleza. Branca demais para ser negra, negra demais para ser branca. Aqueles olhos de gato, dourados, e os cabelos crespos parecendo mel. É assim que eu me lembro, Jasmine me carregando no colo, empurrando meu balanço, no verão. Ela subia em árvores melhor do que qualquer menino, pulava corda mais rápido do que todas as outras, desmontava armadilhas para passarinhos e roubava doces na cozinha, mesmo sabendo que as cozinheiras lhe dariam tudo o que pedisse. Jasmine não parava nunca e detestava ter que dormir enquanto podia estar conversando com estrelas ou se escondendo no pomar. Dormir era perder tempo, ela dizia em muitas variações. Era intempestiva, passional, ria até se acabar e, às vezes, chorava sem motivo, ficando calada por muitas horas. Nas vezes em que isso acontecia, todos se preocupavam, traziam uma fruta gostosa, um afago, algum vidrinho de perfume – que eram sua paixão. E mesmo assim, ela nunca dizia o motivo de estar tristonha. Então, nós só esperávamos passar, como passam as rápidas chuvas de verão. Porque com Jasmine nada durava muito tempo, nem a maior alegria, nem a maior tristeza. E mesmo em seus momentos ruins, quando ficava nervosa e atirava no chão as roupas esticadas nos varais, indignada e impossível, ela era a mais amada das crianças, e eu achava que não podia haver menina mais bonita no mundo.

- É estranho como memórias tão antigas ainda podem trazer tanto amor... e sofrimento. Meu primeiro amor foi uma menina, a menina, assim como foi com muitos que a conheceram. Eu nunca me cansarei de perguntar como seria se a tivéssemos tido por mais tempo.

- Ela... morreu? – Ginny perguntou timidamente, receosa de interromper a narrativa.

Eugênia não deu mostras de ter se incomodado, mas deixou sua narrativa continuar, a guisa de resposta:

- Nós estávamos nos anos 20, bem nesta época, quando nossa alegre e pacífica vida se alterou por completo. Minha avó recebeu uma carta, onde nosso primo Duncan avisava da morte de sua esposa e da necessidade de viajar a negócios, resolvendo assuntos sobre os bens que a falecida deixara. Acho que na verdade, o pobre Duncan voltara a ter problemas financeiros e, de um modo cavalheiresco, sugeriu sem dizer exatamente as palavras, que sua filha viesse passar uma temporada conosco em Oak’s Heaven. Vovó Cécile não poderia dizer que não. A jovenzinha de quatorze anos era nossa parenta e aparentemente precisava de nossa proteção. Vovó pareceu pensativa e nervosa, ela e mamãe conversavam baixo sobre a carta, conversas sérias. Eu não entendia muito bem, já que nossa casa sempre estivera aberta para parentes e amigos, era costume, e vovó adorava receber. Mas, mesmo assim, o dever venceu. A carta foi respondida e as pessoas receberam ordens de calarem-se sobre o passado. Então, quase dois meses depois, Carmilla Morgan chegava à Nova Orleans, sendo buscada de automóvel pela tia Annabelle, minha mãe. Os carros já eram mais comuns naquela época, o que não significa que não fosse uma festa, principalmente para as crianças, ver o motor roncar e o “monstro” negro de capota arriada – uma excentricidade - chegar à fazenda, trazendo uma pequena dama que desceu elegantemente de seu lugar, nos observando atentamente, com um pequeno sorrisinho complacente, do qual apenas mais tarde fui conhecer o significado. Usando chapéu e até pequenas luvas, Carmilla Morgan era uma imaculada mocinha, usando branco dos pés a cabeça e um rico colar com um camafeu no pescoço. Era o retrato do apuro e da boa educação.

- É claro que fiquei inteiramente encantada com a nova hóspede. Assim como Jasmine, que fitava deslumbrada as roupas e modos que a jovenzinha possuía. Mas em pouco tempo este interesse foi substituído por reserva e desconfiança. Embora fosse sempre atenciosa com minha mãe, avó e alguns vizinhos que costumavam nos visitar, a bonitinha Carmilla não tinha uma boa atitude com o restante dos moradores de Oak’s Heaven. Não havia belos sorrisos para os empregados e crianças, e cedo aprendemos que a delicadeza da garota, quando dirigida a nós, era sempre acompanhada por algum outro interesse.

- Nunca descobrimos como aconteceu, mas não seria muito difícil escutar histórias, principalmente quando você é ladino por natureza. O fato é que Jasmine descobriu sobre o nascimento de seu pai. Não a conversa inventada de que Jerome era órfão de pai, mas que era filho ilegítimo de Duncan Morgan. E sendo temerária como era, Jasmine ignorou as ordens de minha avó e, num dia em que ouviu palavras atravessadas de Carmilla, não perdeu tempo em confrontar sua “tia” com a história sobre o parentesco de ambas.

- Naturalmente Carmilla não acreditou em nada. No começo. Ficou furiosa por aquela “mestiça” ter o topete de enfrentá-la, inventando histórias tão feias. Apesar de mamãe ter tentado intervir e colocar panos quentes, a conversa chegou até Jerome, que extremamente irritado, castigou Jasmine duramente. Mas as coisas só pareceram piorar. Carmilla, que não havia acreditado na menina, ficara intrigada pelo modo como as pessoas receberam a notícia da mentira. Principalmente os criados. Com sua capacidade para enganar, encantar quando queria, ela caiu nas graças de uma empregada antiga, de bom coração e língua solta. A história de Jasmine ficava cada vez mais verossímil.

- Não sei se algum dia, Carmilla chegou a acreditar. Era muito jovem, então, mas sempre pareceu mais velha por dentro, como se uma mulher velha espreitasse pelos olhos da mocinha que era. Penso que sempre negou, mas que em alguma esquina de sua alminha escura, enxergava a possibilidade, sabia. E suas atitudes só faziam crer nesta possibilidade. Com o passar dos meses, foi crescendo dentro de Carmilla um ódio surdo por Jasmine, sua família e tudo o que representavam. Era nítido pelo modo como não tolerava sequer a presença de nenhum deles. A fazenda comentou e logo Jasmine estava proibida pelo pai de se aproximar da casa grande e até de mim. Claro que chorei e berrei, mas não precisava realmente. Jasmine não acatava plenamente as ordens de ninguém. Era um espírito livre e sempre arrumava um jeito de ter as coisas a sua maneira.

- Nós nos encontrávamos no pomar, com a conivência de minha Bá, e brincávamos muito. Numa dessas vezes, Carmilla nos descobriu e fitando o semblante nada preocupado, pelo contrário, debochado, de Jasmine, avançou furiosa sobre mim, puxando minha mão e tentando me arrastar de volta para casa. Ela gritava com a Bá, dizendo que ela merecia ser chicoteada, e que eu, igualmente, merecia uma surra. Tudo isso por me misturar com uma criadinha da fazenda, uma menina suja, sem modos ou educação, uma criança maldosa, de más intenções. Uma negrinha mentirosa. Lembro-me perfeitamente da expressão: negrinha mentirosa. E lembro de como os olhos de Jasmine lampejaram, então. Ela me tomou da mão de minha prima e enfrentou Carmilla como se tivessem a mesma idade. Ela, uma criança de onze anos, enfrentando uma adolescente de quatorze. Era uma grande diferença. Mas Jasmine não se importou, riu do rosto furioso de minha prima, riu pelo fato de Carmilla ter o mesmo sangue que ela, uma criadinha negra. Carmilla gritou que Jasmine era uma bastarda e, por sua vez, a menina devolveu dizendo que então, conversaria com dona Cécile e resolveria esta situação. Disse que minha avó a ajudaria a receber o nome Morgan, que teria direito a usar as mesmas roupas que Carmilla, ter os mesmos luxos, e gritou a plenos pulmões que diria a todos que eram parentes, que ela, Jasmine, era neta de Duncan e sobrinha de Carmilla Morgan. Carmilla ficou lívida, parecia o retrato da morte, e as duas teriam se atracado se não fosse pela intervenção da Bá, muito assustada com o rumo das coisas, mas, mais ainda, com a reprimenda que, por certo, iria levar.

