Incomum




Ele sabia que ela não estava ali por sua causa. Marlene McKinnon usava uma capa de viagem. O capuz negro caía para trás, revelando os cabelos escuros. Ela passou distraidamente uma das mãos pela testa. A outra estava sobre o tampo de madeira da mesa, envolta em ataduras ensangüentadas. Marlene fez uma careta quando Sirius se sentou a sua frente. Tinha olheiras profundas sob os olhos azuis.

- Como fez isso? – perguntou.

A garota lhe lançou um olhar indiferente e jogou parte da capa de viagem sobre o braço ferido.

- Me machuquei com uma agulha – respondeu, com simplicidade.

Sirius riu em resposta. Marlene tentou devolver o sorriso, mas não conseguia tirar do rosto a expressão de dor. Uma bruxa usando vestes azul-claras se aproximou dos dois. Sirius se afastou para que ela pudesse examinar a mão de Marlene. Um enorme sulco cortava a palma transversalmente.

- Tente fechar os dedos – mandou a bruxa.

Marlene mordeu o lábio inferior com força, forçando os dedos a despeito da dor descomunal que sentia. Eles, no entanto, se moveram apenas alguns milímetros. A bruxa que a examinava não fez nenhum comentário. Apenas fez a limpeza do ferimento e arrumou um curativo. Não havia muito mais a ser feito.

O esconderijo da Ordem da Fênix ficava num velho porão de uma casa supostamente abandonada. As vigas de madeira eram baixas e vez por outra alguém se esquecia disso e batia a cabeça. Sirius tinha visto Marlene olhar com estranheza para aqueles pedaços de madeira entrelaçados no teto. Ela nunca estivera ali antes.

- Não saia daqui, entendeu? – recomendou a bruxa, passando um copo d’água a Marlene. – Dumbledore virá vê-la assim que puder.

Marlene acenou com a cabeça. Parecia muito fraca para contestar. Fraca demais mesmo para se levantar. Ela debruçou na mesa de madeira, mirando a mão enfaixada. Seus olhos azuis tinham algo que Sirius não se lembrava de ter visto, como se ela estivesse de algum modo partida por dentro.

- Quando se machucou? – perguntou ele. Girava distraidamente entre os dedos um isqueiro prateado. A luz do sol que entrava na casa acima deles emitia alguns poucos fachos através das tábuas do piso, fazendo pequenos pontos amarelados na superfície gasta da mesa.

- Ontem à noite – ela respondeu. Seus olhos azuis se moveram na direção do rapaz. Ele desviou o olhar para o isqueiro. Brincava de refletir um facho de luz na parede.

- E o que estava fazendo?

Marlene sorriu e ergueu um pouco o rosto. A luz refletida no isqueiro formou um círculo claro entre seus olhos, destacando a testa e o nariz delicado.

- Faz muito tempo. Não me lembro mais.

Sirius manteve a luz nela, movendo lentamente o círculo até seus lábios.

- E o que vai fazer depois que Dumbledore te deixar ir embora?

A garota hesitou um pouco. Mordeu o lábio inferior, fazendo com que sua cor rosada se intensificasse. Então voltou a encostar a cabeça na mesa, fugindo a luz que Sirius jogava sobre ela.

- Não costumo fazer planos a longo prazo.

Ela tinha fechado os olhos. Sirius percebeu que uma mancha vermelha tinha se formado nas novas ataduras. Ela não queria falar com ele. Talvez simplesmente não pudesse. Talvez não confiasse mais tanto assim nele. Afinal, já fazia muito tempo desde que brincavam no quintal dos Black, vasculhando o terreno em busca de insetos ou galhos de árvores que pudessem fingir ser varinhas. E agora havia a guerra.

No início, Sirius imaginara que a guerra fosse apenas um grande duelo. Ele achava que existiam dois lados e achava que não seria difícil fazer as escolhas certas. Claro, ele estava enganado. Era guerra desde que estava na escola e provavelmente seria guerra ainda por muito tempo. E ele não podia fazer nada. Provavelmente ninguém podia.

