Lembrança de inverno

Lembrança de inverno



O Beco Diagonal não estava em um de seus melhores dias em termos de movimento. Com a guerra ocorrendo cada vez mais abertamente, as pessoas preferiam ficar em casa o máximo que fosse possível. Poucos bruxos percorriam as lojas, a maioria em duplas. Fazia parte dos conselhos dados pelo Ministério da Magia. Sempre andar, pelo menos, com um bruxo de confiança. A maioria das lojas funcionava de portas fechadas e era preciso se identificar para entrar. Uma medida obviamente sem grande valor para a proteção dos vendedores, mas servia para deixar as pessoas mais tranqüilas.

Sirius descia a rua de paralelepípedos, olhando distraidamente para as vitrines. Não havia nenhuma decoração exuberante. Todas pareciam recender um pouco de melancolia, com cores mortas e objetos pequenos à mostra. Não havia uniformes vibrantes na vitrine da loja de artigos de quadribol, mas sim uma série de vassouras e equipamento de proteção em couro preto. Na botica, em vez das flores multicoloridas e pós concentrados que enchiam o ar com o perfume de ervas, estavam expostos alguns cactos holandeses e mandrágoras idosas que eventualmente tossiam, espalhando terra pela superfície de madeira onde foram colocados os vasos. Outras lojas não tinham mais vitrines, mas sim uma série de cartazes de comensais da morte procurados, alguns até informando o valor da recompensa para quem desse uma informação que levasse à sua captura. Nem o barulho nas lojas era usual. Todos pareciam falar baixo, andar com cuidado, não derrubavam coisas. A sorveteria tinha retirado as cadeiras do lado de fora, servia apenas dentro da loja. A fachada do Gringotes estava fortemente guardada por um pequeno grupo de trols, segurando grandes bastões. A escadaria de mármore estava, como Sirius nunca a vira antes, vazia.

Sirius abaixou o capuz da capa de viagem. Achara que ia ser divertido montar guarda no Beco Diagonal. Não sabia que o lugar andava tão abandonado. Suas lembranças daquelas ruas apinhadas de gente e de pequenas multidões se espremendo para entrar nas lojas pareciam pertencer a um passado demasiadamente distante.

Claro, ele já tinha aprendido que a guerra não deixaria nada do mundo que ele conhecera ileso. Primeiro fora Hogwarts. A escola fora se esvaziando à medida que Sirius progredia nos estudos, com os pais preferindo manter os filhos em casa ou saindo do país em busca de um lugar mais seguro. Para não falar nos alunos que eram mortos. E naqueles que perdiam parentes na guerra. E Sirius costumava fazer pouco caso na escola, reclamando das medidas de segurança tomadas por Dumbledore e rindo-se quando alguém se referia ao bruxo que causara aquela guerra como “Você-sabe-quem”.

Isso foi antes de ele sentir que as medidas de segurança salvavam vidas e que Voldemort dera muitos motivos para que as pessoas tivessem medo de pronunciar seu nome. Antes de Sirius se sentir diretamente atingido pela loucura crescente do mundo. James e Lily nunca acharam que fosse uma brincadeira. E pagaram um preço por isso. Sirius os vira seriamente machucados três vezes antes que eles resolvessem se esconder. Quando Lily tinha ficado grávida.

“Eu não poderia escolher outra pessoa para ser o padrinho”, lhe dissera James. E foi quando Sirius se deu conta de que a guerra não era algo levemente sério e perigoso que ia passar logo. Ele entendeu que, para James, a guerra nunca ia passar. Ele ia ter um filho, e nunca acharia que o perigo tinha acabado. Por isso queria se certificar de que alguém poderia olhar por essa criança caso os pais lhe faltassem. E esse alguém era Sirius.

Naquele dia, teve vontade de chorar. Mas não chorou. Disse uma coisa qualquer sem importância que fez James rir e Lily lhe lançar um olhar de impaciência. Ele não sabia ficar sério, estavam lhe falando algo importante! Sirius não sabia. A seriedade não era de seu feitio. Talvez porque, se ficasse sério, todos perceberiam como era frágil e como estava perturbado com aquilo tudo. E Sirius queria ser forte, forte o bastante para que James e Lily acreditassem que nunca precisariam dele para cuidar de seu filho.

Talvez por isso tivesse ficado tão incomodado com Marlene, quando ela tinha fingido que estava tudo bem, mesmo sabendo que dificilmente poderia voltar a fazer um feitiço mais complexo com uma varinha. Ainda que conseguisse segurá-la com firmeza, seria difícil conseguir fazer os movimentos curtos e precisos com a mesma desenvoltura. Mas ela parecia não querer dizer isso, como se colocar a situação em palavras pudesse torná-la mais real. Sirius gostaria de saber o que ela estava fazendo para se machucar daquela maneira. Mas Marlene nunca lhe contara o que fazia para a Ordem.

