Hipotético Draco



Como eu Vejo


Capítulo Quatro – Hipotético Draco

Uma imagem que gosto de ter como significando Draco Malfoy é a do eterno traidor. Aquele que não possui mestre. Que não se importa com lado algum, e nem mesmo quer se importar. O traidor é a única pessoa verdadeiramente livre, principalmente em dias de guerra. Ele ajuda o lado que lhe é conveniente. Está se ferrando se é uma guerra. Está se ferrando com as vidas dos outros, que não sabem cuidar direito delas. Eu cuido muito bem da minha e tiro o máximo dela. Eu traio todos e não me apego a nenhum; meu pai tentou me ensinar fidelidade a Voldemort e às vezes até acredita que conseguiu. Mas eu tenho bem claros os meus objetivos. E não me interessa que o Lord das Trevas vença a guerra. Mas tampouco me interessa que o Santo Potter consiga. O único problema é, eu não estou neutro nesta guerra. Estou do lado do meu pai, do lado do Lord das Trevas. Ora, era isso ou ajudar o Potter Perfeito. E eu nunca ajudaria Potter Perfeito conscientemente.
É claro que eu gostaria que os trouxas imbecis fossem exterminados. É ridículo termos nosso espaço limitado e é ridículo ter que fingir que não temos muito mais poder do que eles, que correm para inventar coisas que os protejam de nós. Qualquer um dos aparelhos deles falha quando nós assim queremos, e isso já ficou provado. Quando a guerra explodiu com o final de Hogwarts e com Snape assumindo o lado a que pertencia, eu recebi minha Marca Negra.
Meu pai se esforçou para ter alguma importância na cerimônia. Lembro-me de que ele enfatizou uma dezena de vezes, ajoelhado como um qualquer aos pés do Lord das Trevas, o quanto tinha lutado para me criar de acordo com os valores que um Comensal da Morte ideal deve ter. Fez parecer que toda a minha existência e cada um dos meus modos tinham sido planejados. O momento em que eu fora selecionado para a Sonserina, por exemplo, ou mesmo o momento em que meu pai foi para Azkaban e eu tive que participar ativamente na morte de Dumbledore.
Eu estava humilhantemente ajoelhado diante do Lord, cuja aparência não era nada agradável. Não que eu tivesse medo, não sejamos ridículos. Mas ele era a primeira pessoa com olhos de fendas que eu já tinha visto, com olhos de fenda e vermelhos, parecendo tudo menos humano. E eu entendi o que meu pai queria tanto dizer quando eu era criança, e ele me ensinava os valores do maior bruxo de todos os tempos: o Lord das Trevas era mais do que um humano. Ele estava acima de todos nós, e ninguém podia matá-lo.
Eu estava nas masmorras da minha própria mansão, aquela casa onde eu tinha crescido e que agora o Lord confiscara para os Comensais da Morte. Minha mãe não gostou da idéia, evidentemente. Mas ela também não passava de uma peça do Lord, explicou meu pai depois.
-Draco Malfoy... – disse o Lord, caminhando lentamente à minha volta, com a varinha em mãos e com o olhar fixo em mim, como se decorasse cada feição. – Ao que parece, Lucius se esforçou mesmo em criá-lo para mim. – E ergueu a cabeça de repente, fitando um dos homens que fechavam o círculo de Comensais em toda a masmorra. – Você fez um bom trabalho. As capacidades do jovem já foram testadas. E embora tenhamos tido uma pequena... hesitação... Suas convicções são claras. Você gosta dos trouxas, Draco? – ele perguntou, com um tom de fria inocência, como que fingindo que a pergunta não tinha importância.
-Não. – repliquei prontamente. – Eu os odeio.
Ele assentiu, e continuou andando.
-Quer causar dor a eles? Quer destruí-los, matar a todos?
-Quero.
-Deseja vê-los aos pedaços pelo chão, perdendo suas almas para os dementadores, esmagados sobre as mãos dos gigantes?
-Desejo.
-E vai contribuir para que isso aconteça?
-Vou.
-Vai mentir, torturar e corromper quando eu o mandar? Vai matar?
-Vou.
-Conhece as três Maldições Imperdoáveis? Sabe como realizá-las?
-Sim, meu Lord.
-Bom. – ele respondeu, dirigindo o olhar mais uma vez para o meu pai. Eu não ousei erguer a cabeça, mas sabia que a rajada fria que tirou meus cabelos do lugar vinha da única janela com grades, no alto da parede. – Terá que suportar dor em meu nome, Draco Malfoy. E esta é a última pergunta. Dará a sua vida pela causa dos Comensais da Morte?
