Dementadores, Demônios e Dilem

Dementadores, Demônios e Dilem



Capítulo 4 – Dementadores, Demônios e Dilemas Morais


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Ao voar, Draco descobriu que o Feitiço Essencial funcionava quase que como um compasso. A cada cerca de 30 quilômetros, ele tinha que parar para ajeitá-lo, e os outros tinham que parar e observar, pairando no ar.

Como era o comandante, Draco voava na frente de todos, que iam logo atrás dele. A ordem era: Draco, Harry, Gina e Rony. Draco estava, de fato, curtindo o vôo. Eles estavam voando por uma floresta bastante densa por horas, só deslizando por cima das árvores, e o solavanco vindo do Feitiço Essencial crescia gradativamente. Quando, depois de uma hora, ele parou e tocou o Feitiço novamente, imagens surgiram em sua cabeça como uma torrente irresistível: a floresta, o castelo incendiado, a torre circular. E Hermione. Ele tinha quase certeza absoluta de que a floresta das visões era a mesma que sobrevoavam agora.

Olhou para Harry, Rony e Gina, que flutuavam a apenas alguns metros dele, e sentiu-se um pouco superior. Eles não conseguiriam fazer isso sem mim. Nem mesmo o grande Harry Potter.

Ele estava prestes a avisar os outros de que tinha certeza de que estava perto, quando um movimento bruxuleante vindo de mais abaixo chamou sua atenção, e ele olhou para baixo. E olhou com surpresa. Era difícil ver por entre os grossos pálios de galhos entretecentes, mas Draco achou que viu uma fila de vultos negros, como uma fileira de formigas, caminhando por entre as árvores. Será que eram pessoas? Parecia uma fileira de animais – era difícil definir.

Draco inclinou-se, na expectativa de enxergar melhor, e congelou, quando uma ressequida onda de frio tomou o seu corpo. Ele se mexeu abruptamente, mas o frio não passou – era um frio diferente de todas as variações de temperatura que já sentira, era um frio que queimava e cortava suas vísceras como se fosse um facão. Repentinamente horrorizado, ele tentou gritar para Harry, mas ele não conseguia ouvir a própria voz em meio às outras tantas vozes que de repente, começaram a berrar em sua cabeça.

Você não é meu filho. Era seu pai falando. Era claro que era ele.

Eu ainda sou jovem; posso ter outros filhos.

Draco agarrou-se à sua vassoura. Eu não me importo, ele disse, teimosamente, a seu pai, Eu não me importo, mas a voz de Lúcio Malfoy foi subitamente dissolvida ao som crescente e gritante de outras vozes – vozes que Draco não conhecia. Vozes que gritavam de dor, afogadas em sangue, vozes das quais ele se lembrava por causa de seus sonhos, chorando de agonia... e uma voz masculina, a mais alta de todas, rouca e furiosa: Você mentiu pra mim! Você mentiu pra mim!

Eu nunca menti pra você! Uma voz feminina gritava sua resposta: Você só acreditava nisso porque era nisso que você queria acreditar!

Você vai se arrepender de ter dito isso! Não pense que eu não vou te ferir. Ninguém pode te ferir como eu posso.

NÃO! NÃO! A mulher desconhecida estava berrando agora. O que você fez com ele? Onde ele está?Salazar, o que você fez?

Draco tapou as orelhas, mas a gritaria continuou dentro de sua cabeça, e pior que a gritaria era o terror, puro terror tomando conta dele como uma densa nuvem negra. Dedos congelados de frio o agarraram, soltando suas mãos da vassoura, e empurrando-o para trás. Ele viu o mundo virar de ponta-cabeça, o céu junto aos seus pés, e então, ele viu tudo ficar preto.


**


- Harry? Harry! Está tudo bem?

Harry olhou para cima e viu Rony olhando para ele com solicitude.

- Eu acho que sim. – respondeu, ciente de que deveria estar pálido e com aparência infeliz – Se eu não fosse tão entendido no assunto, eu juraria que havia dementadores por perto. – ele pousou sua vassoura, levou as mãos ao rosto, tirou seus óculos e esfregou os olhos.

Rony parou perto dele, e, um pouco depois, Gina fez o mesmo. Harry estremeceu e disse:

- Está tão frio...

Rony balançou sua cabeça.

- Não sinto nada disso.

- Nem eu. – Gina fez coro.

Harry vestiu seus óculos e continuou:

- Provavelmente é porque... – parou de falar – Malfoy! – ele gritou – Você está bem?

Tanto Rony quanto Gina viraram-se para acompanhar a direção do olhar de Harry, bem a tempo de ver Draco, inclinado sobre sua Firebolt como se estivesse prestes a vomitar e caiu para o lado.Quando o trio assistiu à cena, horrorizado, Draco se caiu pra valer, e sua vassoura foi logo depois dele. Gina ofegou, sua mão voou até sua boca, e virou-se para olhar para Harry – mas Harry não estava mais lá. Apontando sua vassoura para o chão como se fosse fazer uma finta de Wronski, mergulhou por entre as árvores, desaparecendo de vista.

Sem pensar duas vezes, Gina fez menção de ir atrás dele, mas Rony segurou-a pelo punho.

- Gi, não...

- Rony, precisamos segui-los...

- Sim, - ele disse pacientemente – Mas nenhum de nós é o Harry e nenhum de nós consegue voar como o Harry. Você acabaria morta.

Com a mão dele ainda agarrando seu braço, ele apontou sua vassoura para baixo, e ela o seguiu. Logo, percebeu o que seu irmão quisera dizer; as árvores eram tão densamente juntas que era necessário saber voar muito habilmente para que se pudesse desviar, não conseguindo bater, nem se prender nos galhos. Ela lembrou-se da velocidade com que Harry voou para baixo, e estremeceu. Por favor, faça com que ele esteja bem, ela rezou.

E Draco. Faça com que ele esteja bem também.


**


- Deixe-me te contar uma história – Salazar Slytherin disse.

Hermione viu seu rosto quando ele examinava cautelosamente a tapeçaria dos quatro grandes de Hogwarts pendurada na parede. Ela não sabia se ele estava olhando para Rowena ou para Godric, ou mesmo para o próprio retrato. Seus dentes estavam cerrados.

- Rowena – ele disse.

Sem saber se ele estava falando com ela, Hermione permaneceu imóvel.

- Nós crescemos juntos. – ele continuou – Eu a conheci desde que ela nasceu. Eu a vi em seu berço. Eu tinha cinco anos, então. Eu a conheci e a amei a cada momento de sua vida. Eu a vi crescer com poder e sabedoria. Eu próprio tinha pouco dom para magia, por falar nisso. Antes de completar quinze anos, eu era a vergonha da minha família. Foi quando eu contei a Rowena que a amava. E ela me disse que me amava também.

“Isso fez com que algo dentro de mim desabrochasse. Eu descobri que não apenas era capaz de usar a magia, como também tinha poderes e dons incomparáveis; eu era um Magid. Eu podia falar a língua de feras e animais, eu podia controlar o tempo, executar feitiços sem o uso de uma varinha. Mas só enquanto eu estava com Rowena.”

Slytherin, que estava andando compassadamente, olhou para Hermione, com olhos tristes e cheios de ardor, e ela sentiu o mesmo bruxuleio de pena que sentira antes. Eles cresceram juntos; se apaixonaram enquanto crianças. Assim como eu e Harry.

Mas ele não é nem um pouco parecido com o Harry.

- Ela era a minha Fonte – ele continuou – Você provavelmente não sabe o que é isso. Isso é mágico e misterioso. Sem Rowena, eu tinha menos poderes que um bebê. Com Rowena ao meu lado, eu poderia ter dominado o mundo.

- Mas ela não queria que você dominasse o mundo, - Hermione afirmou vagarosamente, - queria?

- Eu fazia tudo o que ela me pedia – disse a voz rouca de Slytherin – Eu concordei em fundar a escola que ela queria fundar comigo. Eu deixei que ela chamasse Gryffindor e Hufflepuff para serem fundadores também, mesmo os dois sendo grandes tolos. Eu fiz o que podia para ficar cada vez mais poderoso... – ele fez um barulho que lembrava uma vaia – Eu recrutei jovens bruxos que possuíam força e ambição, e entre eles, procurei por um que pudesse ser uma Fonte para mim, como Rowena fora. Mas não havia ninguém, nunca houve alguém senão ela. E quanto mais eu precisava dela, mais ela se afastava de mim. Comecei a perceber como ela olhava para Godric. – ele parou de andar compassadamente e olhou para Hermione com olhos furiosos – Ela olhava para ele como, quando éramos crianças, ela olhava para mim. Um nascido-trouxa imundo, era isso o que ele era. Eu sabia por que ela se voltou para ele. Tudo porque eu era fraco, porque sem ela, eu não podia executar nem um simples Feitiço Convocatório.

Hermione muito duvidava que esse fosse o motivo pelo qual Rowena havia parado de amar Slytherin, se ela tivesse mesmo parado, mas achou melhor manter a boca calada.

- Quando ela tirou seu amor de mim, eu perdi também o meu refluxo de força, e com isso, meu desespero só fez aumentar. Eu não podia suportar ser fraco; que ela poderia me ver tão fraco era intolerável para mim. Eu fiz tudo... tudo o que eu podia... para ficar mais poderoso...

- Você fez Magia das Trevas. – Hermione disse vagarosamente.

- Eu apelei aos poderes do inferno. – disse ele – Resolvi que não mais confiaria nela, que fortificaria meus poderes, para que assim, eu pudesse enfrentar Godric sem precisar tê-la ao meu lado e que ela soubesse que eu podia ser poderoso sem ela. Eu invoquei os poderes do inferno, e eles me devolveram o que ela havia tomado de mim quando me deixou para ficar com o Godric.

- Ela deixou de ter amar porque você estava fazendo Magia Negra, não por causa do Godric! – Hermione disse rispidamente.

- Ela deveria ter me amado de qualquer jeito! – ele gritou em sua voz de zumbido rouco – Assim como eu a teria amado, independentemente de qualquer coisa que ela fizesse!

Balançada pelo rancor da voz e do rosto de Slytherin, Hermione deu um passo para trás.

- Com o poder que ganhei, eu era invencível. – Slytherin continuou vagarosamente – Estava determinado a mostrar a ela que eu havia me transformado no maior bruxo do mundo. Eu criei exércitos de monstros; e exércitos de homens se desmanchavam enfrentando-os. Dominei raio e relâmpago; eu poderia ter partido a Terra ao meio, se quisesse. Mas eu não destruiria um mundo onde Rowena estivesse. Eu ainda a amava, mesmo depois de tudo o que ela fez para mim. Um dia, eu resolvi procurá-la para mostrar a ela o que eu havia feito de mim, ver seu orgulho por mim. Mas ela estava com o Godric; ela não me amava mais. Ela preferiu Godric a mim. Ela me mandou embora e pediu que os deixasse em paz.

Hermione olhou para o rosto dele, seguiu seus olhos até a tapeçaria, e repentinamente soube, sem sombra de dúvida, o que devia ter acontecido.

- Você o matou. – ela disse numa voz que guinchou.

- Mas é claro que eu o matei!

Hermione estremeceu, um tanto porque, na cabeça dela, Godric Gryffindor parecia bastante com Harry.

- Ela deve ter te odiado. – Hermione disse com selvageria, e prosseguiu, com um suspiro – Ou você também a matou?

- Eu não a matei. – respondeu Slytherin, virando-se da tapeçaria – No final, eu não podia tirar a vida dela, mesmo depois de tudo o que ela tirou de mim. Eu não podia matá-la e, ainda assim, a minha própria vida não significava nada para mim. Eu me isolei, executei feitiços difíceis e perigosos. Feitiços que me asseguravam que eu ressuscitaria, ganharia poder novamente, quando houvesse uma nova Rowena no mundo, uma nova fonte para alimentar meu poder...

- Eu não sou a Rowena. – disse Hermione numa voz trêmula – Ela morreu há mil anos, assim como Godric, e assim como você também! Você não deveria ter ressuscitado!

Os olhos negros e vazios de Slytherin pousaram sobre ela por um momento. Parecia quase que ele ia sorrir.

- Mas eu voltei por você.

- O seu poder acabou quando Rowena deixou de te amar – Hermione disse, desesperada – Então, a fonte tem que te alimentar por livre e espontânea vontade!

- Verdade.

- Bem, eu não estou aqui por livre e espontânea vontade, e nada que você fizer vai me fazer sentir o contrário. Mesmo que você me torture...

- Rude e desnecessário. – disse Slytherin – E sem vigor. Torturar você provavelmente te partiria ao meio, mas não te faria querer me alimentar de poder. Quando você se transformar em minha Fonte, será por amor.

- Amor? – repetiu Hermione, quase completamente cheia de náuseas – Isso é tão... nojento...