Pequenos pingos de chuva começaram a cair. Sirius voltou a cobrir a cabeça com o capuz. Andava olhando para o chão, observando enquanto os paralelepípedos eram cobertos por uma fina camada de água. Duas bruxas passam correndo por ele. O vento fazia com que a capa se sacudisse levemente atrás dele.

Sirius gostava de como o ar parecia pesado quando chovia, e do perfume que se levantava da grama. O sopro do vento em seus cabelos lhe transmitia uma nítida sensação de liberdade, quase se sentia como se pudesse alçar vôo apenas com o pensamento. Parou subitamente. Estava se distraindo. Tinha que ficar atento. Afinal, era para isso que estava lá. Tinha que procurar por algo suspeito.

Dobrou uma esquina e se viu diante do arco em ruínas que dava para a Travessa do Tranco. Uma pequena placa descascada identificava o lugar de ruas estreitas e escuras serpenteavam de maneira tortuosa, sob a chuva fina. Talvez devesse dar uma volta por ali, ver como as coisas estavam.

Avançou devagar, tentando parecer casual nos olhares que lançava às vitrines empoeiradas de lojas de objetos amaldiçoados e plantas venenosas. Essas coisas eram teoricamente vendidas a colecionadores e pessoas que provavam que precisavam de proteção adicional – o que, naquela época, se resumia a todos os bruxos do Reino Unido. As ruas ali estavam relativamente mais movimentadas que as do Beco Diagonal. Claro, as pessoas pareciam ter muita pressa para fazerem o que precisavam fazer e deixar o lugar o mais rápido possível, e evitavam falar com qualquer um. A maioria procurava portas e janelas amaldiçoadas, amuletos e lamparinas de fumaça tóxica.

Sirius parou defronte uma loja que estava particularmente cheia. Um cartaz anunciava a chegada de novas mercadorias da Bulgária. O rapaz se esgueirou para dentro, tomando cuidado para que a capa continuasse cobrindo seu rosto. Isso provavelmente não era incomum na Travessa do Tranco, já que ninguém o olhou com estranheza. Aproximou-se de uma das prateleiras. Sentia um pouco de frio. Ao seu lado, grandes potes de vidro guardavam o que lhe pareceu ser uma densa fumaça negra que rodopiava lentamente. Seus olhos caíram sobre uma moldura coberta com um tecido de seda roxa. Uma etiqueta indicava “espelho mortal”. Sirius não quis descobrir o que exatamente ele fazia. Sentia-se incomodado, o corpo enrijecido de frio. E ninguém ao redor parecia notar que estava tão frio. Mal conseguia pensar direito, a idéia de simplesmente deixar a loja perpassou seus pensamentos algumas vezes, sem nunca chegar a impulsionar uma ação.

Foi quando ele percebeu uma movimentação diferente. Havia barulhos distantes de explosões e as pessoas começaram a falar muito alto. Tão alto que Sirius quis tampar os ouvidos com as mãos. Mas não podia se mexer. Estava paralisado de frio. A porta da loja parecia distante vários metros e ele sabia que nunca conseguiria chegar lá.

Sentiu alguém passar por ele, empurrando-o contra a estante. Ele caiu sentado no chão, a cabeça pendendo para o lado. Sirius não sentiu nada. Era como se tivesse saído do corpo, viajando para um lugar diferente, deixando apenas os olhos para trás para observarem o chão da loja se encher de cacos de vidro, pedaços de tecido e restos de poções coloridas. Sombras passavam rapidamente diante de seus olhos, mas ele mesmo parecia estar planando entre lufadas de vento gélido, em algum lugar distante. Algo gelatinoso e úmido estava sobre sua perna e subia vagarosamente, fazendo quase nenhum peso. Ouvia um leve farfalhar. Então uma sombra negra cobriu seu rosto, tirando-lhe a visão da loja. Sirius tentou inspirar, mas não havia ar algum.

Vencendo a passividade que o dominara instantes antes, ele gritou, logo antes da sombra envolver sua boca firmemente, como uma mordaça. Ele se debatia, usando toda a força que lhe restava para se mover contra aquela coisa fria. Tentou alcançar a varinha, mas a sombra se enrijeceu, detendo seu braço. Sufocava aos poucos, como se alguém apertasse um enorme travesseiro contra seu rosto. E havia o frio. Tão grande que ele mal conseguia pensar.

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- Você deveria entrar – disse a menina, puxando o casaco para junto do corpo. O céu estava tomado por uma capa branca e cinzenta que não deixava nada do azul à mostra e pequenos flocos de neve serpentavam acima de suas cabeças, descendo vagarosamente até se juntarem à camada branca que cobria o chão.