-Darei. – concordei, engolindo em seco com a maior discrição possível. Foi quando ele pôs os dedos gelados no meu queixo e ergueu meu rosto. Quando ele olhou nos meus olhos, vi uma seqüência de imagens e de sons cruzando a minha mente depressa demais para acompanhar; vi os almoços silenciosos na Mansão Malfoy, vi minha primeira varinha e o momento em que entrei no Expresso de Hogwarts; vi meus pais discutindo, pois minha mãe insistia fervorosamente para que eu fosse a Hogwarts, enquanto meu pai queria Durmstrang. Vi meu primeiro jogo de quadribol e vi Potter Perfeito fechando os dedos no pomo de ouro. Senti todo o ódio daquele momento outra vez e foi quando tudo parou.
E eu me vi de volta à masmorra. O Lord das Trevas curvara os lábios numa sombra de um sorriso malicioso.
-Muito bem. – ele murmurou, e ergueu a varinha.
Meu pai saiu do aglomerado dos Comensais, pegou meu braço esquerdo e arrancou a manga das minhas vestes com um puxão brusco. Não havia problema, quando eu cumprisse o meu dever ganharia quantas vestes novas quisesse. Era só fazer o que o Lord quisesse e ele me protegeria quando eu assim desejasse.
Então um grito agudo saiu da varinha dele, que emitiu um brilho esverdeado que por pouco não me cegou; num momento aquele brilho se enrolou no meu braço e o apertou, como se o esmagasse, com toda a força que cem gigantes poderiam reunir, e eu quase podia sentir o osso se quebrando; então ele se centrou no lugar onde ficaria a marca, e foi a vez de facas contornarem o desenho da caveira com a língua de serpente. A dor era forte demais e meu rosto se deformou, se distorceu; eu me apoiei no chão com a outra mão e ouvi, bem distante, um riso alto, grave, gelado. A língua de serpente foi se fechando, eu tinha certeza de estar coberto em sangue, e queria gritar, mas não podia porque aquele riso cruel me paralisou; de repente então, as facas pararam e o brilho desapareceu.
Abri os olhos.
Meu braço tinha a Marca Negra, viva e nítida como eu nunca imaginara que ela poderia ficar. Eu sempre tivera medo que tocassem em meu braço esquerdo antes, pois meu pai vivia profetizando sobre o dia em que eu ganharia aquilo. Não gostava que se aproximassem nem que fizessem qualquer coisa a ele. E agora estava feito. A dor foi dando ondas cada vez menores, e meu braço direito começou a recuperar as forças. Meus joelhos estavam bambos e eu sabia que não poderia ter me levantando, nem se assim quisesse.
É claro que eu já pensei em ser leal ao Lord até o final. Por muito tempo, na verdade por grande parte da minha adolescência, a idéia era justamente essa. Mas depois daquela noite, aquela noite na Torre de Astronomia, quando eu vi Dumbledore desarmado e inútil diante de mim, eu vi que talvez não fosse tão interessante assim ser cegamente fiel. Eu não matei o mais poderoso diretor de Hogwarts em todos os tempos, mas eu o embosquei, eu o peguei de surpresa. Sorrateiramente, como os Comensais aprender a ser.
-Se possível, Draco, nem devem ver quem é você – meu pai me ensinou, quando o vi pela última vez antes que ele fosse para Azkaban. – Não perca tempo se vangloriando de seu poder, apenas faça o que o Lord ordenar e caia fora.
-Mas como eu posso receber as gratificações se ele não souber depois que fui eu?
-Ele sabe de tudo, Draco – meu pai replicou, com um olhar conturbado. – Ele vê tudo que fazemos e tudo o que já fizemos. Às vezes ele pode até ver o que pensamos em fazer, se não o agrada.
Até aquele dia, eu pensara no Lord das Trevas do mesmo jeito que pensava em Dumbledore – apesar de poderosos, ambos eram humanos e podiam morrer. Mas eu vi o velho diretor morrendo e não vi o Lord fazer o mesmo. Nem fará. Agora eu sei que ele é imortal.
Snape às vezes aparece na Mansão Malfoy. O Lord nunca mais apareceu aqui desde que eu recebi a Marca Negra, e me convocou poucas vezes desde então. Na maioria das vezes, eu recebo minhas missões através do meu pai, que é do círculo antigo dele. Por isso, um dia Snape mencionou que seria bom se eu soubesse Oclumência e Legitimência.
-Imagino que saiba o que são – prosseguiu Snape, me olhando de cima com pouco interesse.
-Sim, claro que sei. – repliquei, sentando-se me no sofá e gesticulando para que ele fizesse o mesmo. – Pensei que tivesse vindo falar com meu pai.