Nesse momento, ele sorriu e falou:

- Você se parece tanto com ela, e quando eu terminar de te aprontar, você será a própria. Uma Rowena melhor do que a que eu tive, mais fiel e verdadeira. – ele ergueu sua cabeça e chamou, olhando além da cabeça dela – Rabicho!

Em poucos segundos, Rabicho estava a seu lado, sorrindo para Hermione, e com os olhos, que mais pareciam bolhas, faiscando.

- Já é hora, Mestre?

- Quase. – respondeu Slytherin – Leve-a de volta ao quarto e a tranque lá. Muito em breve, - ele continuou – muito em breve já será a hora.


**


Voando quase completamente por instinto, Harry atirou-se para baixo, de algum modo – miraculosamente – conseguindo deixar de se chocar violentamente com galhos, ou batendo de cabeça numa árvore. Ele passou pelo último dos galhos, viu o chão se aproximar para encontrá-lo, e freou a sua Firebolt tão abruptamente que ele caiu dela, a trinta centímetros do chão, a vassoura caindo no chão logo depois dele.

Ele levantou-se em poucos segundos, e olhou em volta; estava numa pequena clareira, no meio de árvores muito altas. Estava quase escuro lá; a escuridão era perfurada apenas por alguns raios de luz poeirenta, infiltrados em pequenas brechas por entre as folhas, mas os vivos olhos de apanhador de Harry rapidamente descobriram a vassoura quebrada de Draco, partida ao meio e no meio da clareira. E a vários metros dela, havia uma figura desordeira e escura no chão.

Harry sentiu algo estranhamente parecido com pânico. Talvez fosse pânico mesmo; ele forçou seus pés a andarem, quase correndo pela clareira até a figura amarrotada de Draco. Quando chegou mais perto, viu o outro garoto deitado sobre as próprias costas, e por um momento, quando ele ajoelhou-se perto do outro e viu seus olhos abertos, teve certeza absoluta de que Draco estava morto.

Quando os olhos acinzentados viraram-se para ele, e Draco, com um suspiro engraçado e forçado disse:

- Beleza, Potter?

- Malfoy... você está bem?

- O vento me levou a nocaute, - respondeu Draco, tentando levantar-se com a ajuda de seus cotovelos até estremecer – E minha perna está quebrada.

- Quebrada? Você tem certeza? Está doendo? – perguntou Harry, sentindo que soava como uma avó preocupada, mas também ciente de que não conseguiria agir de modo diferente.

Draco o encarou.

- Bom, primeiro, ardeu um pouco. – ele disse – Por sorte, parou de arder quando começou uma dor ressequida.

Ele deixa as coisas de um modo que é muito difícil sentir pena dele, Harry pensou, irritado. Porém, talvez, fosse exatamente esse o motivo.

- Eu ouvi a minha perna estalar - Draco acrescentou, com um sobressalto – Parecia uma vassoura quebrando.

- Por falar nisso, a sua vassoura está quebrada. – disse Harry.

Draco olhou para ele com uma expressão de completo e absoluto terror.

- Isso não é tão terrível. – disse Harry rapidamente – Você pode usar a mesma vassoura que um de nós até que...

- Potter, - disse Draco numa voz estrangulada. Ele tinha ficado da cor acinzentada do barro antes de ir para o forno – Olhe para trás.

E Harry virou-se. E gelou.

Eles estavam a uma boa distância, do lado oposto da clareira, mas não havia dúvidas de quem eram; vinte ou trinta criaturas de vestes e capuzes escuros, com quase quatro metros, pingando como veneno lento de fora das brechas das árvores para dentro da clareira. Aproximando-se.

Harry sentiu seu coração virar do lado do avesso.

Dementadores.

Draco fez um barulho de sufocação; Harry virou-se novamente e viu que o garoto estava com as mãos na cara e estava balançando e se revirando como um peixe na ponta de uma vara de pescar.

- Malfoy? – chamou Harry, num misto de admiração e temor, e a primeira onda de frio o atingiu, quase o derrubando em cima de Draco.

Ele inspirou com dificuldade, tentando limpar a o nevoeiro cinzento crescente em seu cérebro, e brigando violentamente com seus pés, virando-se e encarando os recém-chegados dementadores, tentando não vacilar mediante ao muro de frio congelante que eles traziam, e que parecia um iceberg.

Harry estava vagamente ciente da presença de Draco, que ainda fazia barulhos estrangulados atrás dele, quando ele pegou sua varinha com dedos que agora mais pareciam um feixe de galhos amarrados em seu punho. Os dementadores estavam no meio da clareira agora, aproximando-se dele como uma firme maré de água venenosa. O fato de eles estarem em silêncio enquanto chegavam cada vez mais perto só serviu para aumentar o sentimento de estar preso num pesadelo, que Harry sentia.

Ele tentou manter sua mão, que tremia violentamente, firme, e nunca sentiu-se tão incapaz de pensar em algo feliz como sentia-se agora. Ele não conjurava um Patrono desde o seu terceiro ano, e as lembranças felizes que lhe serviram então – partidas de quadribol e vitórias nos campeonatos inter-casas – de repente pareciam muito pequenas e tolas. Ele concentrou-se em algo feliz e pensou, obviamente, em Hermione; nela contando-lhe que o amava, mas o problema era que, isso agora lhe causava mais dor do que qualquer outra coisa. Concentrou-se em pensar em algo que não fosse espelhos, chuvas e beijos de Hermione, e repentinamente, pensou num dia, ao redor do lago, estando com a carta de Sirius na mão e observando Hermione e Draco rindo. E lembrou-se de que a risada deles fora tão contagiante que ele próprio riu, especialmente de Hermione, que normalmente já ria o bastante, mas raramente daquele jeito – raramente tanto e com tanta força que precisava sentar-se, raramente com tanta vivacidade e felicidade incontroláveis. Ele sentiu sua boca contorcer-se num sorriso e lembrou-se se como ela havia puxado-o para perto dela e afundado seu rosto no ombro dele, ainda rindo.

Ele ergueu sua varinha e ouviu a própria voz como se ela viesse de muito longe dizer:

- Expecto Patronum!

Sua varinha contraiu-se em sua mão e a familiar luz branco-prateada saiu de sua ponta. Tremendo de alívio, Harry caiu ajoelhado e a luz prateada transformou-se num cervo, cujos chifres assemelhavam-se a um raio bifurcado, que investia silenciosamente até os dementadores. Sob a luz pálida, o cervo prateado brilhava como uma nova lua, e os dementadores intimidaram-se com seu brilho, quase evaporando ao abrigarem-se à sombra das árvores. O cervo atirou-se até eles, virando-se na borda da clareira para Harry, que ergueu sua mão numa fraca saudação, e desapareceu, mergulhando na floresta em sua perseguição.

Ainda ajoelhado, Harry virou-se para ver Draco, que havia parado de se balançar, mas ainda tapava o rosto com as mãos, e disse:

- Eles se foram.

- Potter, - disse Draco, ainda com o rosto enterrado nas mãos – a espada...

- O que tem ela?

- Tire-a de mim.

Harry segurou o cabo da espada, o qual Draco tinha preso em seu cinto (e que miraculosamente falhou em parti-lo ao meio durante a queda), e quase gritou. O toque nela causava um frio pavoroso, quase que como gelo. Ele rangeu seus dentes e fechou sua mão em volta do cabo, tirando-o de Draco. Ele sentiu o frio que ela irradiava com a força de unhas congeladas perfurando suas veias, e ainda assim, quando ele a ergueu com suas mãos, ele sentiu-se, de repente, poderoso.

Uma vozinha fria falou no fundo de sua cabeça.

Harry Potter?

A espada não estava mais fria; havia tomado a temperatura da pele dele. Parecia ser feita de sua própria carne, salvo pelo fato de ser mais resistente e mais homogênea.

Harry, disse a voz em sua cabeça novamente.

Então, a voz disse outras coisas.

- Harry! – era a voz de Rony.

Harry seguiu a direção da voz com os olhos e viu Rony e Gina vindo na direção deles, pálidos e preocupados. Os dois estavam cobertos por folhas e haviam galhinhos nos cabelos de Gina – eles devem ter se prendido no meio das árvores. Os dois Weasley estavam segurando as suas vassouras.

- Harry... foram...?

- O feitiço Patrono. – respondeu Harry sucintamente – Dementadores.

Rony, que parecia estar cinza, disse:

- Nós precisamos dar o fora daqui.

- A perna do Malfoy está quebrada. – disse Harry no mesmo tom sucinto.

Rony soltou sua vassoura e olhou para Draco, então, para Gina, e perguntou:

- Você pode dar um jeito?

Ela balançou sua cabeça e disse:

- A matéria do ano passado foi cortes e hematomas. Nada sobre ossos, então, eu prefiro não arriscar. Se eu cometer um erro, eu vou acabar deixando-o com dois ossos na perna ao invés de um só, ou deixá-lo torto, ou...

- Deixá-lo sem osso algum. – disse Harry, lembrando-se de Lockhart.

- Exatamente. – concordou Gina.

- Isso quer dizer não, então. – concluiu Rony – Certo. Harry, venha cá, preciso trocar uma palavrinha com você.

Harry foi atrás de Rony, seguindo-o até uma pequena distância, e olhando para ele interrogativamente. Rony estava com uma expressão resoluta, que algumas vezes significava algo de bom, e outras, não. Harry admirava a determinação de Rony, mas era difícil tirar alguma coisa da cabeça dele quando ele se determinava a fazê-la.

- Você está bem? – Rony perguntou, examinando Harry – Os dementadores e tudo o mais... você está bem?

- Aham. – foi a resposta de Harry, que para a surpresa do próprio, era verdade – Eles afetaram o Malfoy muito mais do que me afetaram.

- O que é muito estranho.

- Concordo. Mas não tenho certeza se isso quer dizer alguma coisa. Risque o que eu disse. Isso quer dizer alguma coisa, mas eu não sei o que é.

- Bem, você vai ter tempo para descobrir.

- E você quer dizer exatamente?

- Eu quero dizer exatamente que Gina e eu devemos ir buscar ajuda, e que você deve ficar aqui com o Malfoy. Nós não devemos deixá-lo aqui sozinho com uma perna quebrada, por mais que eu o odeie, e eu certamente não o deixaria sozinho com a Gina enquanto você e eu saíssemos...

- Mesmo com a perna quebrada? – Harry sorriu – Ele não ia conseguir pegar a Gina se ela corresse.

- E se ela não corresse?

- Você está paranóico. – disse Harry.

Em resposta, os olhos de Rony viraram-se, meio que apontando, para algo atrás dos ombros de Harry, que ao virar-se, viu Draco apoiado numa árvore, e Gina, solícita, ajoelhando-se perto dele.

- Isso não quer dizer nada. – disse Harry.

- Eu não vou deixá-la aqui brincando de enfermeira com o Malfoy. Porque... bem... porque...

- Porque brincar de enfermeira acaba fazendo com que brinquem também de aeromoça sacana?

- Harry! – exclamou um Rony indignado.

Harry balançou os braços e falou:

- Você que começou e não parece sensato nesse assunto.

Rony deu de ombros.

- Eu cresci aprendendo a odiar o nome Malfoy e a cuidar da minha irmã caçula. Então me diga o que eu deveria fazer!


**


- Está doendo agora? – Gina perguntou, aflita, tirando uma mecha de cabelos da frente de seus olhos.

Ela estivera ajudando Draco a sentar-se apoiado contra o tronco de uma árvore. A perna quebrada dele estava esticada compactamente na frente dele, e ele segurava a espada de Slytherin no colo.

- Claro que está doendo. – respondeu Draco, irritado – A minha perna está quebrada, claro que dói! Ninguém aqui conhece algum feitiço analgésico? O que há de errado com vocês?

- Você conhece algum? – perguntou Gina bruscamente.

- Não – ele respondeu, sem nenhum traço de embaraço.

- Meu Deus, você é chato até de perna quebrada. – ela falou, mas não havia rancor em suas palavras – Olha, fique só sentado, está bem? – ela pôs a mão em seu ombro delicadamente e fê-lo recostar-se no tronco.

- Obrigado – ele agradeceu, fechando os olhos.

- Por nada. – ela respondeu ternamente, olhando para ele.

Por um lado, Gina estava feliz que ele estava de olhos fechados, assim poderia olhar para ele sem ter de desviar o olhar. Ele estava pálido, provavelmente devido à dor, o que fazia os lívidos cortes que os galhos haviam causado em seu rosto realçarem mais sua pele, assim como seus cílios, que eram grandes e escuros o suficiente para fazer Lilá Brown morrer de inveja.

- Não faça isso. – ele disse, sem abrir os olhos.

- Não faça o quê? – perguntou Gina, contraindo-se de culpa.

- Não olhe para mim, isso me deixa nervoso. – ele abriu os olhos e estudou a expressão dela por um momento, depois fechou-os novamente como se a visão dela lhe causasse dor, e disse terminantemente – Esqueça isso, não vai dar certo.

Gina, que estava confusa, perguntou:

- O que não daria certo?