- Houve muitas palavras mais, xingamentos de ambos os lados, mas eu me lembro do significado de poucos deles. E acho que me lembro até demais, por ter apenas quatro anos, então. Mas vocês entendem que foi muito terrível e muito marcante, e que mesmo que as ameaças de Jasmine não passassem de blefe, foram bastante assustadoras para a outra. Ora, Jasmine fora criada correndo solta pela fazenda, convivendo com os meninos e falando o vocabulário deles. Em palavras pesadas e numa briga justa, Carmilla talvez não fosse páreo para ela.

- Não me lembro bem como tudo acabou. Apenas sei que chorei muito, sendo novamente afastada de minha querida amiguinha. Os adultos estavam nervosos e mamãe achava por bem, mandarem Carmilla de volta para Atlanta. Acho que apesar do dever familiar, ninguém na casa grande tinha afeição pela garota. “Esta menina é problema”, ouvi vovó Cécile falar várias vezes. Ela tinha apenas 47 anos, mas já estava doente, e minha mãe já começara a tomar a dianteira no comando e nas decisões. Sempre fomos uma família mais feminina. Os homens, quando duravam, não eram obstáculo para fazermos o que fosse necessário. Para o meu pai, tudo o que mamãe decidisse estava bom. Então, foi mandada uma carta para Duncan Morgan, mas antes que esta chegasse ao seu objetivo, o destino interviu mais uma vez. Interviu sem nenhuma misericórdia.

- Teríamos um casamento na vizinhança. Um grande casamento. Por coincidência, de um dos antepassados do ramo de Narcissa Morgan, hoje Malfoy. E, como de costume, seria uma festa apenas para os adultos e jovens já apresentados em sociedade. Mas ao contrário de se aborrecer, Carmilla, sem que imaginássemos como, pareceu muito conformada em não participar das bodas. Ela já sabia que iria regressar ao convívio paterno, sabia que não continuaria na fazenda por muito tempo, então pensamos que, por este motivo, ela não se importara em ficar sozinha com criados e crianças. Em breve estaria deixando todos para trás. Não enxergávamos então, a paixão que Carmilla sempre tivera por aquelas terras, por tudo o que havia naquela casa. Acho que nos odiou ainda mais ao saber-se banida.

- Mas seus modos sugeriam outra coisa. Calma e até mesmo sorridente, ela se despediu dos adultos, que regressariam do casamento apenas bem tarde da noite. Lembro-me da feição de minha avó, que por insistência dos noivos, estava fazendo aquela pequena viagem. Ela parecia fitar Carmilla de um modo incerto, mais que preocupado, avaliando. Tive a impressão de que desistiria de ir, mas já estavam atrasados e meus pais se despediram, arrancando alegremente pela entrada de carvalhos. Jasmine também assistia a tudo à distância, e me fitando de longe, mostrou a língua enquanto ria. Tenho gravada na cabeça esta cena. É tão vívida que me parece estar repassando um fato que acabou de acontecer. Jasmine debaixo dos carvalhos, os joelhos ralados e o vestidinho sempre sujo. Fazendo careta e me mostrando a língua rosada, depois sorrindo. Vejo como em câmera lenta, a boca se alargando, os dentes brancos e a risada que foi crescendo até morrer num muxoxo debochado. Num segundo estava lá, me fazendo rir, no outro tinha desaparecido entre as árvores.

- Não teria se tornado uma dama, aquela ali. Não que houvesse se importado. Provavelmente teria crescido e se metido em encrencas que até Deus duvida. Mas sempre imagino que se daria bem no final. Não importa a travessura, ela sempre se dava. Encontraria a quem amá-la, provavelmente dezenas de rapazes, até encontrar o que ela quisesse. E talvez fosse a mãe mais incomum deste mundo, mais brincando com os filhos do que educando. Imaginação... é tudo o que posso ter. Mas não importa o que houvesse, se Jasmine tivesse continuado conosco, não importa que vida escolhesse, acho que sempre seria feliz.

Eugênia desviou os olhos para a grande janela entreaberta e seus bisnetos procuraram não fitá-la por enquanto, dando um pouco de privacidade para aquela emoção estranha, que quase trazia lágrimas para eles mesmos. No pátio, as plantas balançavam pelo vento um tanto frio, e o som daquilo parecia fazer o fundo perfeito para a saudade.

Foi com a voz um tanto rouca que Eugênia prosseguiu:

- Mais tarde nós tivemos nosso jantar. Cedo, como em geral é nas fazendas. Carmilla esteve junto, silenciosa e muito calma. O sol ainda não havia se posto quando ela se retirou da mesa e saiu, dizendo que daria uma volta antes de se recolher. Os adultos só voltaram muito tarde e tenho a impressão de mamãe se debruçando sobre meu leito e me beijando. Sei que no dia seguinte as coisas não foram mais as mesmas. Nunca mais foram.

- Jerome Maurice estava na frente de nossa casa, ele, meu pai e outros tantos homens. Todos com caras mal dormidas, com seus cachorros farejadores, espingardas e semblantes preocupados. Eu não entendi aquela movimentação. As mulheres rezando no oratório, minha mãe me segurando apertado e a avó Cécile junto com as cozinheiras, separando ervas e acalmando uma mulher desnorteada, que eu reconheci como a mãe de Jasmine. Em meio a tudo aquilo, compreendi o que havia acontecido, sem necessidade de palavras. Compreendi de um modo ainda mais profundo do que os outros que me rodeavam. Sentada no colo de minha avó, Justine, sem dar um resmungo sequer, me fixou com seus olhinhos negros de pequena bruxa. Havia lágrimas escorrendo por seu rosto e logo pelo meu também. Nós duas sabíamos e apenas nós duas. Enquanto eles procuravam, Jasmine já estava morta.

Sentindo um nó em seu estômago, a mão de Ginny caminhou por conta própria por sobre a cama, indo sem se dar conta, para junto de sua atual maior fonte de consolo. A mão de Harry encontrou a dela no meio do caminho. Por mais que tivesse a ver com eles, era uma história com gente estranha. Não haviam conhecido Jasmine, nem toda a tragédia. Não eram nascidos e há muito tudo aquilo ficara para trás. Mas, por mais que Jasmine fosse desconhecida, era como se pudessem vê-la, senti-la, e a história e perda também fosse deles.

E Eugênia continuou:

- As buscas duraram todo o dia e noite, e o dia depois daquele e o outro, e o outro. Os cachorros seguiram rastros, rastros que sempre se dirigiam e morriam no rio. Homens mergulharam, investigaram por sua margem. Vizinhos se uniram nas buscas. O rio Mississipi parecia ter a resposta para tanto desespero, mas nunca respondeu. Na casa grande, as orações mudavam lentamente de tom, não mais para a menina, mas para a sua alma. O desespero da mãe se tornando prostração e o do pai parecendo somente aumentar, enquanto o ânimo de todos minguava, aceitando como certo o fim de Jasmine.