- Marlene – chamou. Ela abriu os olhos. – Por que não foi para o St. Mungus?

A garota suspirou. Então olhou para cima, onde a poeira se espiralava nos fachos luminosos.

- Sirius, me leve para um lugar onde eu possa me deitar – pediu.

Ele se levantou e andou até Marlene, esperando que ela se levantasse para que ele pudesse ajudá-la a andar. Mas ao que parecia ela não podia se levantar. Continuou estirada sobre a mesa, os orbes azuis novamente ocultos pelas pálpebras. Sirius agora conseguia ver que ela tinha um hematoma ao lado do olho direito.

Ele se abaixou. Removeu o cabelo que lhe caía sobre o rosto, revelando a extensa mancha arroxeada. Marlene respirava devagar. Talvez tivesse dormido. Talvez não quisesse mais ouvir perguntas. Sirius observava seu rosto cansado. Ele apoiou suas costas com um dos braços e passou o outro sob seus joelhos, erguendo-a da cadeira. Ela aninhou a cabeça junto a seu peito. E Sirius pôde ouvi-la sussurrar algo baixinho.

Começou a andar em direção a um quarto. Empurrou a porta com um dos pés e depositou o corpo dela na cama. Ele tentou se levantar, mas Marlene o deteve, segurando seu braço para não deixar que se afastasse dela.

Uma lágrima escorregou pelo seu rosto, deslizando até seu queixo até se desfazer na manga das vestes de Sirius, formando uma mancha escura no tecido.

o0o0o0o

- Por que você quer se casar comigo? – Marlene voltou os olhos para Sirius.

Ele fingiu não perceber. Continuava olhando para a chuva. O céu estava cinzento e pesado, como se quisesse desabar. A água formava pequenos cursos entre os tufos de grama. O ar umedecido impregnava tudo e misturava-se ao perfume do chocolate. Ainda se sentia envolto numa atmosfera adocicada. O mundo parecia de algum modo mais brilhante, embora tudo estivesse escurecido pela chuva.

- Sirius, eu fiz uma pergunta – insistiu Marlene. Ela estava sentada com as pernas encolhidas, o rosto fino apoiado nas costas das mãos. Os orbes de um azul muito vivo se prendiam em Sirius.

Ele não achava que fosse hora de falar. Não ainda. Estava tonto, ela não? E também não parecia certo falar. Não era algo que poderia ser expresso em palavras. Vagarosamente, ele se virou para a menina e seus olhares se cruzaram. Azul sobre o negro. Miosótis. O pensamento lhe ocorreu novamente.

- Por que quer se casar comigo?

Tantas coisas. Por que ela queria saber isso? Marlene parecia um pouco brava, com os lábios rosados crispados. Seu olhar era incisivo, impacientemente acusador.

- Por que está perguntando isso?

Marlene sacudiu a cabeça.

- Porque você me beijou.

Sirius riu, presunçoso.

- Por causa do seu chocolate quente – o menino mostrou a língua.

- Já disse que não fui eu que fiz – resmungou ela, levemente irritada.

- E eu já disse que você precisa aprender.

Marlene estendeu a mão para os ramos verdes e abriu uma brecha na folhagem.

- Você não precisa que eu aprenda – falou a menina, resoluta. – Outras pessoas podem fazer chocolate quente para você.

Ela não olhou mais para ele. E também não perguntou mais. Puxou a capa para cobrir a cabeça. Então ergueu o corpo com cuidado, inclinando-se para fora da cerca viva ao mesmo tempo em que afastava a folhagem. Ela se deteve por alguns instantes, de pé na chuva, olhando para o garoto, como se desse a ele a última chance de responder à pergunta. O tecido escurecia gradativamente com a água. O vento fustigava seus cabelos castanhos. Sirius desviou os olhos dela, e ficou mirando a terra escura.

Então, Marlene se virou e correu pelo quintal, as vestes se inflando atrás dela. Como se uma corrente elétrica subitamente tivesse subido do chão, Sirius se ergueu e passou rapidamente pela falha na cerca. Orientando-se apenas pelo borrão azul que conseguia divisar através da chuva, ele a seguiu. Quando a alcançou, já estava todo molhados, os cabelos negros grudando em sua testa.