Ele suspirou.

- Eu sei o que você está pensando. – ele disse – A mesma coisa que você estava pensando ontem à noite. “Ei, olha o Malfoy! Bonitinho, indefeso e legal à moda dele. Ele não é malvado; ele só está magoado e amargurado. Tudo o que ele precisa é de amor e então, estará curado.” Bom, adivinha só? – ele continuou, indiferente á expressão de horror estampada no rosto dela – Eu não sou legal e também não preciso de amor e também não quero ser curado. Muito menos por você.

- Eu nunca... – crepitou Gina, sem palavras – Eu certamente não...

- Ótimo. – disse Draco – Ponha isso na cabeça. Porque se você quer arrumar um namorado legal, é melhor que continue com o que você tem agora: o Harry Potter imaginário.

Gina estava tão furiosa que queria bater nele. Mas ele estava com a perna quebrada, ela disse a si mesma. Não se pode bater em alguém que está com a perna quebrada. Ela queria dizer algo bastante detestável e cortante, algo realmente perverso. Ela queria dizer a ele que não era de se espantar que seu próprio pai não o quisesse, ou que antes um Harry Potter imaginário do que um Draco Malfoy de carne e osso, qualquer dúvida, pergunte à Hermione.

Mas ela não poderia.

Ao invés disso, ela disse, no tom mais tranqüilo que conseguiu arranjar:

- Malfoy, você já ouviu falar de jogo de cintura?

Ele abriu seus olhos e olhou para ela, que assustou-se ao ver o quanto as pupilas dele estavam dilatadas. Ela não sabia se isso ocorrera devido ao choque ou à dor. Suas íris pareciam negras, rodeadas apenas por um finíssimo anel azul acinzentado.

- Jogo de cintura é o mesmo que mentir, pra gente grande. – ele disse num tom igual ao dela.

- Esse é um dos famosos provérbios do seu pai?

- Não. Esse fui eu mesmo que fiz.


**


- Gaitas de foles. – disse Sirius, com firmeza no tom de voz.

Narcisa balançou sua cabeça, sem tirar os olhos da revista de noivas que lia.

- Nada de gaitas de foles. – ela retrucou, colocando um travesseiro atrás de sua cabeça.

Ela estava sentada na cama do quarto de hotel em que eles dormiam, rodeada por recortes de revistas, livros, e pedaços de papel, nos quais ela havia feito rascunhos de possíveis convites de casamento.

- Eu sou escocês. – insistiu Sirius – Eu quero um casamento à escocesa!

A boca de Narcisa se contorceu num sorriso, ainda assim, ela não tirou os olhos da revista.

- Eu te disse que você poderia ir de saia, se quisesse. – ela começou.

- Kilt. – Sirius corrigiu-a, mas foi ignorado.

- E francamente, eu estou pouco me lixando se você quiser usar também suspensórios e salto-alto para combinar. E eu também te disse que podemos servir haggis, e se você quiser passar a tarde inteira se balançando numa casinha no quintal, isso também está ótimo. Mas eu não posso submeter os meus amigos e entes queridos à música de gaita de foles! Pense no que o Draco iria dizer.

- Pense no que ele vai dizer quando você contar a ele que ele vai ter que vestir aquele terno que você comprou.

- Aquele terno é bonito. – disse Narcisa, que estava sorrindo completamente agora, e dessa vez, ela olhou para ele e sorriu, recebendo um sorriso de retribuição.

Assim como o cabelo do filho, o cabelo de Narcisa ficava mais claro com o efeito do sol, e agora estava caído sobre seus ombros, branco da cor do sal. Ela estava igualzinha a como costumava ser na época da escola, ele pensou. E ela era muito parecida com Draco, exceto pelas curvas de seu rosto, que era mais redondo que o dele, e seu queixo, menos pontudo, mas os olhos acinzentados que inclinavam-se nas bordas eram iguais.

- Ele vai odiar isso. – afirmou Sirius.

- Como é que você sabe?

- Sabendo.

Narcisa revirou seus olhos.

- Você deve parar de pensar que o Draco é uma cópia exata de você na idade dele, Sirius. – ela disse – Concordo que você teria odiado o terno, mas o Draco gosta de se vestir bem, sempre gostou e...

- E eu aposto com você cinqüenta galeões que ele põe fogo nesse terno antes de concordar em vesti-lo.

Narcisa ficou muito interessada em sua revista, de repente.

- Você não quer apostar, não é mesmo? – Sirius sorriu – Que tal, se eu ganhar a aposta, tocamos gaita de foles?

- Nada de gaita de foles. – Narcisa disse numa voz abafada.

- Ou gaita de foles ou vai ter de sangue! – exclamou Sirius.

- Se tiver, vai parecer o meu último casamento. – disse Narcisa, com um sorriso malicioso.

Quando ela sorria desse jeito, Sirius pensou, ela ficava muito parecida com o filho.

- Hã... – disse uma voz que não era nem de Narcisa nem de Sirius e que vinha de um canto do aposento. Tanto Sirius quanto Narcisa pularam em sobressalto – Eu sinto interromper, mas...

Sirius levantou-se e olhou para a lareira.

- Remo?

- Eu sinto muito. – repetiu um Lupin triste, cujos ombros e cabeça eram visíveis na lareira ornamental do canto do quarto – Eu não iria incomodar vocês se não fosse importante. – seus olhos foram até a cama – Me desculpe, Narcisa.

Ela largou as revistas e olhou aflitamente de Lupin para Sirius.

- O que está acontecendo de errado?

- Harry. – disse Sirius, que ajoelhava-se para perto da lareira – Aconteceu alguma coisa com o Harry?

- Ele foi embora. – disse Lupin gravemente, e sentiu-se ainda mais culpado ao ver Sirius empalidecer.

- Embora?

- Ele foi embora, a vassoura dele sumiu, a minha sala está destruída, e a espada da qual eu lhe falei, ela sumiu também.

- Draco – Narcisa falou rápido – Você perguntou a ele onde Harry está?

- Não posso. – respondeu Lupin – Ele também sumiu.

Narcisa ficou tão pálida quanto Sirius havia ficado.

- Então, eles estão juntos. – disse Sirius – Você tem certeza de que foram eles que destruíram a sua sala?

- Absoluta. – disse Lupin – Lembra daquele globo que você me deu? Aquele com a ninfa ruiva dentro? Bem, ela viu quando eles entraram. Eles pegaram alguns ingredientes meus – um orbe de Thessala e mais algumas coisas. E levaram a espada também. – ele estremeceu – Eles quebraram a caixa em que eu a coloquei. Era de Adamantina e eu não tenho idéia de como eles fizeram isso, pois eu não conseguiria fazê-lo.

- Eles são Magids. – disse Sirius com a voz rouca.

- Eles são crianças. – disse Narcisa, levantando-se – Eles levaram a espada, o que isso significa? Eles vão se ferir?

- Sinceramente, eu não sei. – respondeu Lupin – Eu estive pesquisando nos meus livros o dia inteiro em busca de maiores informações, de alguma idéia do que pode ter acontecido. Não achei nada além de profecias dúbias. – ele esfregou os olhos com a parte de trás de suas mãos e Sirius viu que seus dedos estavam sujos de tinta – Mas se você está me perguntando se é possível que eles venham a se ferir por causa da espada, a resposta é sim. Sim, eles devem estar em perigo.

- Nós estamos voltando para casa. - disse Sirius – Agora mesmo.

Os ombros de Lupin cederam em alívio.

- Obrigado, Almofadinhas.

- Isso não tem nada a ver com agradecimento. – retrucou Sirius, olhando aflito para Lupin – Estamos falando de Harry. Minha responsabilidade. E de Draco. Minha responsabilidade também. Eu deveria ter prestado mais atenção no que você me disse da última vez em que nos falamos, deles poderem estar em uma enrascada pior do que possamos imaginar.

- Eu realmente não imaginei que isso pudesse acontecer. – disse um Lupin derrotado – Eu não tenho idéia do que eu vou dizer ao Dumbledore, eu não sei nem se ele sabe quais são as possibilidades de...

Sirius parecia ter acabado de ter uma idéia.

- Remo – ele interrompeu – Há quanto tempo você não vai pra Floresta Proibida?

- A... a Floresta? – perguntou Lupin, pálido – Meu Deus, há séculos.

- Se eu te disse aonde ir, você poderia – você poderia ir até lá por mim e encontrar-se com alguém que eu acho que poderia nos ajudar?

- Ir para a Floresta Proibida e encontrar-me com alguém por você? – Lupin repetiu, parecendo confuso.

- Eu iria te pedir isso se não fosse importante?

- Iria. – respondeu Lupin firmemente.

- Aluado...

- Está bem, está bem. – disse Lupin – O que você quer que eu faça?


**


- Pare com isso! – exclamou um Harry irritado – Isso é extremamente irritante!

Ele olhou para Draco, que retribuiu com uma careta. Nas duas horas em que Rony e Gina haviam saído, Draco descobriu que, se ele deixasse a mão levantada com a palma virada para a espada de Slytherin, ela voava do chão até que ele a pudesse segurar. Isso o tinha ocupado como um truque interessante, e ele não parava de jogar a espada para depois fazê-la saltar até ela, repetindo sempre o processo. Isso estava deixando Harry com dor de cabeça.

Por outro lado, Harry pensou, com uma ponta de culpa, a dor de uma perna quebrada devia ser horrível e mesmo assim, Draco ainda não tinha reclamado.

- Malfoy...

- O que é? – Draco perguntou, olhando para Harry.

- Quando os dementadores chegam perto de você, o que você ouve?

Draco apertou os olhos e encarou Harry.

- Música gospel – disse por fim – eu odeio música de igreja.

- Muito gozado. Agora sério, o que você escuta?

Draco não conseguiu evitar um pequeno estremecimento.

- Coisas horríveis. – respondeu.

- Bom, se você parar de ficar brincando com essa sua espada, eu te ensino a se ver livre deles.

Draco hesitou por um instante e, em seguida, colocou a espada cuidadosamente no chão perto de si. Ele olhou para Harry, que levantou-se de onde estava sentado, andou e sentou ao lado de Draco, tentando se lembrar exatamente como Lupin o havia ensinado a conjurar o Feitiço Patronus.

- Muito bem – disse Harry – Primeiro, você tem que pensar em uma boa recordação que tenha. Uma lembrança feliz.

Draco pestanejou.

- Pensar em quê?

- Numa lembrança feliz. Isso é muito importante. A melhor recordação que você possa pensar, e você tem de se concentrar nela.

Draco fechou seus olhos e pensou. E pensou. Uma lembrança feliz. Quando ele tinha sido feliz? Certamente não com os seus pais. Nem na escola. Ele pensou no armário, de volta à Mansão Malfoy, quando estava trancado lá com Hermione comendo sapos de chocolate e se beijando. Pensou na noite em que impediu seu pai de matar Harry, e quando, mais tarde, ele havia deitado na grama com Hermione, Sirius e Harry em volta dele e Hermione lhe dizendo que ele havia sido muito corajoso. Mas essas lembranças estavam agora ilustradas pelo fato de que agora, ele sabia que ela não o amava de verdade, e embora ele conhecesse e aceitasse o fato, mexer nessas recordações ainda dava uma pequena agonia dentro dele, como a dor mensageira de um dente quebrado.

Ele abriu seus olhos prateados e olhou para Harry:

- Eu não tenho nenhuma.

Harry parecia surpreso.

- O que você quer dizer?

- O que acabei de falar, eu não tenho uma lembrança feliz. – Draco deu de ombros – Não se ache demais por causa disso, Potter.

Harry estava espantado.

- Com certeza deve ter alguma.

- Bom, teve aquela vez quando a Sonserina ganhou o Campeonato entre as casas no meu primeiro ano. Ah, espere... você apareceu e acabou com essa, não foi? E nós nunca ganhamos uma partida contra você, então não adianta nada também. O que eu posso dizer? Você arruinou todas as lembranças felizes que eu podia ter.

Draco havia fechado seus olhos novamente. A presença invisível de Hermione sentou-se entre eles. E pela primeira vez em toda a sua vida, Harry sentiu uma ponta de culpa por ter sido bem sucedido em pontos que Draco não teve a mesma sorte.

- Vamos lá, Malfoy. – disse, hesitante – Quer dizer, você deve ter ganho alguma coisa. Talvez um concurso, qualquer coisa.

- Bom, teve aquela vez em que a minha mãe me inscreveu no Concurso do Garotinho Mais Fofo de Chipping Sodbury quando eu tinha 7 anos, e eu tive que vestir uma roupa que ela fez, e eu acabei de me dar conta de que nada nesse mundo vai me fazer te contar o resto dessa história, então, esquece. Não, Potter, eu nunca ganhei concurso algum. – Draco remexeu-se contra o tronco da árvore – Parece que você vai ter que pensar em outro feitiço.