- Não sei contar o tempo, por aquela época. Nem me lembro bem de Carmilla, então. Parecia ainda mais discreta e silenciosa, uma sombra entre o caos. Apenas por volta dos dias em que iria embora, ela pediu a ajuda dos criados para encontrar seu camafeu, que havia desaparecido. Mesmo nisso, ela se comportou de forma diferente do usual, não acusando ninguém de furto, não esbravejando. Apenas procurava, um tanto febrilmente, seu inseparável adorno, a mais importante recordação que sua mãe lhe deixara. Até eu ajudei a dar uma busca pela casa, mais brincando do que procurando, escutando cochichos na cozinha sobre como a senhorinha poderia ter perdido algo de tanto valor. Como e quando. “Quem sabe se no mesmo dia em que fez esse machucado feio aí”, a Bá arriscou a perguntar de olhos baixos, apontando com um dedo tímido para o arranhão junto ao pescoço de Carmilla, que se apressou em escondê-lo. “Isso não foi nada. Algum inseto durante a noite.” Não foi preciso ver os olhos da Bá, eu era criança mas sabia que aquele ferimento não fora provocado por insetos. Tenho certeza que naqueles dias ninguém teria imaginado nada que ligasse o desaparecimento de Jasmine à Carmilla. Ninguém pensava em tal coisa e também seria fantasioso demais.

- Assim, Carmilla se foi, deixando um lugar entristecido, onde antes só havia alegria. Só a vi muitos anos depois, mas já chegamos lá, não quero me adiantar na história. Os meses passaram, entretanto a saga pela procura da menina não parou por aí. O que realmente destruiu a pequena família foi a loucura que acometeu Jerome Maurice. Todos acharam que era questão de tempo, que como sua esposa, ele iria se recuperar ou ao menos voltar à vida. Afinal, o mundo continuava a girar e eles tinham uma outra filha para criar. Mas não foi o que aconteceu. Depois de um ano do desaparecimento, ele continuava fora de si, quase andrajoso, mal trabalhando, usando seu tempo todo para procurar pela filha. Foi quando as histórias começaram. A princípio em murmúrios e depois aumentando, conforme o estado do pobre homem se deteriorava.

- Jerome começou a dizer ter visto Jasmine. Jasmine na beira do rio, com os cabelos molhados, grudados no rosto, chamando por ele. “O meu corpo... Acha o meu corpo, papai. Preciso de velas, de terra e um padre. Preciso de um enterro cristão. Estou com frio...” Eu escutei estas palavras por muitos dias. Será que foi fruto de sua mente perturbada? Das saudades que sentia? Uma menina de onze anos pedindo por um enterro cristão... E mesmo em meio a tantas dúvidas não houve quem não se arrepiasse ou chorasse ao ouvir a história. Jerome perdeu todos os sinais de lucidez, pouco tempo depois. Vagava pela margem do rio por dias seguidos, chamando pela filhinha.

- Algumas pessoas também afirmavam ter tido vislumbres de alguém. Pescadores do Mississipi, nossas bruxas da redondeza. Vovó disse que os mortos precisavam de descanso e que quando não conseguiam era sinal de terem deixado algo inacabado, algo a ser resolvido. “E o que poderia ser?”, eu perguntei, e vovó ficou me olhando, calada. “Essa menina quer seu corpo achado, quer justiça para quem fez essa judiação”, uma das velhas da cozinha falou, entendida. Mamãe ficou brava, dizendo que ninguém tinha que me assustar com tais histórias. Eu, que com cinco anos já percebia os pensamentos das pessoas e sabia, com espantosa certeza, quais de nós já não tinham muito tempo para viver. Vovó escutou mamãe esbravejar, mas não falou nada, continuando só a me olhar com seus olhos escuros. Decerto ela via como eu, sabia o que eu sabia. Que Jasmine queria seu corpo, queria justiça. E, decerto... acho que vovó também sabia que não teria vida longa.

- Nunca foi descoberto o corpo de Jasmine, nem foi confirmado como se deu sua morte. Só ficaram nossas dúvidas e poucas certezas. Mas no momento, o importante era cuidar do pai, o pobre louco que andava tentando se atirar ao rio, dizendo-se salvador da filha. Não acho que Jasmine agisse por mal – porque vocês têm que compreender, nem por um segundo, nós, as bruxas da família, nem qualquer outra que conhecíamos, achávamos que as visões da criança eram uma alucinação de Jerome. Jasmine aparecia para o pai, o seu espírito perturbado, que acabava trazendo mais mal do que bem. Imaginem perder alguém querido e, logo depois, receber a visita luminosa deste ser em espírito. Não seria consolador? Saber que esta pessoa continua, que a morte na verdade não existe? Mas o estado em que Jasmine aparecia para o pai... Seu desespero... Ela não trazia conforto algum. Em sua confusão, aquele espírito desgarrado trazia apenas desesperança.

- Nós já tínhamos nossa casa em Nova Orleans, a visitando apenas para temporadas, mas um dia, sem mais nem menos, mamãe decidiu que nos mudaríamos para lá. No começo achei que seria por minha causa. Já estava em idade de ser alfabetizada, de ter uma professora de verdade ou ir à escola. Porque, por mais que amasse Oak’s Heaven e adorasse a presença de sua mãe, Annabelle Morgan jamais aceitaria que sua filha não fosse criada da maneira correta. A mudança se daria mais cedo ou mais tarde, mas o fato que a apressou foi justamente a doença de Jerome. Vovó e mamãe concordaram em ter havido negligência com a situação do nascimento ilegítimo, pelo qual ele nunca recebera nosso nome. Mas ao menos, como parentes ou seres humanos, podíamos cuidar de sua saúde e da integridade física do resto de sua família. Jerome andava tão perturbado que temíamos até mesmo por sua esposa e filha. Então, ele veio conosco para a Casa Morgan, no Garden District. Para longe do Mississipi e seu canto de sereia, e veio estranhamente quieto. Vocês não sabem, mas as dependências externas da casa foram ampliadas unicamente para recebê-lo. E lá ele passou seus dias, quando estes eram bons, sempre acompanhado por um enfermeiro. No mais, enquanto viveu, ele esteve continuamente internado, sempre que vinham as crises e o desespero, o que infelizmente, era coisa constante. Morreu nos braços de minha mãe, pouco mais de um ano depois. E sua esposa compareceu ao enterro apenas para amaldiçoar nossa família, que havia sido a desgraça de seu marido e sua pobre filhinha. Justine estava com a mãe, e apesar de silenciosa e grave, não vi ódio em seu semblante. Elas já não viviam na fazenda.

- Carmilla apareceu alguns anos depois, moça feita, insistindo na história do tal camafeu desaparecido. Tinha ido a Oak’s Heaven perturbar os antigos criados, visto minha avó já ter falecido. E como não conseguisse nada, nem mesmo entrar, pôs na cabeça que o colar estava em poder de minha mãe. Se já não era bem quista por nossa família, Carmilla passou a não ser bem-vinda. Eu tinha dez anos e me lembro com clareza de sua figura junto ao portão de nossa casa. Tinha os mesmos olhos de velha e uma emanação de maldade que sugeria muita coisa negra em suas costas. Estava acompanhada pelo noivo, um homem mais velho, de olhos ruins, e insistia em ser recebida em nossa casa. Era uma parente, “uma Morgan!”, gritava, “devíamos este respeito a ela”. Minha mãe não apenas não a deixou entrar como, assustando a todos com seu comportamento tão contrário a sua educação francesa, expulsou Carmilla usando todos os impropérios e maldições que imaginarem. Nunca tinha visto mamãe usar uma maldição e, felizmente, jamais voltei a presenciar o fato. “O camafeu está perdido, assim como Jasmine”, ela sibilara para a jovem mulher, que alucinada, gritava que o encontraria e o teria de volta, que teria tudo que era seu de direito, custasse o que custasse.