Sirius revolvia a neve com os pés. Não usava um casaco. Apenas uma blusa xadrez de tecido fino. Tinha os olhos perdidos em algum ponto do chão, distraído. Estava agora com treze anos e era um garoto alto, não muito magro, com os cabelos negros sem corte ultrapassando a altura dos ombros. Marlene esfregava os mãos cobertas com grossas luvas de lã. Usava ainda o uniforme de Hogwarts sob a grossa capa de inverno. No peito, havia uma insígnia com uma serpente.

- Não quero – respondeu ele com simplicidade.

- Vai ficar doente – ela resmungou.

Os dois costumavam fazer juntos o caminho da estação de King’s Cross até Largo Grimalldi. Não que Sirius não tivesse pessoas da própria família para acompanhá-lo. Mas, por algum motivo misterioso para ela, ele sempre aceitava a oferta de carona da senhora McKinnon.

- Não me importo de ficar doente – Sirius balançou a cabeça, afastando os fios negros da frente dos olhos. Tinha ainda no rosto seu típico sorriso profundamente arrogante.

- Por que você não entra, Black? – indagou ela. Então tirou a luva de uma das mãos e tocou a testa de Sirius com um ar preocupado. – Está gelado. Seus lábios estão roxos.

O sorriso de Sirius se alargou.

- Pode esquentá-los se quiser.

Marlene resmungou algo para si mesma e começou a andar para longe de Sirius, junto à parede da casa. Ouviu os passos lentos do garoto atrás de si. Sirius era maluco, ela pensou. Ela o tinha acompanhado até sua casa à pedido da mãe e mal pudera chegar à calçada antes de Sirius voltar a emergir pela porta da frente dizendo que preferia ficar do lado de fora. Não vestira novamente o casaco.

Ela empurrava casualmente as janelas com as mãos, deixando marcas de dedos nos vidros embaçados pelo frio, até que encontrou uma que cedeu.

- O que está fazendo?

- Descobrindo qual é o seu problema – ela respondeu, empurrando a janela com cuidado para não fazer barulho. Então ergueu a perna e a deslizou para dentro, esgueirando o restante do corpo logo em seguida para o que parecia ser uma sala de música. Um conjunto de poltronas confortáveis estava disposto com mesinhas de chá. Um piano ocupava o canto do cômodo, junto a uma estante de livros. Um violino descansava sobre uma das mesinhas.

Marlene teve o cuidado de firmar bem os pés, para evitar cair e fazer barulho. Sirius, obviamente, não pensara na mesma coisa, pois logo em seguida ela escutou uma expressão de surpresa e o som dele se estatelando no piso de madeira. Ouviram portas rangendo no andar de cima.

- Vamos – Marlene puxou a mão de Sirius e os dois se precipitaram para o corredor. Avançaram três passos, antes de perceberem que alguém se aproximava deles naquela direção e correram para o lado oposto.

Ele a guiou pelos corredores de paredes brancas, cobertos com grandes retratos de bruxos mal-encarados que os miravam de maneira desconfiada. Acima dos quadros, uma longa prateleira exibia algumas dezenas de cabeças de elfos domésticos mumificadas, algumas tão vívidas que pareciam apenas dormir tranquilamente, outras tão desfiguradas pelo tempo que mais pareciam bolotas deformadas de couro cinzento.

Foram parar num átrio, que conectava dois corredores com a ampla sala de visitas e a sala de jantar. Dali, uma escada subia para o primeiro andar. Sirius rodeou o átrio e puxou Marlene para o estreito espaço sob a escada.

- Por que não quer que te vejam aqui? – sussurrou ela.

Sirius olhou para a menina, mas não respondeu. Estava apreensivo, como se esperasse por alguma coisa. Então escutaram os passos na escada, acima de suas cabeças.

- Saia dessa casa, sua imunda! – gritou uma voz masculina. – Traidora do seu sangue! Você mancha o nome da sua família!

Seguiu-se um choro fraco, com palavras incompreensíveis.

- Sim, você vai embora – respondeu outra voz, dessa vez a de uma mulher, fria e cortante. – Não vai continuar aqui espalhando a sua imundície.

Mais passos na escada e uma adolescente surgiu no seu campo de visão. Usava as vestes de Hogwarts, com a capa desabotoada ameaçando deslizar de seus ombros. Andrômeda Black segurava o chapéu negro com ambas as mãos e seus cabelos castanhos caíam sobre o rosto. Tinha uma mancha roxa na têmpora e um fio vermelho escorria pelo canto do lábio.