- Não há outro feitiço, - disse Harry, quebrando a cabeça em busca de outra solução – Malfoy... – disse vagarosamente – como anda a sua imaginação?

- A minha o quê?

- A sua imaginação. Você pode imaginar uma lembrança feliz? Inventar alguma coisa? Uma fantasia.

- Uma daquelas coisas onde eu estou sentado no topo de uma pirâmide vestindo vestes do Deus do Sol e sendo mimado por sacerdotisas virgens e semi-nuas?

- Se isso vai te fazer feliz... – disse Harry, parecendo suspeitoso – Eu devo te lembrar, Malfoy, que nós vamos ficar felizinhos e não, hã...

- Certo. – disse Draco, abrindo seus olhos e sorrindo – Feliz. OK. – ele fechou seus olhos com força novamente e se concentrou.

Harry observou a luz da lua sobre o rosto de Draco, formando semi-círculos escuros sob os olhos dele, como efeito da sombra feita pelas folhas e pensou, “ele vai ser meu irmão. Meu irmão.” Harry tentou fazer isso parecer real para si mesmo, mas não conseguiu.

- Pronto. – disse Draco, abrindo os olhos – Consegui uma.

- Mesmo? – perguntou Harry, curioso – Como é?

- Se eu te dissesse que minha fantasia envolve a Hermione, um colar de penas e a música tema de “A Summer Place”, você ficaria bravo?

- Ficaria.

- Então, não pergunte. – retorquiu Draco.

Ele fez um esforço para sentar-se de coluna reta, e sem sentir, Harry ofereceu-lhe uma mão para ajudá-lo. Também sem sentir, Draco aceitou a mão e deixou Harry ajudá-lo a sentar-se direito.

- OK – disse ele – Estou pronto, vamos tentar o feitiço.


**


Eles praticaram o Feitiço Patronus por mais de uma hora, até que Draco conseguisse alcançar sua “lembrança feliz” tão claramente de modo que ela quase parecesse real para ele, e Harry começou a bocejar com tanta freqüência que Draco começou a sentir-se culpado.

- Olha, Potter – disse – Se você quer tirar um cochilo, vá em frente.

- Mas o feitiço...

- Você não me adianta de nada desse jeito – continuou Draco – Você fica falando “Expecto Patroooooooooooooonum” – imitou um enorme bocejo.

- Eu não preciso dormir – disse Harry, teimoso – Eu só preciso deitar por um minuto.

- Então, deite. - Draco sorriu quando Harry deitou-se, afundando o rosto nos braços e caindo em sono profundo instantaneamente.

Draco o estudou por um instante, curioso, lembrando-se do garoto magricela e aparvalhado que conhecera havia seis anos na loja de vestes do Beco Diagonal. Havia olhado para Harry, visto seu cabelo bagunçado e óculos remendados e pensado, “bolsista, estuda por caridade”. Quase havia ignorado o menino, mas alguma coisa fê-lo puxar assunto. Havia alguma coisa em Harry que te impelia a prestar atenção nele; Draco não sabia exatamente o quê, mas de algum modo sabia que era isso, essa qualidade peculiar e indefinida, essa qualidade que ele, Draco, sempre invejara. Harry ainda a tinha mesmo quando estava exausto, mesmo quando estava dormindo e provavelmente babando em suas vestes, também, pensou Draco, olhando para ele de modo irritado. Era isso que Hermione tanto amava nele?

Suspirou, olhando para a espada em seu colo, e depois, novamente olhou para cima. O vulto de algo se movendo chamou sua atenção. Olhou para Harry, que permanecia parado e quieto, e depois, com uma inquietude bastante distinta, virou-se e mirou.

Dois olhos vermelhos com veias amarelas o observavam na escuridão.

Draco saltou com violência, e sentiu uma dor ressequida em sua perna.

- Olá – disse o demônio. Meu Deus, pensou Draco logo que o demônio se aproximou. Olhou para os lados ferozmente, viu Harry ainda dormindo a sono solto, com o braço jogado no rosto.

Essa espada é maligna e eu não quero essa coisa perto de mim, Malfoy. Você vai acabar fazendo com que um de nós morra.

Draco voltou a olhar para o demônio, que ainda o observava com olhos vermelhos rodopiantes. Vou só... sentar bem reto, pensou. Talvez essa coisa vai pensar que eu não consigo me levantar.

Limpou a garganta, torcendo para que sua voz não soasse como um guincho.

- Você de novo – disse – você não devia aparecer desavisado desse jeito.

- Eu vim buscar a minha outra metade. – retorquiu o demônio, olhando para a espada no colo de Draco de um jeito que parecia desejo frustrado.

- Eu sabia que você ia dizer isso. – disse Draco.

- Por mil anos, eu a procurei, por mar, por terra e por...

- OK, OK – disse Draco, a dor em sua perna o deixando impaciente – Já ouvi isso antes. “Eu a procurei por mil anos, é a minha outra metade, blá blá blá, eu sou um demônio malvado, me dê a espada”

Os olhos do demônio lampejaram.

- Você entendeu a essência da minha missão.

- Agora me corrija se eu estiver errado, - disse Draco, estendendo o braço, com a espada de Slytherin em punho e firme. O demônio arregalou seus olhos –Eu posso matar qualquer coisa com essa espada, não é mesmo? Humanos... monstros... – apontou a espada para o demônio, que pulou para trás – demônios...

- Você está me ameaçando, garoto? – perguntou o demônio numa voz sibilante.

- Então eu posso te ferir. – disse Draco, satisfeito.

- Você não pode ter certeza. – disse o demônio evasivamente.

- Não... é só um tiro no escuro. O que é mais ou menos o que você vai ganhar no próximo minuto se não começar a ser mais prestativo.

O demônio arreganhou os dentes, mas deu mais um passo para trás.

- Há mil anos, - disse ferozmente – eu permutei meus poderes, sob a forma dessa espada, a um bruxo que barganhou com a minha gente. Ele usou essa espada para se tornar o maior bruxo do seu e de todos os tempos. Tudo isso era parte do pacto, mas estava escrito no contrato que ele fez que ao final do prazo, ele teria de devolver a espada. – o demônio balançou sua cabeça – Ele nunca a devolveu, e sumiu do alcance desse mundo. Sumiu ainda em débito comigo! Ainda me devendo minha outra metade!

- Não acho – disse Draco – que ninguém que estava envolvido nessa transação foi prevenido o suficiente para pedir um recibo.

O demônio o encarou confuso.

- Parece que não mesmo. – Draco suspirou.

- Essa espada não lhe servir de nada – a criatura rosnou, fixando seus olhos parcialmente coloridos em Draco – Você não pode ser tão presunçoso a ponto de achar que pode dominar ou controlar essa espada, fazê-la servir a você. Certamente você viu em seus sonhos o que acontece àqueles que usam insensatamente?

Draco podia sentir o cabo frio da espada em sua mão.

- Não. – mentiu – Não tive nenhum sonho dessa espécie.

O demônio se levantou e Draco segurou a espada com mais força, sem saber o que iria fazer se a criatura pulasse nele – não sabia como lutar enquanto estivesse sentado.

- Você não tem direito a essa espada. – o demônio resmungou – que direitos você acha que tem?

Draco refletiu por um momento e disse calmamente:

- Herança. Esta espada pertenceu ao meu pai, e ao pai do meu pai e assim por diante. Seu pacto não foi com a minha família, tampouco comigo. Sendo assim, não te devo absolutamente nada.

Por um tempo, o demônio permaneceu calado e Draco ficou desapontado. Havia pensado que tinha feito um ótimo discurso. Bastante Malfoy.

- Você está determinado a reter a espada. – disse o demônio, por fim – está decidido?

- Estou. – disse Draco.

O demônio deu de ombros.

- Certo – ele disse soando razoavelmente jovial – Fique com ela. Nos avise se mudar de idéia.

E desapareceu.

Draco olhou horrorizado para o ponto onde o demônio deveria estar, se sentindo repentinamente bastante desconfortável. Pensou, meio que ao acaso, em algo que seu pai havia dito – um dos muitos conselhos utilíssimos de Lúcio Malfoy. Se uma tarefa difícil de repente fica muito fácil, alguém está armando contra você. Fique em alerta.

- Droga! – disse suavemente – Eu fiquei.

Seus olhos passearam pela clareira, procurando por algum sinal do demônio – será que ele voltaria? Será que ele voltaria com mais outros?

A clareira parecia bastante vazia, escura e silenciosa, e então, com o rabo do olho esquerdo, ele percebeu alguma coisa se movendo entre duas árvores. Sentiu suas mãos tremerem – isso estava ficando exagerado, muito exagerado.

Com a sensação de algo irreal, ele viu duas figuras de vestes e capuzes escuros aproximarem-se da clareira, silenciosamente. Tentou chamar por Harry, mas som algum saiu de sua garganta. Deixou a espada cair de sua mão, e pressionou suas costas com força contra o tronco da árvore.

A única coisa em que ele conseguia pensar era que precisava, de algum modo, levantar-se. Segurando o cabo da espada, ele a virou de cabeça para baixo e enterrou a ponta na terra. Então, vagarosamente, ele usou a espada como suporte para levantar-se, agonizante, tentando pôr a menor quantidade possível de peso sobre a perna quebrada. Pensou ter ouvido os ossos rangerem uns contra os outros, e sentiu sua mão tão melada de suor que esta quase escorregou do cabo. Mas agora, ele já estava de pé. Segurando com força o cabo da espada, com as costas apoiadas na árvore mantendo-o reto, mas ainda assim, em pé.

Abriu os olhos, e, entre tolas manchas coloridas dançando em seus olhos, ele viu os dois vultos chegando cada vez mais perto. Mais perto dele e de Harry, que ainda estava em sono profundo.

Draco puxou o ar por entre seus dentes, e tentou manter sua mente longe da clareira, da dor na perna, das mãos trêmulas, e bem concentrada em ficar feliz. Feliz, disse a si mesmo ferozmente, feliz. Fechou seus olhos e sentiu sua mão onde ela estava, sobre o cabo da espada. Estava muito frio sob a palma de sua mão, muito frio e muito cheio de poder. Seu batimento cardíaco diminuiu quando seu aperto no cabo ficou mais intenso, e quando ergueu sua mão esquerda, ela havia parado de tremer.

O mais concentrado possível em sua lembrança feliz, com os olhos fechados com força, ele gritou bem alto:

- Expecto Patronum!

Algo grande, algo branco platinado, saiu de seus dedos como um raio de luz no verão. A força do feitiço empurrou Draco para trás, e por um momento, tudo que ele viu ao cair no chão foi uma folha de luz branca cortada por manchas pretas de agonia.

Minha perna... como dói, Meu Deus, como dói!

- Harry... – tentou dizer, mas sua voz sumiu ao mesmo tempo em que o mundo todo parecia parar e desaparecer por um instante, tudo rodopiando e se tornando escuridão atrás de seus olhos.

Não vou desmaiar. De jeito nenhum.

Forçou seus olhos a ficarem abertos, e viu três rostos muito pálidos olhando para ele. Harry, Rony e Gina, todos eles brancos de choque e surpresa. Fez força para se apoiar nos próprios cotovelos.

- Os dementadores...

- Malfoy, - disse Harry, esticando a mão para encostá-la no peito do rapaz, fazendo-no deitar-se novamente – Não tinha nenhum dementador.

- Mas eu vi...

- Você viu o Rony e a Gina. – disse Harry, com algum divertimento em sua voz – eu sinto muito.

Draco olhou de Rony e a Gina. Os dois assentiram.

- Droga! – exclamou, chateado.

- O feitiço foi legalzinho. – disse Gina – E você estava bem assustador e tal, pelo menos até que você deu esse gritinho, caiu e desmaiou.

- Num exame mais apurado, você descobriria que foi um berro, não um gritinho. – disse Draco num olhar furtivo para ela – Vocês dois estão bem?

- O Feitiço Patronus serve para te defender do que seriam ameaças. – disse Harry – Rony e Gina não são ameaças, portanto o seu Patrono meio que... sumiu.

- E eu nem vi meu feitiço! – lamentou-se Draco – Foi maneiro?

- Foi. – o rosto cansado e poeirento de Harry se contorceu num sorriso – Parabéns, Malfoy. - disse – Seja lá qual foi a sua lembrança feliz, funcionou.

Draco estava muito cansado para retribuir o sorriso, mas disse:

- Sabe, Potter, na verdade, ela não envolve Hermione e um colar de penas, e...

- Eu sei. – Harry o interrompeu. Rony e Gina estavam com caras extremamente curiosas agora. – Eu sei que você só estava querendo me encher o saco, Malfoy. OK. – acrescentou rapidamente, parecendo que se lembrava da destruição do escritório de Lupin. – Na maior parte do tempo.

Gina estava fitando Draco, aflita.

- Você está tremendo. – disse sob a respiração.

- Tremer é um efeito colateral do medo. – disse Draco – Não se preocupe.