- Mamãe teve febre alta aquela noite, e agradeceu à Deus por já ter levado o primo Jerome. Ninguém saberia o que ele poderia ter feito. Ficou claro para mim que mamãe sabia de algo. Algo sobre a morte de minha adorada Jasmine e um possível envolvimento de Carmilla. “Você está com o camafeu, mamãe?”, perguntei a ela na manhã seguinte, sabendo que devia guardar minha curiosidade perigosa para mim mesma, mas não podendo evitar. “Chegará o dia de me fazer esta pergunta, Eugênia. Mas ainda não.” Por anos, esta foi a única resposta que obtive.

Se ajeitando melhor na cama, Eugênia se remexeu, mudando a posição dos músculos cansados:

- Bem, e como disse minha mãe, sempre há um dia para perguntas. – ela olhou para os bisnetos. – O que vocês querem me perguntar?

Os jovens se entreolharam, intrigados pela súbita interrupção. Mas conhecendo a bisavó, Eugênia não pretendia parar por ali, apenas procurava dar tempo para que ambos processassem tantas informações.

- Se estou entendendo, a suspeita... quase certeza, é de que Carmilla seguiu a menina, Jasmine, ou a atraiu até a beira do rio. E lá... a lançou para as águas. – Ginny tinha dificuldade em falar, em imaginar tudo isto acontecendo. Parecia poder sentir o desespero de Jasmine.

- A lançou para o Mississipi, mas não sem luta – Harry tomou a narrativa. – Jasmine era corajosa e boa de briga, deve ter tentado se defender, agarrado as roupas de sua adversária, arranhado seu pescoço e, num ato reflexo ou até de raiva, ter arrancado o seu colar de camafeu. Mas por fim, venceu a força física. Carmilla já era uma adolescente, enquanto a menina...

- Era uma criança – Ginny finalizou com os olhos rasos d’água. – Só uma criança. – Ela agora entendia o que Keisha quisera dizer com assassina de crianças. Resumidamente, Harry e ela haviam explicado o mistério do desaparecimento da menina.

- Então é por isso que a velha Carmilla nos aparece? Por ter matado a menina? – Harry apertou os olhos, ainda atordoado. Quer dizer, você sabe quando sua família é diferente, mas histórias de assassinato não são exatamente folclóricas, mesmo quando tão antigas.

- Aparece pela menina... ou pelo camafeu? – Ginny recebeu um sorriso de satisfação da bisavó.

- Talvez pelas duas coisas. Acredito que ambas estão interligadas. Quando ela aparece, mesmo querendo nos destruir, sua obsessão continua sendo o camafeu de sua mãe.

- Ela aparece para a senhora – Ginny não se surpreendeu de verdade e aquela foi mais uma afirmação do que uma dúvida.

- Se Carmilla ainda me aparece? Ah sim... Geralmente quando estou doente, mas pelo visto, agora também costuma dar o ar de sua presença quando estou fora de casa. Ela já era uma feiticeira suja quando nos procurou na Casa Morgan e deve ter se tornado ainda pior com os anos. Tinha força para saber que seu objeto querido estava por perto. Tanto que ainda hoje ronda esta casa e suas riquezas como se lhe pertencessem por direito. Ronda minha caixa de jóias como se o seu colar de camafeu se escondesse dentro dela.

- E se esconde? O camafeu está na caixa? – Ginny sondou a expressão da bisavó. - A senhora não disse se sua mãe chegou a responder sua pergunta.

- Ele, o camafeu, esteve com nossa tataravó Annabelle? – Harry foi mais direto.

- Esteve sim – Eugênia assentiu com gravidade. - Com ela, em suas mãos e nesta casa. Mas em minha caixa de jóias, jamais. Como tantas lendas perdidas, a pista do camafeu desapareceu com a morte de minha mãe.

- Como ela o encontrou? – Harry queria mais, queria finalmente desvendar parte daquele segredo. – E o mais importante, como o perdeu?

- E quem disse que ela o perdeu? – Eugênia ameaçou sorrir, mas não o fez. - Certamente o camafeu fez uma longa jornada até ser encontrado, mas não foi minha mãe quem o achou. Como vocês espertamente resumiram, ele caiu nas águas do Mississipi, e lá deveria ter se perdido, ter sido destruído junto ao pequeno corpo de Jasmine. Mas quis Deus, em sua piedade e sabedoria, que fosse encontrado por alguém. Por alguém que somou os fatos em sua cabeça atormentada. O pai da menina. Jerome deve tê-lo encontrado em suas andanças pela margem do rio, eu não sei. E também não sei por quanto tempo ele o carregou até que confiasse a história a minha mãe. Penso que foi quando nos mudamos apressadamente para Nova Orleans. Coisa que “coincidiu” com a total deterioração do pobre homem – ela balançou a cabeça, inundada por lembranças. - Ah... eu gostaria de dizer que se ele recuperou, que voltou para a esposa e a filha, mas como já sabem, Jerome morreu ainda muito jovem, poucos meses depois de chegar a esta casa. E a pista do camafeu desapareceu com ele. Nunca soube o que foi feito dele. Mas mamãe sabia algo, disse que esteve em seus cuidados por algum tempo e que, um dia, Jerome pediu para vê-lo. Jerome estava em nossa casa, em uma das raras vezes em que se mostrava mais lúcido, e minha mãe deixou. Mas ele jamais o devolveu.

- Acho que mamãe tinha suas teorias sobre o sumiço e também acho que teria me confiado a história completa no momento certo, mas seu tempo na terra se esgotou antes que tivesse a oportunidade. Era uma mãe muito cuidadosa, querendo poupar a filha até a idade certa. Eu sempre poderia ter insistido mais, mas essa história a feria sobremaneira, de modo que o assunto sempre era evitado. Me arrependo disso agora, como de poucas coisas na vida. Mamãe usara sua força para nos encantar, proteger esta casa e nossa família, e dera certo. Carmilla não mais nos procurara e não ouvimos mais nada sobre ela durante longos anos. Estávamos vivendo tempos tranqüilos e penso que nos esquecemos de ser vigilantes, porque o perigo espreita mesmo nos dias de sol. Mas... – ela suspirou - eram tempos diferentes, e eu era tão jovem... Como saberia que mamãe nos deixaria tão cedo? E com tantos segredos e mistérios? Eu, que sempre pensei enxergar um pouco do futuro, quanto tempo uma pessoa teria na Terra, não vi os sinais, não percebi coisa alguma. A vida me deu esta lição de humildade, de que no fundo, não sabemos de nada. No fim das contas, somos todos apenas humanos.

- Mas continuando, é indiscutível que Jerome teve o camafeu nas mãos, minha própria mãe o devolveu, mas, por motivos que não sei dizer, ele decidiu escondê-lo. Vingança contra Carmilla? Uma tentativa de nos proteger? Eu não sei. Procurei este camafeu por muito tempo, nesta casa, no apartamento em que Jerome viveu. Cheguei a procurar em Oak’s Heaven, mesmo sem imaginar como pudesse ter chegado até lá. Mas... decerto não era meu destino encontrá-lo e eu tenho que me conformar. – Ela olhou bem para os dois adolescentes. – Quem sabe, outros mais jovens podem vir a tropeçar com ele.

- E porque é tão importante encontrar esta jóia? – Ginny perguntou, mas foi Harry quem respondeu.

- Porque está imantado com toda a força de vontade da Velha, com sua obsessão. Enquanto ela o procurar, o desejar, estará ligada a esta família.

- É uma forte possibilidade – Eugênia afirmou. – E a melhor cartada que temos.

- Então temos que começar a procurá-lo o quanto antes! – a garota exclamou exaltada.

