Céu de abril



Capítulo 5. Céu de abril

- Como você pode ir fazer a segurança de um lugar e precisar ser salvo? – riu Marlene, passando distraidamente as mãos nos cabelos.

- Eu não sabia que as pessoas vendiam mortalhas vivas na Travessa do Tranco – resmungou Sirius, impaciente.

- Vendem qualquer coisa na Travessa do Tranco – retrucou ela. – As pessoas estão comprando coisas inacreditáveis para se proteger de alguma forma.

- E você deve andar muito por aquele lugar para saber disso.

Marlene sorriu distraída. Então apoiou o rosto na mão direita, que ainda estava coberta por uma luva preta de couro.

- Não sei o que quer dizer com isso – falou.

Tinham aparatado em frente à sede da Ordem. Marlene correra imediatamente para dentro e acendera a lareira para se comunicar com alguém que Sirius não pôde identificar. Depois do que pareceu um longo tempo para ele, ela terminou e veio se sentar diante dele na longa mesa de reuniões.

Sirius mirava a madeira gasta do tampo da mesa, salpicada de pingos de vela, marcas de fogo e manchas de tinta. Ele tentava colocar em ordem seus pensamentos. Tinha visto Marlene usando a máscara dos comensais da morte. Talvez mais impressionante, tinha visto Marlene conjurando um Patrono com perfeição – a despeito de toda a história sobre ela estar com a mão inutilizada para lançar feitiços com a varinha.

Marlene tinha tirado a luva da mão esquerda e usava a unha para raspar um respingo de cera da mesa. Ela lhe dissera que Dumbledore estava a caminho. E se recusara a justificar de qualquer forma o que Sirius vira na Travessa do Tranco. Apenas dissera que comensais estavam rondando o lugar, procurando algo para Voldemort. E alguns deles acharam que havia pessoas demais nas lojas e resolveram cuidar para que a rua ficasse deserta. Ainda não havia contagem de mortos.

- Marlene, diga alguma coisa – ele disse subitamente. – Diga apenas que eu entendi mal, mas não fique calada.

Marlene ergueu os olhos azuis para Sirius.

- Você não entendeu mal.

- Então eu entendi bem? – perguntou ele, incrédulo.

- Você entendeu como quis – Marlene se inclinou para trás na cadeira, com os cotovelos nos apoios. Parecia um tanto arrogante com aquela postura.

- Eu entendi que você estava andando pela Travessa do Tranco vestida como uma comensal da morte.

- Sua percepção é tão admirável, Black – Marlene revirou os olhos. – Só é superada pela sua capacidade de dedução.

- Marlene...

- Não. Eu não vou falar sobre isso – ela falou, com seus olhos fixos no rapaz.

Sirius se levantou da cadeira e deu a volta na mesa. Puxou a cadeira de Marlene com violência, apoiou um dos joelhos no assento, debruçando o corpo sobre ela. Tinha a varinha em punho, apontada para o peito da garota.

- Agora me diga!

Marlene riu. Balançou a cabeça e segurou a testa, o som de sua risada se espalhando no cômodo escuro e empoeirado.

- O que vai fazer? Você esquece que eu sei que é um Black covarde?

- Você não deveria dizer essas coisas quando alguém estiver apontando a varinha para você – ele sorriu.

- Tente, Black. Vamos ver até onde consegue ir.

A expressão de Sirius se abrandou.

- Eu poderia te amaldiçoar – ele falou. – Bem aqui – Sirius fez um circulo com a ponta da varinha no lado esquerdo do peito de Marlene.

Marlene parou de rir, assumindo um ar subitamente grave. Seus olhos encontraram os de Sirius através da escuridão. Respiravam o ar pesado do velho sótão, sentindo o calor um do outro de tão próximos que estavam.

- Você já fez isso. Há muito tempo – falou ela. Então, abriu os dedos da mão enluvada, e Sirius foi repelido para trás. Ele sacudiu os braços para evitar desequilibrar e cair.

Nesse momento, as chamas da lareira se tornaram verdes. Os outros membros da Ordem estavam chegando para a reunião.

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Durante todo o tempo em que ficaram na sede naquele dia, Sirius não conseguiu desviar os olhos da mão de Marlene. Ela a deixara sobre a mesa, ainda enluvada, os dedos se mexendo agilmente, como se dedilhassem um piano. Isso foi antes de Marlene perceber o exame a que era submetida e esconder a mão nas dobras da capa.

Não houve nenhuma menção ao fato de Marlene estar usando aquela máscara quando encontrara Sirius na Travessa do Tranco. Na verdade, todos pareciam ignorar o fato. Ele teve vontade de trazer o assunto à tona, mas teve receio de revelar algo que os outros não poderiam saber. Ou porque Marlene estava espionando os comensais em segredo, ou porque... ele não gostava de pensar no outro motivo que lhe vinha à mente.

Mesmo assim, havia aquela voz em sua cabeça, murmurando sem parar que Marlene McKinnon não frustrara as expectativas de sua família, como ele mesmo fizera. Enquanto ele se sentava à mesa da Gryffindor, ainda tonto com a escolha do chapéu seletor, Marlene ocupava triunfante um lugar à mesa da Slytherin.