Harry olhou para Rony e perguntou:

- Você achou alguma coisa?

Rony balançou a cabeça.

- Nada. Absolutamente ninguém em quilômetros. Nenhuma cidade, nenhuma casa. Voltamos porque estava escurecendo. – trocou com Harry um olhar aflito – Eu estava pensando... – diminuiu o tom de voz – talvez nós pudéssemos fazer algum tipo de maca ou qualquer coisa assim. Pendurar entre vassouras. Não podemos ficar aqui, temos muito que fazer.

- Eu fico nervoso quando você fala de mim como se eu não estivesse aqui. – disse Draco.

- Um problema facilmente resolvido. – disse Rony, agarrando Harry pela camisa e puxando-o para algum lugar uns metros distante, onde começaram a conversar em sussurros inaudíveis.

Draco se ergueu sobre seus cotovelos e olhou para Gina. Ela retribuiu o olhar, indiferente.

- Weasley... – começou, sendo interrompido por ela.

- Foi um dragão. – disse.

- O quê? – Draco perguntou, assustado.

- O seu Patrono – disse ela imparcialmente – foi um dragão. Prateado. Eu achei que você devia saber.

Draco abriu a boca para dizer alguma coisa, mas foi novamente interrompido, desta vez por um grito rouco de Rony e outro grito de surpresa de Harry. Ignorando a dor chamuscante em sua perna, ele se virou para ver o que estava acontecendo. Viu Rony e Harry com as varinhas em punho, e mais adiante, o vulto de um homem alto. Um estranho havia aparatado na clareira.


**


Lupin virou-se desconfortável no meio do arvoredo iluminado pela lua, com os ouvidos em alerta por algum barulho. Ele não vinha à Floresta Proibida fazia muitos anos, mas ela havia mudado surpreendentemente muito pouco e ele não teve problemas para seguir as instruções de Sirius. Obviamente, ele e Sirius já haviam passeado por aquelas trilhas em quatro patas quando crianças que já era de se esperar que as lembranças ainda estivessem frescas em sua memória.

A Floresta, sendo um local selvagem, falava não somente a seus sentidos humanos, mas também a seus sentidos lupinos. Por entre o estreito corredor de árvores, ele sentiu mover pequenos animais – o motejo de suas patinhas, o verde pálido como lampejo de olhos. Inspirou o ar fresco da noite e o da floresta em anexo de mofo, musgo e bicho, de coisas crescendo e morrendo. Ele sabia que essa floresta não era o lar somente de arganazes e veados, mas também de aranhas gigantescas, vampiros, hipogrifos, centauros e unicórnios, todos os tipos de criaturas mágicas, nenhuma delas causara medo em sua forma lupimórfica.

Como homem, porém – obviamente ele nunca fora um homem por completo, nunca fora um humano por completo. Portanto, não foi completamente o que pode ser chamado de uma surpresa o fato dele já ter percebido o centauro se aproximar muito antes deste se tornar visível, vindo do meio de árvores e chegando perto dele. Era um espécime macho, de aparência jovem (embora isso não signifique muita coisa), com cabelos louros quase-brancos e um paletó. O centauro carregava uma bolsa a tiracolo e ao se aproximar de Lupin, seus olhos estavam cheios de suspeitas.

- Você me convocou. – disse – Mas você não é Sirius Black.

- Sirius Black pediu que eu viesse. – disse Lupin rapidamente – Ele me disse que você deve-lhe um favor. Eu sou amigo dele e ele me mandou aqui para que o favor seja pago em nome dele.

As narinas do centauro balançaram.

- A sua espécie e a minha são velhas inimigas, lobisomem. – disse – Você deveria considerar um favor o fato de que eu não vou te esmagar com os pés até a morte. Se houvesse mais de nós aqui...

- Sim – disse Lupin – Onde estão os outros da sua espécie? Sirius me pediu para que chamasse por Ronin, e Bane,...

- Eles se foram. – retorquiu o centauro com um riso rouco – Fugiram de medo, todos eles.

- Medo do quê?

- Medo daquele-que-ressurge. – disse o centauro – Ele acabou de ressurgir, ainda que não tenha voltado a possuir seus velhos poderes, mas isso é questão de tempo. Nós vimos isso no movimento dos planetas, lemos isso nas inscrições antigas.

- Que inscrições antigas?

O centauro o ignorou.

- Agora ele só tem poder o suficiente para atrair sua cria até ele. Eles já deram início à jornada.

- Os dementadores. – disse Lupin – então é pra lá que eles foram.

O centauro levantou uma sobrancelha.

- Em breve, você mesmo sentirá os chamados, lobisomem. Onde estão os outros da sua laia?

- Eu não ando freqüentemente com os outros do meu tipo – disse Lupin - Mas eu não senti nenhum chamado.

- Ainda não. – retorquiu o centauro.

- Mas já que ele está fraco... já que carece de seus antigos poderes...

- Ele carece de uma Fonte. – disse o centauro – Ele não pode fazer nada sem uma Fonte. Mas ele encontrará uma nova. Está escrito. E quando ele a encontrar...

- Uma Fonte? – Lupin interrompeu-o, perplexo.

O centauro suspirou.

- Eu não tenho tempo para instruir lobisomens ignorantes. – disse rispidamente – eu tenho a floresta inteira para manter em ordem, e estou sozinho. – mexeu na bolsa que carregava, pendurada no ombro, retirando um livro meio dilapidado. Entregou-o a Lupin, que o pegou, pensativo, e ficou pasmo. – Leia as inscrições e saberá tudo que eu sei.

- Essas inscrições irão nos ajudar?

O centauro riu, sem alegria.

- Nada irá te ajudar. – disse, virou-se e pôs-se a galopar.

Lupin o observou partir e olhou para o livro. Sabia que devia deixar a floresta o mais rápido possível, mas não pôde se conter: abriu o livro com dedos frenéticos e fitou as páginas.

Elas estavam cheias de caracteres incompreensíveis. Se era uma língua, ele nunca a havia visto antes.

- Bosta! – praguejou Lupin, aborrecido.


**


- Rony? – exclamou o estranho, estupefato – Que diabos você está fazendo aqui?

Rony deixou sua varinha cair.

- Carlinhos?

Houve um longo e chocante silêncio. Eventualmente, Harry teve a presença de espírito de levantar sua varinha e dizer “Lumos” para que ela ascendesse, numa luz branca, iluminando um Carlinhos assustado.

Para Harry, ele não tinha mudado nada: estava vestido num couro bem pesado, um pouco queimado, como se tivesse escapado por um triz de ser torrado por fogo de dragão. Mas havia algo de diferente nele, a cara de susto que ele fez ao avistar seu irmão caçula.

- Rony? – perguntou novamente.

Rony fez um barulho parecido com um gorgolejo, parou, e tentou novamente:

- Eu... o que você está fazendo aqui, Carlinhos?

- Eu vim... eu vim aqui porque... havia um dragão aqui, não havia? – disse Carlinhos, olhando para com selvageria para os lados – Eu achei que havia um dragão bem aqui, então eu aparatei, eu o vi por um segundo, mas ele desapareceu... Rony, que diabos de brincadeira é essa? O que você está fazendo no meio dessa floresta, a quilômetros de distância de casa, caçando dragões? Você está louco?

Rony parecia furioso. Harry deu um passo adiante rapidamente.

- Não havia dragão nenhum, Carlinhos. – disse – Quer dizer... havia, mas não era de verdade. Foi um Patrono.

- Um o quê? – perguntou Carlinhos, fitando-os – Risque isso. – acrescentou apressadamente – Eu sei o que é um Patrono, mas por que você conjuraria um? – olhou para Harry – Harry, você...

- Não. – disse Harry com firmeza – O Patrono não era meu. – apontou a varinha iluminada para a árvore onde Draco estava encostado, com Gina ao lado – Era dele.

Carlinhos ficou boquiaberto, embora não estivesse olhando para Draco.

- Gina?

- Oi, Carlinhos! – cumprimentou Gina em voz baixa.

Carlinhos correu até a árvore, sentou-se ao lado de sua irmã caçula, a segurou pelos ombros e perguntou:

- Gina, você está se sentindo bem?

- Estou sim, Carlinhos, estou bem, foi só um arranhãozinho...

- Oh – disse Draco numa voz dolorida – Ei, por favor não sente na minha perna quebrada.

Carlinhos pulou para trás, e então olhou para Draco como se o visse pela primeira vez.

- Quem é você?

- Draco Malfoy.

- O filho de Lúcio Malfoy? – perguntou Carlinhos,chocado.

- Sou. – retorquiu um Draco amotinado.

- E aquele Patrono foi seu?

- Foi.

O rosto de Carlinhos se contorceu num sorriso quando ele disse:

- Aquele dragão estava demais.

- Eu não cheguei a ver o Patrono. – disse Draco, ainda amotinado, embora um pouco menos.

Gina o interrompeu:

- A perna dele está quebrada, Carlinhos.

Carlinhos parou de sorrir.

- Como aconteceu?

- É uma longa história... – disse Rony, nervoso.

- Caí da vassoura. – disse Draco brevemente.

- Aparentemente a queda não foi longa. – disse Carlinhos, ajoelhando-se perto de Draco – qual perna?

Draco apontou para a perna quebrada. Enquanto Rony, Harry e Gina observavam – Rony com surpresa; Harry e Gina com atenção – Carlinhos sacou sua varinha e tocou a ponta desta suavemente sobre a perna de Draco, pouco abaixo do joelho.

- Fratura exposta. – disse brevemente – Parece que você se empenhou bastante em machucar sua perna, jovem Malfoy. Quebrada e deslocada. É melhor que vocês venham comigo para o meu acampamento... não é muito longe daqui. Todos vocês. – olhou diretamente para Rony.

- Como? – perguntou Harry – O Malfoy não pode voar com a perna desse jeito.

Carlinhos tirou do bolso da camisa uma pequena caixa prateada, do tamanho de um maço de cigarros, que ele abriu, revelando uma pequena orbe de metal, do tamanho de uma bolinha de gude.

- É uma chave de portal. Nós todos temos uma.

- E quando chegarmos ao seu acampamento, você pode curar a perna do Malfoy? – perguntou Gina, aflita.

- Quando se trabalha com dragões, é comum lidar com ferimentos horrorosos. – disse Carlinhos jovialmente – Um dos nossos medibruxos pode dar um jeito nela. E enquanto isso, - olhou com severidade para Rony – você pode me contar exatamente como e por que veio parar aqui.


**


Hermione, que até então estivera apoiada contra a parede de pedra da torre, olhou para a porta quando esta estava sendo aberta. Para sua surpresa, era Rabicho, e não Slytherin. Ele fechou a porta atrás de si e virou-se para encará-la, e ela percebeu que ele carregava um cálice de prata talhada, cujo conteúdo soltava fumaça.

Ela sentiu uma pontada fria no estômago.

- Olá, Hermione. – disse calmamente.

- O que você quer? – ela perguntou com rispidez e frieza.

- Eu simplesmente não entendo como uma garota inteligente como você não aprendeu boas maneiras.

- Você sabe o que eu não entendo? – perguntou Hermione – Como Sirius e o pai do Harry conseguiram a proeza de serem seus amigos. Você é nojento.

Ela pensou, embora não pudesse ter certeza, que o viu encolher-se. Um segundo depois, porém, o sorriso dele se alargou, e ele deu vários passos para perto dela. Ela percebeu, com uma sensação horrível, que na mão em que Rabicho não segurava o cálice, ele portava sua varinha.

- Meu Mestre me deu permissão para te ferir. – disse – Só me dê um motivo para que eu faça isso.

Hermione ficou em silêncio.

- Quietinha agora, não é mesmo? Garganta seca? Tome isso. – estendeu o cálice a ela. – Beba um gole.

Ela olhou para o líquido vermelho que soltava bolhas e fumaça dentro do cálice prateado. Havia um cheiro muito forte, não que fosse ruim, era até bom, de rosas, limões e pão fresco.

- Não estou com sede. – ela disse com firmeza.

Rabicho sorriu e disse:

- Você que decide. – deu de ombros – Ou você bebe isso por bem, ou eu te rogo a Maldição Cruciatus até que você perca completamente o movimento de seus membros. Então, eu te forço a beber essa poção de qualquer jeito. Se você quiser ser idiota e corajosa, eu bato palmas. Porque eu estou realmente louco de vontade de te torturar.

Hermione podia sentir seu coração dando pancadas fortes em suas costelas. Lembrou-se de quando Lúcio usou a Maldição Cruciatus nela na Mansão Malfoy, tentando fazê-la contar-lhe onde o Harry estava... lembrou-se de como queria morrer naquele momento. Não era nada fácil de se esquecer.

Vagarosamente, ela estendeu a mão e deixou Rabicho entregar-lhe o cálice. Considerou deixá-lo cair no chão, mas Rabicho a fitava com uma cara que parecia terrivelmente fome. Ele estava desejando ardentemente machucá-la, era fácil perceber.