- Agora, querida, não comece a revirar as coisas por aí. – Eugênia sorriu compreensiva. - Isso já foi feito. Apenas pense a respeito, você e Harry. Talvez surja uma luz, uma idéia ou inspiração. Só não deixe que se torne obsessão, isso apenas serviria para atrair a antiga dona à pessoa obcecada. Seriam energias semelhantes demais.

A garota tremeu, imediatamente recebendo um aperto da mão de Harry e, por isso mesmo, tomando conhecimento de que as mãos estavam entrelaçadas. Ela o soltou no mesmo momento.

- Mas agora, me arriscando a ser insensível a curiosidade de vocês, eu realmente acho que preciso descansar.

Desapontados com o término das reminiscências, mas obedientes e preocupados com a bisa, Harry e Ginny se despediram, certificando-se que Eugênia estivesse bem. Com um último beijo, se prepararam para deixar o quarto.

- Só mais uma coisa, crianças – a bisa chamou. - Evitem dizer o nome de Carmilla. Existe um fundo de verdade nas histórias de assombração. O nome da criatura a faz reconhecida e a deixa mais forte. Agora saiam, antes que eu, com minha língua comprida, deixe vocês realmente com medo.

- Eu poderia ter te dito isso – depois de descerem as escadas, Harry vinha ao lado da garota, coçando a cabeça, pensativo.

- É coisa demais... – Ginny parecia atordoada. – Como é que se supõe que alguém possa dormir com tanta coisa na cabeça?

- Eu sei. Mas tente, está bem? Amanhã conversamos sobre tudo, mas hoje precisamos mesmo descansar. E não se preocupe, a bisa não teria nos deixado sair se achasse que existe algum perigo. Pelo menos esta noite.

- Certo. Claro – Ginny procurou se convencer.

Chegaram à porta e a ruiva esperou que Harry saísse para poder trancá-la. As palavras estavam soltas antes que pudesse evitar:

- Sabe, se ela fica rondando os lugares onde pode estar escondido o camafeu, eu teria receio de ficar sozinha naquela garçonière. – A garota perscrutou o rosto do primo, não sabendo bem se procurava por sinais de pânico nele. – Não fica com medo, Harry?

O rapaz fez uma meia careta:

- Não é uma sensação muito agradável, pode crer. Mas enfim...

- E mesmo assim, você não se importa em ir pra lá sozinho? – ela insistiu.

A careta foi substituída por um sorriso matreiro:

- Fazer o quê? Preciso me conformar. Mas se você se resolver a ficar lá comigo, já conhece o caminho – e com uma piscadela, ele sumiu rapidamente no meio do caminho escurecido.

Ginny permaneceu por segundos, segurando a porta aberta:

- Garotos...


XXXXXXX


No dia seguinte conversaram muito a respeito, entre ambos, porque a bisa não pareceu disposta a maiores interrogações. “Não por enquanto”, disse ela, assim como sua mãe, Anabelle, havia dito anos antes. Aos garotos pareceu que, como a tataravô, Eugênia esperava por uma maior maturidade dos dois para revelar novos segredos. E como tia Candie não parecia saber mais do que eles, ou fingia muito bem, não havia nada mais que podiam fazer, exceto se consolarem trocando impressões e milhões de possibilidades. Mas como estavam tendo a precaução de não se tornarem obcecados, também faziam outras coisas, como os rituais de limpeza que Justine tinha ensinado.

Era noite quando uma encabulada Ginny recebeu o primo em seu quarto, local onde fariam o tal ritual. A coisa parecia muito simples, velas, água espalhada pelo chão, pelos cantos, orações. Mas tudo era novo para a garota, inclusive a novidade de ter um rapaz em seu quarto. Na verdade, não apenas um rapaz, mas aquele rapaz. Tinha algo de belo em observar Harry se movimentando por seu ambiente, meio que cuidando dela. Aquele era um sentimento gostoso, mas também perigoso. Tirava o chão. Por isso, Ginny se esforçou, pela primeira vez, em abordar o tema da história que Eugênia lhes contara. Era preciso se focar em coisas menos perigosas que seus sentimentos:

- Que tipo de sentença foi aquela? Antes de toda a história, quando a bisa disse que “sangue vai correr”? Me deu arrepios.

- Eu sei – ele respondeu sem se voltar, ocupado em colocar água flórida nos cantos do quarto. Não é o tipo de linguagem dela. Nem acho que quisesse nos assustar. E por isso mesmo...

- O quê?

- Por isso mesmo achei um pouco assustador. Ela não diria nada por leviandade. Se falou em sangue... Mesmo num sentido figurado...

- Sei, sei. Melhor pular pra outro assunto.

Harry deu de ombros, agora concentrado em ajeitar as velas e depois acendê-las. Mas a ruiva estava pensativa. Por mais que quisesse, não conseguia se desligar totalmente da história. E talvez... nem quisesse se desligar. Era tudo perturbador demais para quem precisava manter a paz e a cabeça fria. Estava viajando em pensamentos e no silêncio do quarto, apenas interrompido pelo suave movimento de Harry, então escutou um barulho no banheiro, a torneira da pia pingando. Aquele barulho hipnótico, às vezes irritante. Jasmine sorrisos, sol, Jasmine peralta, Jasmine afogada. Virgínia estremeceu forte quando Harry a tocou.

- O que foi? Estava te chamando e você longe...

- Estava pensando nela, na menina. No que aconteceu.

- Se perguntando se foi a Velha que a matou?

- Não. Foi a Velha, sim. Sei que foi.

- Olha, sei que é difícil, mas quando uma coisa fica pesada demais, a gente precisa dar um tempo, esquecer, senão agente pira.

- Você sabe bem do que está falando, não é?

- É – ele esfregou as mãos nos cabelos e se afastou para a beira da cama. – E agora vou te ensinar. Laissez les bons temps rouler, Virgínia – ele deu um sorriso meio triste. – Mas primeiro... venha até aqui. – E apontou para as velas com intenção de começar o rito.

Ela se viu apreensiva:

- Mas... não conheço esses rituais. Nem palavras mágicas, nem invocações de... de Les Mystéres. Não sei como fazer nada.

Ele sorriu compreensivo, gostando do modo como as expressões de Nova Orleans ficavam na boca dela. Expressões típicas e bem temperadas, misturadas a um sotaque britânico que se suavizava a cada dia. Ginny estava se tornando uma flor sulina, não precisava se preocupar com nada, tudo viria de forma natural.

- Não esquenta. Reze do jeito que está acostumada.

- E vai ser o suficiente?

- Claro que sim. O que importa não é a maneira, mas a fé que vai estar pondo. – Então ele se ajoelhou e fez um gesto para que ela o imitasse. – Vamos fazer do seu jeito, ok?

Ela estava esperando palavras estranhas, cabalísticas, talvez no creole, como as da senhora Zabini. Mas aquilo...Totalmente abismada, Virgínia se preparou para orar como estava acostumada, em sua fé católica, de joelhos e mãos cruzadas. E Harry a levara a rezar como ela sabia, respeitando suas crenças e dúvidas, porque, por mais reticente que pudesse ter sido, Ginny crescera e respeitava a fé de sua mãe. Foi com um brando calor no peito que se juntou ao primo e orou, com todo o fervor de sua juventude.

Terminou antes de Harry, mas não o atrapalhou. Ficou fitando sua expressão concentrada, pelo canto do olho. Fitando e morrendo. Naquele minuto, ela pensou. Queria tocá-lo naquele minuto. O bruxo Morgan que, por ela, fazia as coisas de outro modo ao qual estava habituado. Para protegê-la. Ginny achava que jamais seria possível, mas Harry lhe pareceu ainda mais fascinante. Dotado de força extrema, mas ajoelhado, usando a auréola de um anjo caído. Ela sabia que enquanto sua alma havia orado para os seus anjos de infância, o seu coração havia orado para e por Harry.