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- Está com fome? – perguntou Sirius.

Fazia tempo que não via Marlene usando algo que não fosse preto. Tinha vindo à sede da Ordem naquele dia vestida de trouxa, com uma calça jeans e um suéter lilás (segundo ela, comprados com a orientação de Lily). E usava luvas de lã, apesar de já estarem em abril.

Marlene demorou para responder, como se avaliasse cuidadosamente a pergunta. Então, sacudiu a cabeça positivamente e, sem nenhuma palavra, seguiu para o alçapão que ligava o velho sótão à superfície. O ar estava úmido naquela noite.

Andaram lado a lado ao longo de uma calçada deserta, iluminados pelas luzes amareladas dos postes. Não se olhavam, cada um imerso em seus próprios pensamentos, atravessando a rua residencial em direção ao comércio mais próximo.

- Então, qual o segredo da sua mão? – Sirius quebrou o silêncio.

Marlene sorriu olhando para a calçada.

- Arranjei uma boa substituta – e, como se quisesse provar a afirmativa, abriu e fechou a mão direita repetidamente.

- Tão boa que é capaz de lançar feitiços sem varinha – ele completou.

Marlene fez um gesto vago com a cabeça, sem confirmar nem negar.

- Não pense nisso, Black. Não é o seu forte.

- Já que me conhece tão bem assim, não deveria parar de me chamar de Black? – perguntou ele.

- E como eu deveria te chamar? – ela riu.

- Pelo meu nome – respondeu Sirius.

- Seu nome é Black – ela respondeu, sem se alterar.

Sirius parou de andar. Encarou Marlene por um instante antes de rir também.

- Eu tinha esquecido que você era tão parecida comigo.

- Não sou parecida com você – retrucou ela.Voltou a andar e Sirius a acompanhou.

Entraram num estabelecimento de aparência suspeita. As janelas estavam tão sujas que mal se podia ver o lado de fora e o ar tinha um cheiro estranho. A tinta das paredes estava descascada em alguns pontos. O lugar era mal iluminado e uma melodia alta e descontínua ecoava, impossibilitando que pudessem ouvir um ao outro. Num balcão de madeira riscada, um velho com ar desleixado servia bebidas para homens que se encarrapitavam no alto de bancos de pernas longas. Uma garçonete usando um short mínimo andava por entre as mesas, com um cigarro entre os dentes.

Sirius escolheu uma mesa isolada, em que o som era detido por uma parede. Marlene se sentou a sua frente, olhando para os lados com estranheza. Ficou um pouco afastada da mesa, como se achasse que poderia adoecer se a tocasse.

- Tem certeza que se pode comer num lugar desses? – perguntou ela, examinando um porta-guardanapos que havia sobre a mesa.

- Você viu a placa lá fora, onde estava escrito “bar e restaurante”?

- Vi.

- Então eu diria que é provavelmente um lugar onde se pode comer – ele deu de ombros.

Marlene sorriu derrotada e recebeu o cardápio que a garçonete lhe passava. A mulher olhou longamente para as vestes bruxas de Sirius, mas depois pareceu se convencer que era mais algum tipo de moda passageira. Sirius deixou que Marlene se encarregasse dos pedidos. Queria apenas algo para beber. Momentos depois, a garçonete voltou, colocando diante deles uma garrafa de cerveja e dois copos. O rapaz serviu a bebida nos copos.

- Agora pode me dizer por que precisou inventar essa desculpa de me chamar pra sair? – perguntou a garota, levando o copo à boca.

Sirius deu um grande gole na bebida antes de responder:

- Só queria fazer alguma coisa com você.

Marlene se inclinou para trás, assumindo um ar arrogante.

- Claro, você me convidou apenas por causa dos meus lindos olhos azuis.

- Também – Sirius balançou a cabeça. Então encheu mais o copo. – Mas eu não tiro o mérito dos seus cabelos castanhos.

Marlene sorriu. Há quanto tempo ela não tinha alguém para conversar daquela maneira? Não gostava de pensar que sentia falta, mas a verdade é que sentia. E talvez fosse por isso que algo dentro dela estivesse dando o alarme de que, se continuasse com aquilo, faria algo que não deveria fazer.

- Eu estava pensando em te embebedar e te fazer contar tudo sobre a história da máscara – falou Sirius, com uma expressão que flutuava entre o sincero e o debochado. Marlene não duvidou de que ele estivesse falando sério. Não conhecendo Sirius como ela conhecia.

- Não ia funcionar – ela pousou o copo vazio na mesa. Sirius se apressou em enchê-lo. – Nunca bebo até ficar bêbada.

- É, eu pensei em usar alguns dos meus dotes para te persuadir a beber – justificou Sirius, fazendo um gesto para trazerem outra garrafa de cerveja.

- Sabe, Black, o que eu mais gosto em você – ela levou o copo aos lábios – é que você tem menos princípios que eu.