Encostou o cálice na boca e bebeu o conteúdo.

O gosto era de um açúcar amargo, doce e ardente. Tossiu, observando Rabicho examiná-la avarentamente enquanto ela engolia a poção.

O mundo pareceu parar a sua volta. Em algum lugar, Rabicho dava gargalhadas, mas Hermione mal podia escutá-lo. Um zumbido importunava seus ouvidos; parecia haver mil borboletas presas tentando sair de sua cabeça. Ela podia sentir a poção queimando em seu percurso até o estômago, como se ela tivesse engolido fogo ou luz pura; ela quase podia esperar que sua pele brilhasse como uma tocha. Estava horrorizada, e ao mesmo tempo, sentiu um prazer estranhamente vertiginoso e doentio, o que era quase pior.

- Isso é... – ela arfou – isso é veneno?

Rabicho gargalhou asperamente.

- De modo algum – disse, inclinando-se habilmente para pegar o cálice dos dedos trêmulos da garota – Isso, minha cara, é comumente chamado de poção do amor.

As pálpebras dela estavam tão pesadas que pareciam pedras, mas de algum modo, ela as manteve abertas para olhar para Rabicho com um horror obtuso.

- Poções do amor... não são de verdade... não funcionam...

- Ah, são sim, funcionam sim. – retrucou Rabicho – Essa era uma das mais antigas. A utilização é obviamente ilegal. Prisão perpétua em Azkaban. – ele de ombros – mas isso não faz diferença.

- Não consigo... – disse Hermione – não consigo me manter acordada.

- Muito bem. – disse Rabicho numa voz melodiosa – A poção demora algumas horas para funcionar. Quando você acordar, você vai amar desesperada e incondicionalmente a primeira pessoa que vir. Eternamente. É magia negra. – sorriu, arreganhando seus dentes de rato – Não há nada igual a isso. Bons sonhos, anjinho. – acrescentou ao que Hermione desabou sobre o monte de palha – Quando acordar, o rosto de Salazar Slytherin será a primeira coisa que verá.


**


- Então... papai e mamãe fazem idéia de onde vocês estão? – perguntou Carlinhos olhando para Rony com um olhar tão aterrorizante que Harry ficou quase feliz por não ter irmãos mais velhos.

Quando chegaram ao acampamento, – que era mesmo um acampamento, cheio de barracas de todos os tamanhos, a maior parte das quais eram ocupadas pelos colegas especialistas em dragões de Carlinhos – a primeira coisa que Carlinhos fez foi chamar um monte de medibruxos, que prontamente levaram Draco para a barraca que aparentemente servia como enfermaria.

Isso deixava Harry, Rony e Gina sozinhos para ouvir a música. A música, no caso, era um Carlinhos Weasley extremamente irritado, que não queria nada além de mandar uma coruja imediatamente para seus pais para contar que Rony e Gina estavam, na verdade, não em casa, mas passeando por uma floresta distante com Harry e o filho de Lúcio Malfoy, sendo que estes dois últimos deveriam estar na escola.

- Carlinhos, não faça isso – suplicou Rony, desesperado – eles estão viajando no Distrito do Lago... eu não queria encher o saco deles.

Carlinhos balançou a cabeça.

- Você está tramando alguma coisa, Rony. Lembre-se de que eu sou tão parente do Fred e do Jorge como você, eu conheço essa cara de quem está aprontando alguma.

- Até parece que você nunca aprontou nada. – disse Rony, com raiva – e todas aquelas vezes quando eu era criança e você me fazia jurar segredo, eu nunca te delatei, nenhuma vez.

- Você ainda é uma criança, Rony. – disse Carlinhos – Sua segurança é minha responsabilidade. Sua segurança e da Gina.

- Não fale de mim como se eu não estivesse aqui! – Gina protestou – E você está sendo extremamente injusto com o Rony.

Carlinhos parecia surpreso.

- Ele não é nem Fred nem Jorge, - ela gritou – quando o Rony faz alguma coisa, e porque ele tem seus motivos. Ele não corre riscos à toa. Muito menos o Harry!

- Papai e mamãe não ficariam nada contentes se...

Mas Gina interrompeu o sermão de Carlinhos com um gesto manual.

- Eu lembro de quando você resolveu que iria trabalhar com dragões e a mamãe chorou por uma semana. – disse asperamente – Ela tinha certeza de que você ia ser morto. Eles não gostam do seu trabalho, nem do cabelo do Gui, nem do fato do Percy ser maníaco por trabalho, mas eles confiam em nós, em todos nós, e especialmente no Rony. Por que você não faz o mesmo?

Carlinhos abriu a boca para retorquir, com cara de quem sabe que há uma brecha na lógica que acabou de ouvir, mas não sabe o que exatamente é.

- Gina...

- Eu só te peço que nos dê um voto de confiança, Carlinhos. – pediu ela.

Abatido, Carlinhos esfregou seus olhos cansados. Então, suspirou e perguntou:

- Alguém quer vir conhecer os dragões? – ofereceu, um tanto abruptamente.

- Eu quero. – disseram Harry e Gina simultaneamente. Gina porque gostava mesmo de dragões, e Harry porque este tinha a sensação de que esta era a melhor maneira de chegar no lado bom de Carlinhos.

Rony, ainda ameaçador, concordou relutantemente.

O trio seguiu Carlinhos pelo acampamento, trocando olhares inquietos pelo caminho. A despeito da oferta repentina de Carlinhos, eles ainda tinham a sensação de que ele ainda estava com o humor apreensível.

A vários metros de distância da última barraca, havia uma área do tamanho de cerca de dois campos de quadribol bastante iluminada, cercada por barreiras mágicas. Dentro desse espaço, haviam vários dragões, nenhum deles tão grande quanto o Rabo-Córneo Húngaro que Harry enfrentara em seu quarto ano em Hogwarts. Harry pensou ter reconhecido um deles como um Focinho-Curto sueco. Carlinhos apontou para o dragão em questão e disse:

- Foi aquele dragão que me falou sobre o Patrono do Draco.

- Dragões falam? – perguntou Rony, surpreso.

- Bom, é preciso aprender dragonês para falar com eles, e não é lá muito recompensador – disse Carlinhos – O bafafá é na maior parte das vezes sobre os bons velhos tempos, quando aldeões deixavam garotas amarradas para eles comerem, ou então são reclamações sobre o fato deles não voarem mais com tanta freqüência, e sempre querem que digamos o quão bonitas são suas escamas. Porém – acrescentou – de vez em quando, eles tem alguma informação interessante. Como hoje.

- Nós te contamos. – disse Rony – Não era um dragão de verdade; era um Patrono.

- Me ajudou a encontrar vocês, não é verdade?

A cara que Rony fez revelava que ele não sabia se isso era uma boa coisa ou não.

- Uau! – exclamou uma voz atrás deles. Era de Draco, que acabara de sair da barraca da enfermaria. Suas roupas estavam tão rasgadas e sujas como estiveram antes, mas os cortes e arranhões em seus braços tinham praticamente sumido, e sua perna, obviamente, já voltara ao normal, embora os medibruxos tiveram que cortar a parte abaixo do joelho do lado esquerdo de sua calça, presumidamente para alcançarem o osso quebrado. Draco não parecia ter se importado, porém. Ele tinha uma expressão embevecida no rosto quando olhou para os dragões – Eles são fantásticos!

Carlinhos ficou repentinamente radiante.

- Não são?

- Não sei porque nunca demos dragões em Trato com Criaturas Mágicas. – reclamou Draco, olhando para cima.

- Provavelmente pelo mesmo motivo que nunca tivemos aulas sobre certos feitiços fatais nas aulas do Flitwick. – disse Rony num tom azedo – Classificação letal.

- Malfoy, - chamou Harry, curioso – aquele dragão está olhando para você!

Ele estava certo. O Focinho-Curto sueco azul estava com seus olhos do tamanho de pratos de jantar fixados em Draco, fitando-o com algo que podia ser chamado de carinho. Carlinhos ficou impressionado:

- Eu acho que ela gostou de você. Isso quase nunca acontece.

- Talvez ele tenha cheiro de comida. – murmurou Rony.

Draco se aproximou da barreira, o mais perto que ele conseguira, e olhou para o dragão, que retribuiu o olhar, emitindo uma fumaça de aparência alegre pelas narinas.

- Bom, - disse Carlinhos, ainda impressionado, virando-se para Draco – você quer... você quer me ajudar a dar comida para eles mais tarde? Eu não pediria isso, mas é tão raro que eles se apeguem a pessoas... então, eu pensei...

Draco assentiu:

- Claro.

Carlinhos parecia emocionado. Enquanto Rony parecia ressentido, ele deu tapinhas nas costas de Draco fraternalmente e disse:

- Isso é muito legal da sua parte. Muito legal mesmo! – então, parecendo se dar conta das roupas maltrapilhas de Draco pela primeira vez, disse apressadamente – Parece que eu vou ter que te emprestar algumas roupas.

- Calças. – disse Draco imediatamente – eu não gosto muito da idéia de ser o pioneiro na moda da calça de uma perna só, mesmo estando no meio do nada.

- Você pode ficar com algumas das minhas roupas antigas – disse Carlinhos amigavelmente – venham comigo, todos vocês, vocês podem se lavar nas barracas.

- Só um minuto – disse Draco – eu quero dar uma palavrinha com o Harry.

- Nós vemos vocês lá. – disse Harry a Rony, que deu de ombros e saiu com Carlinhos e Gina.

Harry olhou para Draco, curioso, e perguntou:

- O que foi, Malfoy?

- Estamos bem perto – disse Draco numa voz fraca, porém animada – o Feitiço... desde que chegamos aqui ele começou a, não sei como dizer... vibrar. Nós não podemos estar a mais de uma hora de qualquer que seja o lugar onde a Hermione está.

Harry olhou para Draco com severidade ao perguntar:

- Você tem certeza?

Draco sorriu.

- Eu já te deixei na mão?

- Você quer que eu responda ou eu devo só arregalar os olhos?

- Olhe pra outro canto. – disse Draco – Eu ainda estou bem. Eu acho que deveríamos ir imediatamente... bom, logo que eu conseguir roupas novas, mas relativamente logo. E eu acho que devemos levar conosco a menor quantidade de Weasleys possível.

Harry parecia abismado.

- Ir sem o Rony e a Gina? – perguntou.

Draco assentiu.

- Isso é ridículo, Malfoy. O que aconteceu com o princípio de que a força cresce com o número?

- Dois é um número. – retrucou Draco.

- Eu não vou a lugar algum sem o Rony. – disse Harry.

- Por que não? Levá-lo só te faria ficar preocupado com ele a toda hora...

- Você não sabe nada sobre ele! – gritou Harry.

- E você acha que sabe?

- O que você quer dizer?

Draco olhou para ele com firmeza e disse:

- Nada se você não está a fim de escutar.

- Eu não o escuto quando ele fala mal de você. – disse Harry – por que eu deveria escutar a você quando você fala mal dele?

Draco estava espantado. Provavelmente nunca lhe ocorreu que Harry pudesse defendê-lo.

- Eu estou de saco cheio de vocês dois falando mal um do outro. – disse Harry – Estou de saco cheio dessa briga idiota entre as suas famílias. Continue, se quiser, mas eu vou te ignorar.

- OK. – disse Draco – quando nada der certo, a sua grande má vontade em enxergar os fatos vai ser como um tapa na cara.

- Você não vai me deixar irritado. – disse Harry, indo embora – Não agora.

Draco foi atrás dele, ainda argumentativo:

- Muito bem, Potter, fuja...

- Eu não estou fugindo. Eu indo pra longe de uma conversa chata. E não funciona se você me seguir, então, dê o fora, Malfoy, vá encher o saco do Carlinhos. Pelo menos ele gosta de você.


**


A barraca do Carlinhos era longe das outras, e, como muitas outras barracas de bruxo, era muito mais espaçosa por dentro do que parecia por fora. O interior era como um apartamento de solteiro bem organizado. A porta dava numa pequena cozinha, dentro da qual, Draco esperava enquanto Carlinhos lhe buscava algumas roupas. Ele podia ver outros aposentos que davam em um corredor estreito, cada um decorado com caprichados móveis de madeira cuja aparência era de que haviam sido feitos a mão. Sobre a lareira da cozinha, havia uma fotografia da família Weasley, acenando e sorrindo, e ao lado dela havia um espelho com moldura de prata quadrada.

Draco olhou para o espelho, estremecendo ao ver o quão sangrento, sujo e machucado ele estava.

- Mui-to interessante. – disse o espelho numa voz que era decididamente feminina, fazendo Draco pular – Muito promissor. Mal posso esperar para te ver tomando banho.

Carlinhos, que havia voltado ao quarto carregando uma pilha de roupas, riu com desdém.

- Deixe-o em paz, Audrey – disse duramente ao espelho – ele só tem dezesseis anos!