Ele acabou e lhe lançou um breve sorriso. O ritual estava terminado. Um suave perfume de laranjas, talvez flor-de-laranjeira, emanava no quarto, e as velas arderiam noite adentro. Conforme os dois foram se aquietando, se deram conta de que gostariam de permanecer assim, juntos, observando a chama das velas, compartilhando da presença um do outro, que lhes fazia tão bem. Foi Harry quem quebrou o longo silêncio:

- Está ficando tarde.

- É? – agora sentada em sua cama, ela mal tinha percebido o tempo passar. - Ah... acho que sim.

- Você vai ficar bem? – Em pensamento, ah... apenas em pensamento, Harry deixou sua mão deslizar gentilmente pela coluna dela.

- Vou ficar, sim. – Ginny respondeu sentindo um arrepio engraçado subindo pelas costas.

- Nada de medo?

- Depois de tantas boas vibrações? – ela sorriu fazendo graça. – Pode sossegar, Harry, eu controlo o meu medo – e então encolheu um ombro. – Bom, ao menos na maior parte das vezes. É preciso.

- Você sabe que pode sempre me chamar, não é? – era estranho, mas ela podia jurar que Harry parecia um pouco tímido.

- Arrã. A bisa também me disse isso. E a tia Candie.

Encostado no guarda-roupas, Harry fez que sim, começando a mexer o bico do tênis no soalho, sem motivo aparente.

- Mesmo assim... se quiser... – ele começou a arrepiar os cabelos novamente e ela soube de verdade que o primo estava ansioso. – Não é problema nenhum para mim. Continuo aqui por causa de vocês três, sabe?

- O homem da casa – ela sorriu e ele a fitou de um jeito que Ginny não entendeu, apesar do coração ter saltado, lendo o que a mente não via.

Eles retiraram os olhos e o silêncio se estendeu, pesado.

- Então... – foi Harry quem o quebrou. - Acho melhor eu voltar pro meu próprio quarto. Depois de mais um dia desses... Você deve estar querendo descansar.

Mas uma vontade, feita de asas de borboletas, começou a tomar forma no corpo da garota:

- Mas se eu precisar... e chamar...

- Eu venho – falou com certeza, num modo muito diferente da insegurança de momentos antes.

Os olhos se fitaram novamente e, mais uma vez, Harry levou sua mão invisível até a boca da garota, desistindo de tentar, de correr, de ser quem ele já não era.

- Você chama?

- Mas eu já chamei... – sua voz não foi mais do que um sussurro. – Em todos os dias em que você me rondou... Aqui, na escola... Durante o sarau... Eu tenho chamado.

- Então... acho que finalmente eu ouvi.

- Bom.

Eles sorriram um para o outro e “ouvindo” o que Ginny dizia, Harry se aproximou dela devagar. Ao sentar-se sobre a cama, não soube mais o que fazer. Ele, veterano em mil encontros, se achava pura e simplesmente sem palavras e ações. Mas Virgínia o salvou:

- Desta vez, além dos olhos, pode me tocar com as mãos de verdade.

O sorriso dele se alargou, seus fantasmas internos fugindo do súbito clarão que lhe iluminou a alma. Eles ainda voltariam, fantasmas antigos não são expulsos do dia para a noite. Mas hoje, agora, eram só Harry e Ginny.

- Eu só gostaria de ter te “ouvido” antes – murmurou muito próximo, próximo demais.

Ginny sentiu a mão dele envolver sua cintura, a mão verdadeira, quente e macia, se embrenhando bem pouquinho por dentro da camisa do pijama, acariciando muito de leve a curva de sua cintura. Um arrepio tão bom...

- Não, as coisas acontecem na hora que tem que ser – ela sussurrou. – Depois de todos esses dias esperando, era você quem tinha que ter certeza.

Os olhos dele brilharam, talvez de humildade, talvez de triunfo. Ela havia esperado por ele, mas não mais, não mais.

Devagar, Harry se inclinou sobre Ginny, os dois, como a um ato combinado, escorregando devagar e sem problema, até ficarem deitados de lado no colchão. E no mesmo ritmo, ele juntou os dois corpos mais e mais, e a girou de mansinho, se deitando com carinho por cima dela. Ele a fitou lentamente, decorando seu rosto, a curva delicada do pescoço, uma pintinha mínima, quase invisível, junto ao lábio superior. E Ginny o assistia, completamente entregue, assistia a boca entreaberta se aproximar, o corpo pesar um pouco mais sobre o seu, os cabelos negros caindo de um jeito tão bonito sobre os olhos. A mão dele saindo de sua cintura e correndo até os cabelos vermelhos, os dedos se trançando em suas mechas, posicionando sua cabeça delicadamente.

- Se existe uma hora certa – ele falou antes de acontecer -, então eu acho que a hora chegou, Gin. Tenho certeza. Eu já tinha, só que agora... eu sei.

Aconteceu. As bocas se encontraram num beijo suave, quase que um simples roçar de lábios, como aquele antigo primeiro beijo que trocaram juntos. Ela soube que já tinha provado aquilo antes, e ainda assim, era como se fosse o primeiro, o verdadeiro, porque eles enfim, sabiam.

Ginny não acreditava que Harry pudesse ser tão doce, tão cuidadoso com o modo de lhe beijar, deslizando a língua tão devagar, como se temesse feri-la. O jeito de aprofundar o beijo, como se sua boca fosse um sorvete que precisasse ser derretido muito, muito devagar, até que ele pudesse sentir todo o gosto que tinha. Um beijo vagaroso, acompanhando a batida de alguma música lenta. O modo delicado de tocar a alça de sua blusa, afastando um pouco o tecido, deixando seus ombros livres, mordendo com leveza e tremulamente sua carne, passeando as mãos com lentidão por todo o seu corpo devidamente coberto, braços, cintura, um pouco das pernas vestidas pela calça do pijama. E sorrindo. Sorrindo surpreso, como se agora descobrisse o que é ser feliz.

Eles passaram toda a noite juntos, perplexos com a descoberta um do outro, alternando momentos de espanto, carinho e paixão. Ela permitira os poucos avanços do rapaz, e na verdade, até ansiara por eles. Ora Harry lhe dizia palavras doces junto ao ouvido, palavras que a faziam corar. Ora a colocava sobre si, devorando sua boca com fome e deixando as mãos correrem com um pouco mais de liberdade pelo corpo macio, então rolava sobre ela e recomeçava. Se amarrotando aos poucos, se amassando, deixando as bocas incharem com beijos demais. Naquela noite, ela aprendeu a tocar, a gemer, aprendeu o que era desejo e como ele podia crescer até ser tão forte que era quase dor. Naquela longa noite mágica, ela, tanto quanto ele, aprendeu a pertencer.

Sem que tirassem uma única peça de roupa, eles se sentiram como amantes, ele se movendo sobre ela como se estivessem vestidos apenas com as próprias peles, fazendo amor. E, de certa forma, era o que estavam fazendo, o que fizeram até a primeira luz difusa da manhã incidir sobre a janela. Amor.

- Não consigo acreditar... Nós não dormimos a noite inteira – ela virou o rosto para as finas cortinas de organza.

- Está amanhecendo mesmo? – ele resmungou baixinho em seu pescoço. – Tem certeza que não é a luz de alguma estrela?

- É a luz de uma estrela sim, mas, infelizmente, de uma estrela chamada Sol.

- Então esta é a hora em que eu digo: "Tenho que ir", e você diz: "Fica".

- Minha loucura não chega a tanto - ela riu, não podendo deixar de provocá-lo. - Já pensou se alguém te pega aqui?