Ele segurou o braço da menina. Marlene reagiu, tentando fazê-lo soltar, mas na agitação pisou sobre uma pedra lisa, escorregando para o chão.

- Qual é o seu problema! – ela gritou exasperada, sentada na grama molhada. O vento puxou a capa para trás, revelando seu rosto muito vermelho.

- Não vá embora – ele pediu.

- Então responda a maldita pergunta que eu te fiz! – exclamou ela. E Sirius viu em seus olhos azuis algo que não entendia. Que não estava pronto para entender.

Não sabia por que ela estava brava. Ele se sentia tão profundamente mergulhado na paz, como se estivesse sob o efeito de um feitiço. Seus olhos se perderam na chuva. Sentia-se tão assustadoramente fora do normal. Sentir o que estava sentindo já era estranho o suficiente sem falar.

Foi quando Sirius sentiu algo golpeando-o na lateral da cabeça. Ele ergueu as mãos e encontrou algo úmido e desagradável ao toque. Uma imensa bola de lama. Olhou para o chão. Marlene ainda estava sentada na grama e segurava um monte de lama entre os dedos. Sorria de uma maneira satisfeita.

- Mais uma e talvez eu te desculpe pelo chocolate – riu ela. Então se levantou e saiu correndo, com Sirius em seu encalço.

o0o0o0o

- Ela é especialista em duelos, como pode fazer alguma coisa sem varinha? – Sirius despertou sobressaltado escutando uma voz alterada vir do corredor.

Estava sentado no chão ao lado da cama, suas costas apoiadas na parede. Tinha adormecido ali. Sentiu uma pressão em seus dedos. Então se lembrou por que tinha dormido num lugar tão estranho. Viu o rosto de Marlene na beirada da cama. Dormira olhando para aquele rosto. Ela ainda segurava sua mão entre os dedos da mão sã. E, mesmo agora, sua expressão parecia profundamente triste.

Sirius soltou a mão de Marlene com cuidado para que ela não acordasse. Então se levantou e caminhou silenciosamente em direção à porta, que deslocou um pouco, abrindo uma fresta. Queria ver quem estava no corredor.

Ele reconheceu facilmente Dumbledore, que estava de frente para ele. O velho bruxo usava vestes violeta. A longa barba estava amarrada no cinto de couro. Ele segurava o chapéu nas mãos. E no seu rosto havia algo que Sirius raramente via no diretor de Hogwarts: preocupação. O bruxo que falava com Dumbledore estava de costas para Sirius, de modo que ele só podia ver as vestes carcomidas e a juba de cabelos escuros despenteados. Fora a voz dele que acordara Sirius.

- Não estou preocupado com isso, Alastor – falou Dumbledore muito calmamente. – Temos uma jovem que nunca mais vai poder segurar uma varinha, não vou pensar agora no que ela não pode mais fazer pela Ordem.

O velho bruxo fez menção de continuar a falar, mas deteve-se, inclinando-se para olhar acima do ombro de Moody. Seus olhos cinzentos atrás dos óculos de meia lua fixaram-se em Sirius, que, surpreendido, fechou a porta rapidamente.

- Eu não estou dizendo que não devemos nos preocupar com ela – resmungou o outro bruxo. – Apenas precisamos de outra pessoa para...

- Alastor, podemos discutir isso depois? – pediu Dumbledore. – O senhor Black parece muito ansioso para falar conosco.

Sirius abriu a porta, tentando parecer à vontade. Dumbledore o cumprimentou com um aceno de cabeça. O outro bruxo bufou algo que lembrava vagamente uma saudação. Tinha um rosto disforme, coberto de cicatrizes. Faltava-lhe quase metade do nariz e usava um tampão preto num dos olhos.

- Esse é o senhor Moody – falou Dumbledore.

- Professor, vamos falar em outro lugar, não quero que...

- Não quer que a senhorita McKinnon nos ouça – interrompeu Dumbledore. O bruxo uniu os dedos de um modo pensativo. – Eu também não queria, mas receio que ela não vá escutar de nós nada que ela já não saiba.