- Faço dezessete daqui a um mês. – disse Draco automaticamente, saindo de perto do espelho. Ele estava acostumado a espelhos falantes, mas não a espelhos tão francos.

- Aqui. – disse Carlinhos, deixando as roupas que trouxera em cima da mesa – Algumas roupas minhas, eu não sei se elas vão servir em você, mas... eu te trouxe algumas jaquetas antigas também, para o caso de você querer vir comigo alimentar os dragões. Eles realmente parecem gostar de você. Você já pensou em estudar dragões, depois de se formar? Você podia conseguir um estágio.

- Nunca. – disse Draco, confiante, tirando seu casaco e pegando as roupas que estavam sobre a mesa.

Carlinhos assobiou:

- Essa espada é muito bonita.

Draco olhou para a espada de Slytherin, que estava presa em seu cinto.

- Obrigado – disse – está com a família há séculos.

- Posso ver? – pediu Carlinhos, estendendo uma mão.

Draco balançou a cabeça e disse, desapontado:

- Está encantada. Iria carbonizar os seus dedos.

- Bom, quem não encantaria uma espada dessas? – disse Carlinhos, fascinado – Mas – acrescentou – você está segurando-a da maneira errada. – riu da cara de Draco – Não há por que deixá-la pendurada no cinto desse jeito, ela vai ficar batendo na sua perna a cada passo que você der. Você deveria carregá-la atrás dos ombros, assim é só pegar quando precisar, sem que ela te atrapalhe.

- Você parece saber muito sobre o assunto. – disse Draco.

- Eu gosto de espadas – disse Carlinhos – tem um pouco a ver com o fato de eu gostar de dragões. Eu tenho bastante equipamento, posso te emprestar alguma coisa.

- Obrigado.

- Na verdade, - disse Carlinhos, pensativo – se você vai alimentar dragões, vai precisar de todo o equipamento certo. Espere um minuto, já volto.


**


- O seu irmão parece gostar do Malfoy. – disse Harry quando ele e Rony lavavam seus rostos sujos na barraca que Carlinhos lhes arranjara.

- Os dragões gostam do Malfoy, então o Carlinhos gosta dele. – disse Rony, dando de ombros – Ele gostaria até do Lorde das Trevas se ele se desse bem com Rabos-Córneos Húngaros. Pelo menos ele nos esqueceu um pouco.

Harry olhou para o seu reflexo no espelho sobre a pia. Ele havia tirado a maior parte da sujeira e do sangue com um esfregão de banho, revelando um rosto muito pálido e muito triste, cujos olhos verdes estavam manchados de exaustão. Recolocou seus óculos e se ajeitou, passando a mão pelo cabelo bagunçado.

- Anime-se, amorzinho – disse o espelho gentilmente – Nada é tão ruim assim.

Fora da barraca, eles encontraram Gina, que, como não estava tão imunda como os garotos, havia se lavado com muito mais rapidez. Seus cabelos ruivos estavam úmidos por terem sido lavados. Sorriu para Rony, depois olhou aflita para Harry, perguntando:

- Está melhor?

Harry deu de ombros.

- Só estou um pouco cansado.

Rony sorriu para sua irmã, e quando olhou para os lados, seus olhos se arregalaram de surpresa.

- Bom, vocês olhariam para o Malfoy. – disse.

Gina e Harry viraram-se para olhar para onde Rony apontava. Draco estava andando até eles pela clareira. Carlinhos havia lhe dado roupas bem parecidas com as suas próprias. Parecia ser a roupa padrão de quem lidava com dragões, se é que qualquer coisa que tivesse a ver com dragões podia ser considerada padrão. Sobre a própria camisa, Draco vestia a jaqueta de couro de dragão preto de Carlinhos, e uma calça de couro preta bem justa. Carlinhos também havia dado a Draco um par de firmes botas pretas, que eram um pouco grandes demais para ele, e um cinto preto com a fivela em forma de dragão. Contrastando com toda aquela cor preta, seus cabelos louros platinados e pele clara ficavam realçados. Ele parece mais velho, pensou Gina, e de algum modo, diferente, com as roupas de couro antigas de Carlinhos. Elas davam margem a olhares cobiçosos, e davam a ele uma rigidez, um ar sombrio, que ele jamais tivera.

- Céus! – exclamou Gina, sem tomar completamente ciência de que estava falando alto – O Malfoy está muito gostoso! – pôs a mão sobre a boca – Vocês ouviram eu dizer isso?

Rony assentiu.

- Meu Deus! – disse Gina, sem graça – Alguém me mate, pelo amor de Deus! Eu não quero mais viver.

Harry teve um ataque de risos.

- Gina, cale essa sua boca. – disse um Rony exasperado – Ele está muito mongol, isso sim.

- Não está, não. – disse Gina, pasma – ele parece... um desenho, ou uma pintura...

Harry teve outro ataque, dessa vez de nojo.

- Eu posso ver o letreiro em néon – disse – Ainda Há Vida Com Babaca de Calça Ridícula.

Gina o ignorou, e pôs a mão na boca na boca quando Draco aproximou-se deles acenando. Quando os alcançou, ele olhou para ela, curioso, e perguntou:

- Alguma coisa de errado?

Gina guinchou, virou-se, e saiu correndo na direção oposta.

Draco olhou curioso para Rony e perguntou:

- O que há com ela?

- Couro. – respondeu Harry, olhando para Gina correndo com uma expressão que misturava diversão e surpresa – Ela odeia couro, é vegetariana.

Draco revirou os olhos.

- É pele de dragão. – disse – Tirada de dragões depois de mortos, eu devo acrescentar. Dragões são valiosos demais para serem mortos por couro.

Rony fez um barulho abafado.

- Vocês querem que eu vá dizer isso a ela? – perguntou Draco, exasperado.

- Não precisa. – disse Rony – Ela quer ficar sozinha, com seu, hã...

- Vegetarianismo. – disse Harry.

Draco olhou para eles imparcialmente e disse:

- Vocês são os dois piores mentirosos que eu já vi. E eu incluo Neville Longbottom nessa lista.

- Então você sabe que eu não estou mentindo quando digo que você está ridículo. – disse Harry – Calça de couro, Malfoy?

- Pele de dragão retarda queimaduras e é extremamente útil. – disse Carlinhos, que apareceu atrás deles, sorrindo – O Draco vai me ajudar a alimentar os dragões.

- Não, ele não vai te ajudar coisa nenhuma. – disse Rony com firmeza – Nós temos que ir agora. Se você quiser ficar para dar comida aos dragões, Malfoy, problema seu. Só nos dê o Feitiço que iremos sem você.

Carlinhos olhou de Draco para Rony e Harry. Abriu sua boca para dizer alguma coisa, mas fosse o que fosse, ele calou sua boca ao olhar para a expressão que Harry fez.

- Certo. – concordou – eu não sei o que vocês estão tramando. Rony, eu vou pôr um Feitiço Rastreador em você. Se não voltar em três horas, eu vou aparatar para onde quer que vocês estejam. Está claro?

Rony assentiu.

- Claríssimo.

- E a Gina fica aqui. – acrescentou Carlinhos.

- Ela não vai gostar nada, nada disso. – disse Harry.

- Não me importa. – disse Carlinhos com um fraco sorriso – Já vou ter problemas o suficiente se a mamãe souber que eu deixei o Rony sair para fazer Deus-Sabe-O-Quê com vocês. Acrescente a Gina, e eu nunca mais vou poder pisar em casa.


**


Eu não vou dormir, não vou.

Hermione deitava sobre a palha no quarto da torre onde Rabicho a havia deixado. Assim que ele deixou o quarto, ela começou a murmurar sob sua respiração, repetindo um Feitiço Despertante, que ela usava de vez em quando para estudar até tarde. Vagarosamente, muito vagarosamente, o seu cérebro começou a aumentar o ritmo e raciocínio, as cores dançantes atrás de suas pálpebras haviam desaparecido, e ela não corria mais o risco de ficar inconsciente. Ela teria gostado de pensar que uma vez que houvesse domado o feitiço para dormir, a poção do amor não teria mais efeito, mas ela tinha muito poucas esperanças de que isso seria verdade.

Para evitar que entrasse em pânico, ela tentou pensar em coisas agradáveis, coisas que a haviam feito feliz. Fechou seus olhos com força, pensou em seus pais, na escola, nas visitas a Hogsmeade com Rony e Harry, e depois, só em Harry. Os momentos mais felizes de sua vida foram as últimas duas semanas com Harry na escola. Mais do que qualquer outra coisa no mundo, ela queria ouvir a voz de Harry novamente. Pôs ele na cabeça, lembrou-se da última semana de aula, sentiu sua cabeça espremer a lembrança, como se a pressão pudesse fazê-la tomar forma agora.

Harry estava sorrindo para ela, segurando sua mão, e a puxando para um corredor fora do salão comunal da Grifinória. Harry, eu tenho dever de casa, protestou, rindo. Harry, você não pode usar o Mapa do Maroto só para procurar armários pouco usados para nos agarrarmos!

Harry riu, Por que não? Consultou o Mapa. Que tal esse armário? É um ótimo armário.

Harry, todos os armários são praticamente iguais.

Na-não. Esse é diferente. Ele a pegou no colo e a carregou até o armário, colocando-a no chão cuidadosamente e chutando a porta para que fechase. Muito bem, aqui estamos. Armário legal, não é?

Harry... estamos aqui por algum motivo?

Nós tivemos provas a semana inteira e eu sinto que tudo o que eu fiz foi estudar e arrumar minhas coisas e fazer tudo aquilo que eu não gosto. Eu quase não te vi. Eu acho que tudo o que eu queria era ficar sozinho contigo. Sério. Tudo o que eu quero é olhar para você.

Bom, eu não fico dentro de armários só para me divertir.

O que você está tentando dizer?

Estou tentando dizer que é melhor você me beijar logo, Harry Potter, ou então, eu vou pôr o Feitiço da Perna Presa em você e vou te deixar aqui até que o Filch te encontre.

Harry jogou o mapa para o alto, deliciado. Finalmente alguma coisa que eu quero fazer!

Seus dedos, pressionados com força contra os seus olhos, não conseguiam impedir as lágrimas de caírem. Harry parecia estar a milhões de léguas de distância; o mundo todo parecia estar a milhões de léguas de distância, como se tudo tivesse acontecido há mil anos, não há duas semanas.


**


Draco estava certo; eles estavam muito perto. Eles voavam havia menos de quarenta e cinco minutos quando Draco fez um gesto para indicar a Harry e Rony que podiam descer.

Eles se acharam sobre o que devia ter sido uma enorme clareira, embora agora estivesse cheia de árvores. Os muros em ruína que Draco havia visto quando segurou o Feitiço Essencial aparecia sombriamente na frente deles; dentro dos muros, meio ocultos pelas sombras, ele havia reconhecido a torre e os jardins mal-cuidados que a circundavam quando eles baixavam vôo pelo ar.

Estava úmido, sombrio e lúgubre sob as árvores. Harry, Draco e Rony se entreolharam, inquietos.

- Acho que devemos escalar os muros. – disse Harry por fim.

- Podíamos voar até lá. – sugeriu Rony.

- Muito visível. – disse Draco – É como marchar para a porta da frente.

- E se nós... – Rony começou.

- Estou me suicidando – perguntou Draco – ou as palavras “eu tenho um plano” estão marchando com confiança desmerecida em direção a essa conversa?

Harry olhou para Draco, como quem dá uma advertência. Rony simplesmente o ignorou.

- Como eu ia dizendo, e se nós...

Ele foi interrompido por um barulho repentino que veio do lado oposto do muro – um barulho que parecia música. Harry, com um solavanco no coração, achou que fosse música de fênix. Tinha a mesma doçura etérea, mas quando ele a ouviu de fato, deu-se conta de que era mais alta e ainda mais penetrante, e parecia levá-lo adiante, adiante... até o muro.

- Ei! – reclamou Draco, olhando para Harry e Rony, que tinham se atirado ao muro e pareciam estar tentando escalá-lo. Esticando os braços, agarrou os dois pela parte de trás das vestes e os puxou para baixo – Saiam daí! – gritou, desgrudando-os do muro. Por sorte, a canção estava começando a sumir. – Vocês dois!

Rony puxou suas vestes para longe da mão de Draco e falou, num rosnado:

- Sair de onde?

- Vocês estavam escalando o muro. – disse Draco.

- Não estávamos, não. – protestou Rony.

- Estávamos, sim. – admitiu Harry, cujas vestes ainda estavam sendo seguradas por Draco – O que foi aquilo, Malfoy?

- A canção? Aquilo foi música de veela. – disse Draco – Bonita, não é?

- Veela? – repetiu Rony, estarrecido.

- Parece que o lugar é protegido por veelas. – disse Draco – Uma idéia inteligente.

Rony deu uma risada e perguntou:

- O que elas poderiam fazer? Nos beijar até a morte?

Draco olhou para ele com repulsa.

- O que é? – resmungou Rony, irritado.