- Eu... eu não queria... – murmurou Andrômeda, entre lágrimas.

- Pare com isso – ordenou a outra mulher.

- Eu não... – choramingou a garota.

- Pare agora!

Andrômeda abriu a boca para dizer algo, mas interrompeu o gesto no meio. Levou as mãos o peito, como se estivesse sufocada, então caiu de joelhos, dobrando-se sobre o ventre. Seu grito ecoou nas paredes acima como um ganido assustador. Sirius se mexeu ao lado de Marlene e apertou com força seu ombro, mas não fez menção de sair do esconderijo.

O tempo pareceu se arrastar enquanto Andrômeda tremia, apertando o corpo, desabando gradualmente até estar deitada no chão, abraçando as pernas com uma expressão de desespero no rosto pálido. Então, subitamente como havia começado, acabou. O corpo da garota relaxou. Sua testa brilhava de suor.

- Agora vá embora – disse a mulher. – A partir desse momento você está morta, entendeu? Você é uma paria, uma amante de trouxas imunda, um aborto... você é qualquer coisa, menos uma Black!

Andrômeda cobriu o rosto com as mãos, achando que seria atacada novamente, mas não foi. Ergueu o corpo com dificuldade e foi em direção à porta, sem olhar para trás, sem choramingar ou tentar se justificar novamente. Sem ao menos se despedir do lugar onde crescera. Sirius deixou a cabeça cair no ombro de Marlene. Ela estava sem palavras. Escutaram passos se afastando. O átrio estava novamente vazio.

- Eu deveria ter feito alguma coisa – ganiu Sirius, atordoado. – Eu deveria... eu deveria ter ajudado, impedido...

- Você não poderia ter feito nada – falou Marlene, tentando soar calma. – Você não ajudaria muito sua prima se fosse expulso de casa junto com ela.

- Não – resmungou ele, inconformado. – Eu deveria, eu não tive coragem de defendê-la. Eu tive medo de ajudar Andrômeda.

- Ela... você vai poder falar com ela – disse a garota. – Desculpe, eu não sabia que você...

Ela não conseguiu terminar. Sirius a puxou para si, envolvendo seu corpo com desespero. Ele a pressionou contra a parede, esperando que o contato trouxesse algum alívio para a imensa sensação de perda que explodia dentro dele. Não conseguia suportar aquilo, precisava se contagiar com a impetuosidade, com a vivacidade dela. Ela não tentou impedi-lo. Correu as mãos pelos cabelos dele, ainda úmidos de neve derretida. Marlene segurou seu rosto entre as mãos, correndo suavemente os dedos por sua face, descrevendo o caminho da testa até o nariz. Ela inclinou o rosto e colou seus lábios aos dele. E sentiu, naquele beijo, o gosto salgado de lágrimas.

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Sirius entreviu uma luz prateada. Primeiro fraca, como uma neblina esbranquiçada, depois forte e radiante, o calor lambendo seu corpo e expulsando todo o frio desesperador que o dominava.

Sentia novamente o ar fresco em seu rosto e ele voltou a ver a loja semi-destruída. Uma espécie de manto negro deslizava, ondulando como um tecido etéreo para longe. Fugia da luz. Sirius ergueu a cabeça e viu um enorme cão reluzente, erguendo as enormes patas contra a mortalha.

Sirius ergueu o corpo do chão, olhando ao redor, ainda perdido. O cão tinha desaparecido. E viu, parada sob a moldura da porta, uma figura sombria coberta de negro. Uma mão negra emergia das dobras do tecido, com os dedos arqueados como se arranhasse alguma coisa. O rosto estava coberto com uma máscara branca. Uma macabra caveira.

Então, ele se lembrou. Estava na Travessa do Tranco. E entendeu porque tinha se sentido tão mal, estivera sob a influência de algumas dezenas de mortalhas vivas encerradas em vidros dispostos em várias prateleiras de uma estante.

Ele estava se preparando para atacar a pessoa na porta, quando ela ergueu as mãos para a máscara e revelou seu rosto. Era pálida, com o queixo delicado e o nariz fino. Pequenas ondas castanhas escapavam da escuridão dentro da capa. Seus imensos olhos azuis se fixaram longamente em Sirius.

- Continua o mesmo idiota de sempre, Black – a voz mordaz de Marlene McKinnon ecoou na loja vazia.


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No próximo capítulo, Siriu, Marlene e alcool:

- Nunca bebo até ficar bêbada.
- É, eu pensei em usar alguns dos meus dotes para te persuadir a beber – justificou Sirius, fazendo um gesto para trazerem outra garrafa de cerveja.
- Sabe, Black, o que eu mais gosto em você – ela levou o copo aos lábios – é que você tem menos princípios que eu.

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