Harry esfregou o rosto no pescoço da garota, querendo se assegurar que o cheio dela se impregnasse em cada parte do seu corpo.

- Era só dizer a verdade. Que o seu primo atencioso veio velar pelo seu sono.

Ginny riu gostosamente:

- Sono este que não ocorreu justamente por culpa das “atenções” deste primo - ela fechou os olhos, provando o milésimo beijo de língua desde que se deitara naquela cama. Há muito não sabia qual era o gosto de quem. Ele mal lhe dava tempo para pensar. – Mas... – ela se esquivou um pouco. - Pode velar pelo meu sono assim, sempre que quiser.

- Cuidado, - ele falou entrecortando palavras e beijos no seu pescoço – eu posso acreditar nisso.

- Eu ficaria... – ele estava aumentando a intensidade dos beijos? - muito decepcionada... se não acreditasse.

Um novo beijo na boca, como os mais intensos que trocaram. Outra vez aqueles tremores. Outra vez ele colado sobre ela como se poder nenhum o pudesse afastar.

Ginny gemeu e virou a cabeça para o lado com dificuldade:

- Harry... – ofegou. – É sério. O dia...

- Ah, certo... – ele parou de espalhar beijos por ela, sua voz um pouco tremida. – É por isso que eu sou e sempre serei uma criatura noturna.

- Bom - ela saiu de baixo dele, ficando os dois de lado –, eu sou um ser diurno. Como é que a gente fica? – sorriu um pouco pela observação dúbia.

Mas ele não se deu por achado:

- Vamos ser criaturas de crepúsculo e aurora. Mas eu não me importo de abdicar de velhos hábitos por você.

- Nós estamos decidindo alguma coisa, aqui? – ela mordeu o lábio inchado, em expectativa.

- Você acha que eu poderia passar mais um dia sem você?

Ela sorriu:

- Você me respondeu com outra pergunta. Mas foi um bom tipo de resposta, em todo caso.

- E você não me respondeu coisa alguma.

- Qual era mesmo a pergunta? – implicou.

- Você acha que eu poderia passar mais um dia sem você?

Ginny teve certeza de que a casa toda podia escutar seu coração trovejando:

- Espero que não – conseguiu por fim responder -, porque eu não vou deixar isso acontecer.

- Esta – ele a puxou de novo para baixo de si –, foi uma resposta melhor ainda.

E repletos de promessas implícitas, eles se enroscaram e se beijaram e beijaram, até que o dia clareasse por completo. Até não terem outra escolha a não ser saírem daquela cama.

- O que você pensa que está fazendo? – Ginny estranhou quando ele a puxou para a sacada ao invés de seguir para a porta e se esgueirar para fora do quarto.

- Você já vai ver.

Andou de mãos dadas até junto ao gradil, e Harry a puxou para si, levantando seu corpo até que ficasse quase sem apoio nos pés.

- Você fica linda com os cabelos embaraçados. Especialmente pelo motivo que estão assim.

- É, mas agora a noite passou e estes cabelos embaraçados precisam ser penteados e a dona deles precisa descer para o café da manhã e fingir que as olheiras são por uma terrível insônia, mesmo que o sorriso no rosto desminta tudo.

- Talvez a gente devesse dizer que está doente... e passar o dia todo na cama.

- Hum... acho que não daria certo, elas não iam fingir que acreditam e também não iam colocar os dois enfermos no mesmo quarto. As coisas meio que mudam quando o dia chega.

- Jura que a noite já passou? – ele sorriu de leve quando ela fez que sim. – Que é o rouxinol quem canta e não a cotovia?

Ela abriu os olhos um pouco mais, espantada, e ele girou os olhos, meio exasperado consigo mesmo.

- Não sabia que conhecia essa história – a ruiva esfregou o nariz no dele, rindo ao ser comparada a uma Julieta no alto da sacada, por onde se despedia o seu Romeu. – Você é tão cheio de surpresas...

- Participei de uma peça há uns quatro anos, mas não tinha compreendido nada - ele via tão de perto aqueles olhos luminosos, cheios de um começo de sol... - Pelo menos não tinha entendido até hoje. É incrível... como eu não me canso de tocar você. Como tudo é diferente... com você. Cada pedacinho... – ele correu a boca de leve pela dela, pelo queixo e pescoço, até se fixar novamente nos olhos. - Você vai fazer amor comigo um dia, Ginny Morgan. Você vai.

Ela sentiu um forte arrepio na coluna e um frio bom crescer na barriga.

- Isso é uma certeza? – olhou bem dentro dos olhos dele, num primeiro flerte calculado, sentindo a luz dançar ao seu redor.

- É o destino – ele imaginou se ela sabia o que estava fazendo com ele. - E também é uma promessa.

- Talvez você tenha que esperar um pouco mais por isso.

- Eu posso esperar o quanto você quiser. Desde que me prometa...

- O quê?

- Que vai me deixar ficar assim de novo com você. O mais depressa que puder.

Ginny abriu um sorriso:

- Crepúsculo e aurora?

- E noites e dias.

- Esta noite? – ela usou um tom que era ao mesmo tempo uma pergunta e um convite. Sim, ela sabia o que estava fazendo com ele.

- Ou antes – Harry murmurou, lhe dando um beijo lento, morno, ansioso para crescer, para se tornar bem mais do que isso. Então a deixou com um resmungo final, saltando com agilidade para o lado de fora da sacada.

- Sabe - ela falou, sabida -, desse jeito nunca mais vamos dormir.

Harry riu e Ginny se inclinou, assistindo o rapaz descer rapidamente pelo gradil, em meio a trepadeiras e flores, para logo chegar ao chão, mas não se afastar do gramado. Ele continuava parado, olhando para ela, sorrindo todo feliz.

- Vá embora! – ela sussurrou num tom risonho e urgente. Daí a pouco Sarah Mae ia chegar, a casa começaria a acordar e aquele louco não arredava pé de sua janela. – Vá para o seu quarto! – ela gesticulava com as mãos, tentando soar séria e parar de sorrir feito boba. Sua boca não lhe obedecia mais. Queria ser tomada pela dele, sorrir para ele. Ela toda estava cheirando e pertencendo a ele, não estava? O sorriso só fez crescer.

- Não consigo ir. Não dá - ele falou lá de baixo. - Se você não entrar agora, não vou poder sair daqui.

- E se eu não entrar? – sua voz provocou, antes que tomasse conhecimento.

Harry sorriu mais largo ainda, mais maroto, e em duas ágeis passadas já escalava a treliça novamente.

- Não! – ela tentava falar baixo. – Seu maluco! Alguém pode ver...

Ele chegou até onde ela se pendurava e a puxou pela nuca, dando um beijo profundo e risonho.

- Gin... bom dia - ele a encheu de beijos. - Bom dia, bom dia, bom dia. Agora entre, antes que eu pule aí pra dentro.

Ela se afastou de costas em pequenos pulinhos peraltas, mordendo os lábios, o rosto distendido de pura alegria.

- Harry... - ela falou antes que ele se afastasse – Que o dia seja breve - lhe soprou um gracioso beijo pela mão. – Não vejo a hora de a noite chegar.

Antes que ele concretizasse aquele olhar de aviso, saltando sobre ela, Ginny fechou as cortinas, se afastando do mundo que acordava.