A comida foi colocada diante deles, mas nenhum dos dois comeu como deveria. Deixavam-se levar pela conversa, pelo efeito do álcool, a velha identificação da infância aflorando novamente. O momento os deixava leves, como se outra vez se escondessem sob a janela da cozinha da casa dos Black para assustar os elfos domésticos que passassem com bandejas.

- Será que podemos aparatar? – perguntou Sirius, quando deixaram o restaurante, encontrando novamente a noite fria. Era primavera e o céu estava claro, ponteado de estrelas.

- Você não está tão bêbado assim – Marlene empurrou o rapaz.

- Mas você não está sóbria – ele sorriu. – Significa que consegui o que queria.

Marlene mordeu o lábio inferior, uma mancha de tensão perpassando seu rosto.

- Não conseguiu – falou, com um ar forçosamente confiante. – Ainda tenho perfeito controle do que falo.

- Será que tem mesmo? – Sirius se aproximou dela. Seus dedos escorregaram no rosto da menina, da têmpora ao queixo. Ela não tentou afastá-lo. Apenas mantinha-se séria, os olhos fixos em Sirius.

- O que você quer saber, Sirius? – perguntou ela, e o rapaz se assustou com o tom de voz que ela usou. Estava serena, não mais arrogante ou evasiva. – Se eu sou comensal da morte?

- Eu não... – murmurou ele.

- Pensou sim – ela sorriu. – E você não foi o único. É assim tão difícil aceitar que uma Slytherin possa estar do lado de vocês?

- Mas você não é, certo? – perguntou Sirius. – Digo, comensal...

Marlene deu um passo para longe de Sirius, subitamente irritada. Toda a serenidade foi varrida de seu rosto.

- Eu não sou partidária de Voldemort, Black – disse ela. – E eu acho que as pessoas deveriam parar de ficar desconfiando de mim, e olhar para você. Você sim tem uma família cheia de maus elementos.

- Não vou contestar isso – disse Sirius. Tinha enfiado as mãos nos bolsos e andava ao lado de Marlene. – Mas não desconfiam de mim porque...

- Porque que você é um Gryffindor – adiantou-se Marlene. – E não diga que não é por causa disso.

- Não é SÓ por causa disso – corrigiu o rapaz. – Eu fugi de casa. Além disso, não ando fazendo coisas que não posso contar a ninguém, e não apareço por aí com máscara de caveira.

Marlene lhe deu um tapinha no ombro, como se reconhecesse que ele tinha vencido.

- Mesmo assim você não acredita que eu seja partidária de Voldemort. Será o poder dos olhos azuis de novo? – ela riu.

- Eu posso acreditar.

- Não acredita – duvidou Marlene. – Se acreditasse, teria mencionado o assunto na reunião.

- Talvez eu prefira arriscar – avaliou Sirius. – Afinal, uma comensal da morte de olhos azuis não pode ser tão má – falou, num tom forçosamente galante.

- É, Gryffindors não são conhecidos por terem vidas longas – suspirou a garota. – Esse é o tipo de idéia que explica isso.

- Como se você fosse a Slytherin das Slytherins – ele revirou os olhos.

- Eu sou, Black – disse Marlene, com sinceridade. – Você sabe disso. Sabe tanto que... bem, não se esforçou muito para cumprir sua promessa.

- Que promessa? – Sirius parou de andar. Marlene evitou o seu olhar. Então ele voltou a atenção para os prédios em volta.

- Esqueça – ela fez um gesto com a mão. – Por que está parado aí?

- É aqui que eu moro.

Marlene ergueu os olhos para o prédio antigo, de tijolos aparentes pintados de vermelho há muito tempo, agora cobertos por fuligem e musgo. Várias janelas com grades de metal emergiam ao longo de três andares.

- Você mora nisso? – perguntou ela, sem acreditar. – Pensei que você tinha herdado muito dinheiro do seu tio e...

- Herdei. Mas gosto de morar aqui.

Marlene fez uma careta, enquanto Sirius revirava os bolsos da capa em busca da chave. Quando ele finalmente a encontrou, teve alguma dificuldade para achar o buraco da fechadura no escuro – ou talvez fosse porque não estivesse exatamente sóbrio. Quando finalmente a porta do prédio estava aberta, ele fez um gesto para que Marlene entrasse na frente, mas ela sacudiu a cabeça negativamente.

- Vou aparatar para casa.

- É mais fácil você ir parar na Transilvânia que conseguir acertar sua casa.

- Eu consigo – garantiu Marlene.

- Suba – ele pediu. – Garanto que não é tão ruim quanto parece quando é visto por fora.

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N.A.:
Eles não são um casal de bêbadosfofos? XD

No próximo capítulo:
”Sirius se inclinou para ela e segurou sua mão direita, sentindo o toque macio da luva de lã. Os olhos negros dele passeavam pelo rosto de Marlene. Ela mordia o lábio inferior, e o gesto a fez parecer novamente uma adolescente. Então, num movimento brusco, Marlene afastou as mãos dele com um tapa e se arrastou para o lado no sofá, para ficar o mais longe possível de Sirius.
- Você não pode ganhar dessa vez, Black – murmurou ela, os olhos perdidos fixos na janela. – E quanto mais cedo aceitar isso, mais cedo terminaremos.”

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