Sirius abaixou a cabeça. Não porque não quisesse olhar para ninguém, mas porque precisava pensar um pouco. Estava escuro agora. Já era noite. E ele se sentia vazio. Como um objeto sem utilidade esquecido numa gaveta qualquer. Como aquela casa abandonada. Não, a casa era útil – pelo menos para eles. E Marlene sabia de tudo. Então porque ele não conseguia pensar no assunto? Se ela, que era a vítima, já sabia e conseguia dormir com isso. Por que era ele que estava se sentindo assim tão ferido?

Sirius não disse nada. Deu as costas ao professor e voltou a entrar no quarto. Deixou o corpo cair de encontro à porta. Talvez ele não fosse forte o bastante para aquela guerra. Então perceber que Marlene estava sentada na cama. Tinha tirado a capa e os cabelos estavam espalhados sobre seus ombros. Seus olhos luminosos examinavam com cuidado as ataduras. Ela ergueu o rosto para ele e esboçou um sorriso.

- Estou bem melhor – anunciou. Mas a expressão de Sirius não mudou. – O que foi?

- Consegue segurar a varinha? – ele não pôde refrear a pergunta. Arrependeu-se disso no instante em que terminou de falar. Mas não havia como voltar atrás. Marlene piscou.

- Claro que consigo – respondeu. Mas seus olhos se desviaram para cima, num óbvio sinal de que ela mentia. Mentia corajosamente. Provavelmente por muitos motivos. Para não preocupá-lo. Para não parecer fraca. Para não despertar pena. Para se convencer de que era forte.

Ela percebeu a desconfiança de Sirius e reiterou:

- Quando ficar bem, vou conseguir até jogar quadribol.

Sirius caminhou até a garota. Sentou na cama, de frente para ela.

Queria entender como ela suportava. Ela tinha chorado antes, mas agora parecia ter coberto o rosto com uma máscara. Marlene ficou incomodada com aquele olhar tão inquisidor e voltou a deitar-se na cama. Deixou o braço bom cair pela beirada da cama. Seus dedos tocaram o chão. Talvez ela estivesse esperando por um milagre, considerou Sirius. Pensando bem, naquela guerra, quem não esperava por um milagre estava ainda pior.

- Você sente falta? – ela perguntou subitamente. Sirius despertou de seus devaneios.

- De quê?

- De quando éramos crianças – Marlene ergueu a mão esquerda, segurando algo que tinha trazido do chão. O quarto estava escuro e Sirius não conseguiu ver o que era. – Era nisso que estava pensando, não era?

- Era – respondeu o rapaz.

- Então, sente?

Sirius distinguiu um ruído metálico e, no instante seguinte, o rosto de Marlene se iluminou com luz amarela. Ela segurava o isqueiro dele, que provavelmente tinha deixado cair enquanto dormia no chão.

Os olhos azuis dela lhe pareceram estranhamente esverdeados, como água suja na qual crescem algas microscópicas. Mesmo assim, ele não pôde evitar olhar dentro deles, procurando o motivo de ela ter tocado naquele assunto. Teve vontade de dizer que não estava pensando nisso. Estava imaginando como ela conseguia ser tão dissimulada. Mas sabia que seria cruel dizer isso. E Sirius estava muito fraco para ser cruel com alguém naquele momento.

- Você deveria dizer que sente – falou Marlene. Ela apagou o isqueiro e voltou a acender, o barulho metálico novamente chegando aos ouvidos de Sirius.

O rapaz estendeu as mãos na direção dela e fechou o isqueiro, fazendo morrer a chama. Então o trouxe de volta para si.

- Não sinto – respondeu.


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N.A.:
Uma coisa que esqueci de dizer antes: aquela música do início do capítulo 1 (Amie, do Damien Rice) é a coisa mais linda do mundo e minha inspiração para escrever essa fic (ouvi ela só umas 10.000 vezes enquanto escrevia...). Quem quiser algo para escutar enquanto lê, fica a indicação.
No próximo capítulo: dança e troca de roupas...

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