Ela o escutou suspirar e descer, e dançou sem música pelo quarto, e girou de olhos fechados, bem rápido, vivendo numa dimensão encantada. Girou até jogar-se de bruços sobre a cama, se abraçando ao travesseiro, sentindo o cheiro dele nos lençóis, nela mesma, o gosto dele quando passava a língua pela boca. E riu baixinho, riu sozinha, batendo os pés na cama e abafando com o travesseiro os gritinhos de alegria que não podia conter. Era aquilo estar apaixonada? Nunca tinha estado antes. Apenas sabia que aquele era o dia mais bonito que já tinha visto nascer, que o sol não dançava lá fora, mas ali dentro, e que o universo inteiro morava e explodia no seu peito.


XXXXXXXXXX


N/B Sally: *-Atropelada, completamente, Sally ergue o corpo estirado do asfalto quente e tenta começar a falar.-* Sim, minhas senhoras e senhores. Ela demorou. Muito. Mais de mês. Nos deixou aqui. Noites insones. Dias de procura pelos sites de fics da vida. Então, ela aparece, do nada, com isso. E ISSO é, simplesmente, o melhor capítulo da fic (até agora). O que quero dizer é: se afivelem nas suas cadeiras de computador porque vem mais, muito mais. Eu sinto. Eu sei. Sou bruxa, sabem? Vocês perceberam, não é? Perceberam o quanto a história fascinante vai se tornando cada vez mais incrível? Está acontecendo diante dos nossos olhos. Me digam: Vocês não amaram a Jasmine? Não odiaram a Carmilla desde o instante em que ela saiu do carro? Não ficaram com lágrimas nos olhos, não gritaram junto com o pobre Jerome? Ahh eu tenho certeza que sim. E mais. Quem terminou de ler esse capítulo precisando de um respirador artificial, levante a mão! *-Contando a multidão-*. Dá para acreditar no que ela fez? E céus, foram só beijos. Só beijos? Só beijos!!!! Beijos e mais beijos e mais beijos... mana Owens, eu aqui totalmente enlouquecida e encantada, parabenizo e reverencio você. Obrigada por me escolher para ser a sua chata de plantão. É o meu presente de amiga-secreta, rsrs. Te amo!


N/A: É, eu sei... Romeu e Julieta, e a cena do balcão. Não pude resistir, é a minha favorita. *sorri toda boba
E sorri ainda mais com esta N/B maravilhosa. Sally, você não existe! :-*
Um beijo estalado para a Priscila Louredo também, de quem eu NUNCA me esqueço. Hihihi (Sua fic está sensacional, irmã!)

Gostaria muitíssimo de poder responder a todos os recados maravilhosos, engraçados, espirituosos e amorosos de vocês. Mas foram tantos (\o/ comemora enlouquecidamente) que demoraria demais e seriam necessários pelo menos dois dias para tentar respondê-los a altura. Mas não pensem que não li todinhos. Eu li! E em muitos casos reli e reli. Dei um monte de risadas e me derreti toda. Estão todos guardados no meu coração.
E para responder algumas dúvidas, resolvi colocá-las todas juntas, ok?

Vamos ver, ainda não fui à Nova Orleans (ainda! Hihi), mas pesquisei um bocado sobre a cidade. Não se desesperem porque vai ter Candie e Sirius, sim! E mais Draco/Lizzie, Ron/Mione. Sobre o que rolou com Ron e Mione na biblioteca, vcs ficarão sabendo em breve. Hehe.
A bruxaria na fic não tem uma linha definida, como a Wicca, por exemplo, mas teremos sempre o vodu aparecendo. Não existirá mágica como no universo da tia Jô (varinhas, coisa e tal), mas feitiços evidentemente irão acontecer. ^^
Como a Ana Karynne inteligentemente observou, temos elementos de “Merrick” (outro livro de Anne Rice), sim. Foi uma das minhas fontes de pesquisa para o vodu, assim como “A Fazenda Blackwood”. E eu AMO Tarquin Blackwood. *suspira
Tenho recebido convites para ler fics de leitores e, na medida do possível, estou indo, mesmo quando não dá pra tempo pra deixar um recadinho.
Como bolei a fic? Tirando alguns elementos de Anne Rice e... só Deus sabe. Hihihi
Sobre Oak’s Heaven, estou doida pra levar vocês até lá. O lugar é maravilhoso e mágico! Mas podem ficar sossegados, já estou planejando nosso passeio. ^^

Agradecimentos especiais:

A.J Lestrange, Ive, Le (nossa... obrigada!), Luana Potter (já dobrei o cabo da boa esperança. Háháhá), Sophia Di Lua, Ari Duarte, Hannah Burnett, Lis.Strange (brigada! “Bater cabeça” Ahuahuahuahaua!), Bruna Granger Potter, Ara Potter (Saudade!), Livinha (;-*), Lanni Lu (tá adivinhando coisas certas! ^^), Miaka, July Black, Lilly, Beatriz (vc lendo é igualzinha a mim!), Ceci Potter, Ninguem (Amei! Amei! Amei!), Cacau Potter, Grazi Potter GMM (Obrigada!!), Yasmin Prado, Pam Potter (medu! ^^ Valeu, querida!), Michelle Granger (amo, irmã!), Carine Gonçalves, Leka Evans, Priscila Louredo (ex-amiga ocultaaaa! Bju, mana!), Isa Kolyniak (valeu, linda!), Gêgê (eu adoro Mione mais solta. Hihi), Monalisa Mayfair (Obrigada... tô vermelha igual um tomatinho), Sônia Sag (ahuahuahuahua!), Paty Black (brigada Florzinha!), Kelly (vc é incrível, mana!), Lana Weasley, Jéssica, Mica Caufield (que lindo!), Aluada (estou lendo! Hihi), Mayana Sodré (Me emocionou demais. Bjo), Amanda Regina Magatti, Juliete Weasley Potter (que bom!), Clara (valeu mesmo!), Andressa, Lola Potter, Camy Tonks Potter, Lica Martins, Danielle Pereira (desejo realizado! Rsrsrs), Pandora Potter, Natália Reis, Ana Karynne (valeu mesmo, querida!), Nimue25, Beta Dumbledore Malfoy, Luciana Martins, Dr. Black, Charlotte Ravenclaw, Nanny Black, Ginny W. Potter (Ai... obrigada mesmo! :-*), Lírio (\o/), Fleur Black (valeu!), Mila Weasley (Puxa! Brigada, querida!), Marina Cruz, Eleonora, Srta’s Black, Guta Weasley Potter (Valeu! E até eu fiquei com medo com sua descrição.), Mariana, Senhorita, MárciaM (minha poderosa! Bju), Tatiane Evans, Amaaanda (Obrigada mesmo!), Alvo Severo, Gabih Potter Granger (Mesmo? Que bom!), Mari Evans, Naty L. Potter (Oi. amiga de comû! Valeu por tanto apoio! :-*), Amanda Alves Silva (Puxa, que delícia seu coment.), Maju Black (Ahuahuahua! Desculpe o medo! Bjux), Liege, Minnie Gótica, Carol Evans (Amei!), As Tradutoras (Valeu o apoio, meninas!), Larissa, Thássia (Brigada, linda!), Andréia Karine Santos do Nascimento, Tuane Mayara Leite Pinheiro, Sophie Diggory, Tonks Butterfly, Bernardo Cardoso (Fiquei nas nuvens... Bjo), Lua Potter, Janaína Potter (Ai, que lindo!), Rachie, Bianca Evans (Bem-vinda!), Thaís Cristina, Gica Potter, Ana Fuchs (Que delícia ler seu recado!)


Gente, acabei de reler todos os coments (todos mesmo!) e estou me sentindo péssima em não respondê-los um a um. Foram todos muito especiais, mas infelizmente eu não conseguiria fazer em tão pouco tempo. Obrigada, obrigada, obrigada de verdade. Vocês são adoráveis. E exagerados!!! Rsrsrsrsrsrsrs

Mil beijos, amigos.
Geo.






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