- Você não sabe nada sobre veelas, não é mesmo, Weasley? – disse Draco – Veelas de verdade vêem apenas dois sentidos em relação a homens: procriação... e comida.

- Comida? – estranhou Rony, parecendo enfraquecido.

- Comida. – repetiu Draco, sorrindo – Eu li o diário da minha tataravó, certa vez. – disse – Havia uma passagem sobre um homem que a convidou para jantar, a coisa engraçada foi que ele não percebeu que ela achou que ele ia ser o jantar. E ela foi pega de surpresa sem nenhuma faca de trinchar. Por sorte, ele tinha uma vasta coleção de canivetes, e como eu sei que ninguém está amando esta história, vou calar minha boca agora mesmo. É suficiente dizer que veelas são perigosas. Elas são criaturas das trevas.

Harry parecia horrorizado quando murmurou:

- Lupin.

- Ah, Fleur é só um quarto veela. – disse Draco com equanimidade – O máximo que ela vai fazer é mordiscar a orelha dele.

- Eu podia ter entendido sem essa imagem. – disse Rony.

Mas Harry estava olhando para Draco.

- O que fazemos? – perguntou.

- Bom, - disse Draco – você pode tanto ir andando até lá para virar sopa de veela em dez minutos, ou pode esperar enquanto eu falo com elas.

- Você não vai ser comido? – perguntou Rony, soando bastante esperançoso.

- Eu sou parte veela. – disse Draco – elas não vão me incomodar.

Harry o fitou.

- Tem certeza?

Draco respirou fundo e respondeu:

- Tenho. Você pode me ajudar a subir o muro?

Harry sacou sua varinha.

- Posso. – deu um passo para trás e apontou a varinha para Draco – Wingardium Leviosa!

Draco voou vagarosamente, e aterrissou no topo do muro, apoiado em suas mãos e joelhos. Olhou para Harry, que estava embaixo com a varinha em punho, os olhos verdes tensos e firmes.

- Malfoy! – disse Harry.

- Que foi?

- Você vai voltar, não vai?

- Vou. – disse Draco, pulando para o outro lado do muro, que dava num jardim.

Assim que seus pés tocaram o chão, uma onda de ar frio, com cheio de poeira e pétalas de flores murchas, passou por ele. A luz ia desaparecendo, embora o sol ainda estivesse aparecendo no céu. Era como se uma cortina sombria tivesse caído sobre seus olhos, ele via fileiras empoeiradas de canteiros de flores, entremeadas com flores pálidas. À distância, ele podia ver o muro cinza assustador da torre.

Draco ainda podia escutar a música de veela, embora tudo estivesse um pouco indistinto, como se seus ouvidos estivessem tapados com algodão. Quando ele começou a andar, mesmo o barulho da suas botas sobre o cascalho vinha muito fraco a seus ouvidos. Tudo estava muito calmo, parecia não haver movimento algum – até que ele percebeu uma luz branca bruxuleante pelo canto de seus olhos, como percebendo vagamente a asa de uma borboleta branca, virou-se e as viu.

Elas apareceram, vindo dos cantos dos arbustos; brancas na escuridão, uma meia dúzia delas, altas, claras, lindas mulheres com cabelos longos que brilhavam como prata à meia-luz. Mesmo com todo o seu papo, Draco nunca havia visto uma veela sangue-puro de tão perto. Sentiu como se um punho frio tivesse apertado seu coração, sentiu horror e admiração em doses iguais. Ficou parado enquanto elas se aproximaram – não parecia haver motivos para fugir.

Elas se aproximaram vagarosamente, sem pressa alguma – era difícil dizer quantas delas haviam de fato – elas pareciam se movimentar de um lado para o outro como borboletas. A mais alta de todas, que estava no centro do grupo, parecia andar mais rápido. Draco imaginou que ela fosse a chefe das veelas, e a suposição logo se tornou fato quando elas pararam de andar, a apenas trinta centímetros dele, e a veela mais alta fez um gesto que silenciou as demais.

- Você foi insensato ao vir aqui, humano. – disse a Draco, seus lábios vermelhos divididos pelos dentes muito brancos e afiados, olhando para ele.

- Olhe para mim. – disse Draco, tentando manter a voz firme – Eu pareço humano para você?

A veela pestanejou.

Uma vela disse, numa vozinha de ouropel:

- Ele não é tão feio quanto a maioria deles, é?

- O cabelo dele é igual ao nosso. – disse outra.

- Eu estou terrivelmente faminta. – disse uma terceira, fazendo com que Draco pulasse uns trinta centímetros para trás.

- Só há um jeito de saber. – disse a chefe das veelas, dando um passo para perto de um Draco assustado, e beijando-o com força na boca.

Foi mais como ser pego por um furacão, ou por algum tipo de ocorrência metereológica do que qualquer beijo que ele já tinha experimentado ou imaginado antes. Pareceu-lhe que um vento devastador passou por sua cabeça, sentiu-se rodopiar, cegou-se por listras prateadas giratórias. Em algum lugar em seu cérebro, ele podia escutar Rony dizendo, O que elas poderiam fazer? Nos beijar até a morte? Um ponto para o Weasley, pensou, imaginando se iria desabar.

A veela o soltou, e a nauseante tempestade de rodopios e gemidos cessou abruptamente.

Ela sorriu, anunciando:

- Ele é um de nós.

As outras veelas, guinchando deliciadas, pularam no pescoço dele como uma associação de tias malucas – mexendo nos cabelos dele, afagando a lapela de sua jaqueta, apertando qualquer pedaço de pele exposta que elas conseguiam alcançar...

- Ai! Quem me mordeu? – gritou Draco, indignado, tentando sem sucesso fugir das mãos delas.

Não devem existir muitos homens parte-veela, ele pensou ao dar um tapinha numa mão que tentava mexer na fivela de seu cinto. Queria que alguém tivesse me DITO isso antes.

- Ei! Parem com isso! – a voz de Draco, grossa por dois anos inteiros, havia escolhido esse exato momento para subir várias oitavas – Tirem as mãos de mim! – guinchou advertidamente – Ai... mãos... mãos em outros lugares está tudo bem, mas isso não é mesmo necessário... larguem do meu cabelo! Se acalmem, pelo amor de Deus, tem muitos Dracos Malfoys por aí, vocês sabem...

Ele parou de falar quando as veelas soltaram e deram um passo para trás, silenciando-se de repente. A veela chefe olhou para ele, surpresa, e perguntou:

- Você é o Draco Malfoy?

Draco estava abismado. Claro, ele sempre sonhara que um dia ele seria tão famoso que a simples menção ao seu nome silenciaria uma sala cheia de gente. Ele simplesmente não tinha percebido que isso acabara de acontecer.

- Você devia nos ter avisado! – exclamou a veela chefe, soando indignada.

- Eu devia... o que? – Draco crepitou deselegantemente, mas as veelas, insolentes, já haviam começado a ir embora.

Draco olhou para elas, boquiaberto em choque. Eu não faço a mínima idéia do que acabou de acontecer, pensou. Idéia alguma. Um dia, eu ainda descubro por que esse estardalhaço todo.

Mas não agora.

Ele começou a andar de lado até os muros da torre, meio que esperando que uma veela fosse tentar impedi-lo. Mas nenhuma delas fez absolutamente nada. Elas pareciam ter esquecido até de que ele estava lá.

Continuou a andar até que não podia sequer mais vê-las. Então ele parou, se ajeitou, e olhou para os lados.

E sentiu seu coração bater de surpresa.

Havia reconhecido onde estava. A torre cinzenta com seus muros negros de queimados e árvores mortas – era isso que ele havia visto em sua mente quando usou o Feitiço Essencial. Devia estar muito perto de Hermione. Começou a andar mais rápido, animado, contornando o muro, e, quando viu de perto a familiar torre de paredes queimadas, ouviu a voz de Harry na sua cabeça, Malfoy, você vai voltar, não vai?

Draco começou a andar mais vagarosamente. Será que Harry quisera dizer voltar depois de resgatar Hermione? Ou será que ele quisera dizer para voltar depois que Draco tivesse se livrado das veelas, para poderem ir adiante juntos? Draco sabia o que Harry queria, era óbvio. Harry não iria querer ser deixado de lado em nada nesse resgate, ficaria ressentido se fosse abandonado para esperar do lado de fora do muro enquanto Draco ia buscar Hermione. Alguém por quem Draco não tinha nenhum direito de verdade.

Eu devo voltar, pensou. Eu devo voltar para buscar o Harry e o Rony. O rosto de Harry apareceu na frente de seus olhos repentinamente, lívido e ansioso como estivera pelos últimos dias.

Ai!

Ele havia topado com uma parede do castelo. Deu um passo para trás, massageando o cotovelo onde o havia batido e olhou para cima. Estava exatamente embaixo de um muro em ruínas, cujo lado norte estava escurecido como se tivesse pego fogo. Sentiu a emoção e excitação do reconhecimento.

Estou aqui.

Na metade do muro, ele podia ver uma janela retangular cheia de grades. Ele podia sentir o Feitiço em volta de seu pescoço, pulsando quente e frio contra sua pele. Ela estava lá; estava perto. Se ele fechasse os olhos, podia ver o rosto dela. Podia ver a si mesmo resgatando-a, vê-la olhando para ele, dizendo-lhe que ele foi fantástico, corajoso.

Esqueça, disse a si mesmo severamente, ela escolheu o Harry. Ela também não vai ficar feliz em ser resgatada, especialmente por mim – ela é muito independente, ela não vai se atirar no meu pescoço e me dizer que eu fui corajoso. Ela provavelmente só vai me dar um chute no tornozelo.

Você vai voltar, não vai? Dizia a voz de Harry na sua cabeça.

O que importa o que ele quis dizer? Disse outra voz, mais aguda. O Harry sempre se sai melhor, o herói. Ganha todos os jogos, fica com a garota. Sempre vai ser assim; nunca vai mudar. Ele ganhou a última batalha, isso não vai fazer muita diferença pra ele. Mas essa é a sua chance de mostrar que é melhor. Melhor ou ao menos tão bom quanto.

Ergueu sua mão, sem pensar, e apontou para a janela cheia de grades.

- Accio!

Fez-se um barulho violento, e as grades se libertaram da pedra e voaram até ele com tanta força que ele pulou para trás, deixando-as se espatifar barulhentamente na grama. Olhou para os lados com selvageria, mas os jardins estavam tão vazios quanto antes.

Agora suba, disse a si mesmo.

Ainda demorou bastante até que ele pudesse forçar seus pés a se mexerem.


**


Rabicho sorriu para si mesmo, satisfeito, quando ele abriu a porta de pedra e entrou no aposento circular. Estava exatamente como ele o havia deixado: escuro, palha por todos os lados, e Hermione, deitada inconsciente sobre sua cama de palha, sua mão servindo de travesseiro para sua bochecha. Ajoelhou-se perto dela, checando se os olhos dela estavam mesmo fechados, tirou um pedaço de pano do bolso e envolveu-o em volta dos olhos dela, amarrando com força. Não seria nada bom se ela visse alguém antes da pessoa que deveria ver. Se, pensou, era mesmo possível chamar Salazar Slytherin de pessoa.

Ele tinha acabado de se inclinar para ver se o laço atrás da cabeça dela estava bem feito quando percebeu movimento com o rabo do olho. Virou a cabeça, e para seu grande espanto, viu a mão de Hermione emergir de seu bolso – mas ela estivera inconsciente – com a sua varinha na mão.

Arfou involuntariamente, e viu a mão trêmula dela inclinar-se para apontar a varinha para ele.

- Estupefaça! – ela sibilou.


**


Por um segundo, Hermione achou que o feitiço não havia funcionado. Então, ela ouviu o baque quando Rabicho caiu no chão, aterrissando pesadamente sobre sua perna esquerda. Revoltada, ela sacudiu a perna violentamente para o lado, ainda com a varinha na mão, e ficou em pé com alguma dificuldade. Deu um passo para frente, e seu pé bateu em algo muito sólido e pesado – o corpo de Rabicho.

Sentindo náuseas, ela deu um passo cambaleante para trás, com as mãos esticadas atrás de si até que atingiu a parede. Começou a se guiar pelo tato na parede, os olhos bem fechados atrás da venda de olhos e os dedos tateando a pedra tosca. Seus ouvidos estavam alertas por qualquer som vindo de Rabicho, mas o aposento estava completamente silencioso.

Seus dedos acharam a madeira – bem mais macia – da porta, escorregaram por ela, e acharam a maçaneta. Ela tentou abrir, mas era inútil. Desesperada, ela sentiu o cadeado, agarrou-o, mas era impossível para seus dedos trêmulos entenderem a complexa configuração do metal sem vê-lo de fato. Por fim, ela desamarrou a venda, Não vou olhar para trás, não vou, viu o cadeado, torceu-o abruptamente e abriu a porta.

E viu Draco, espantado, do outro lado.

(Continua...)

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