-Não nego que tenho negócios a tratar com Lucius – Snape murmurou, sem flexões em seu tom. – Mas se quiser chegar aos íntimos do Lord, deve aprender Oclumência e Legitimência. O próprio Lord sempre usa em seus Comensais antes de lhes conferir a Marca Negra. Por isso ele sabe nossas fraquezas e nossos poderes.
A sala de visitas da mansão já era sinistra pelos móveis antigos e pelos candelabros negros presos nas paredes. Com um vento ruidoso lá fora e com a voz de Snape descrevendo com tanto afinco as capacidades do Lord das Trevas, o efeito era maior.
Mesmo assim, eu fazia pose de chefe da família. Quando meu pai não estava eu gostava de fazer esse papel. Eu era o herdeiro dos Malfoy, conhecida família sangue-puro, ativamente presente na guerra. Eu me sentia mais poderoso agora, com Snape falando comigo quase se igual para igual. Ele estava demonstrando interesse em meu desenvolvimento como Comensal da Morte.
-Eu vi minha mente ser vasculhada – falei, evitando os olhos negros de meu antigo professor. – Ele viu tudo.
-Eu imagino. Você jurou lealdade, Draco. E espero que seja essa a sua intenção.
Ergui a cabeça.
-Do que está falando?
-Você não queria matar Dumbledore. – o outro disparou, sem parar para respirar. – Ele estava te convencendo a ir para o lado deles. Para sua salvação, Draco, eu cheguei a tempo, como prometi. Você estaria morto se tivesse decidido ir para a Ordem da Fênix.
-Eu nunca iria para a Ordem da Fênix! – gritei, me levantando indignado. – Não fale bobagens, Snape! Eu nunca ajudaria Dumbledore! Eu só...
-Pelo seu bem, Draco, que você esteja me dizendo a verdade. – Snape fitou as próprias unhas malcuidadas. – Se eu não pude, ninguém engana o Lord das Trevas.
-Você tentou? – interroguei imediatamente, parando no meio do movimento de me sentar.
-Isso é algo que você não pode saber, Draco. Mas algo que você deve saber é o que vou lhe ensinar agora.
E a partir daquela noite, eu aprendi a ocultar meus sentimentos e a ler os dos outros. Enxerguei como aquilo me poderia ser útil. Eu, que não tinha muito a esconder, podia me esquecer facilmente e ser um seguidor fiel aos olhos dos outros. Ninguém precisava ver que eu, por um momento em minha vida, quis baixar a varinha e me juntar aos idiotas da Ordem da Fênix.
Snape era o único que sabia disso e eu esperei que ele nunca mencionasse aquele momento.
Mas eu esperei demais.
Não sei se ele realmente me ensinou Oclumência e Legitimência pelo meu bem. Mas conforme eu agia através da guerra, as duas ciências se tornaram extremamente úteis. Certa vez nós invadimos um pequeno bairro trouxa no interior, meu pai na liderança.
Os trouxas estúpidos corriam desabalados, como baratas, por todas as ruas, se escondiam em todos os cantos, apavorados. Nem pareciam seres humanos. Meu pai gargalhava e erguia a varinha, acertando dois ou três. Eu, até aquele momento, havia apenas impedido que dois deles fugissem, através da Imperius.
Foi quando uma menina trouxa, de cerca de nove anos, saiu disparada de uma árvore e se jogou sobre o meu pai, se pendurando no pescoço dele, gritando e chutando em todas as direções; alguns Comensais viraram os rostos mascarados e começaram a rir.
Eu, por trás da minha própria máscara, observei os cabelos despenteados e loiros da menina, se misturando com os do meu pai enquanto ela chorava e gritava. Numa súbita inspiração, meu olhar foi atraído também para o corpo mutilado de uma mulher, também loira, atirado no chão com membros a menos e muito sangue seco no chão. Garota idiota, que achava que poderia vingar sua mãe apenas por pular no pescoço de alguém infinitamente mais poderoso do que ela. Eu... Eu não podia entender o que a impulsionara a fazer aquilo, ao invés de correr com os outros por sua própria vida.
Meu pai gargalhou alto, tão alto que os que ainda não tinham visto se viraram. Depois ele apontou a varinha para a menina e a jogou no chão, onde ela bateu com as costas e imediatamente tentou se levantar, para ir atrás dele. Mas meu pai a suspendeu no ar, para olhar em volta e me encontrar.
-Draco! – berrou ele, do outro lado da rua. – Faça as honras! Eu colocarei a sua Marca Negra sobre a casa.
Então a menina olhou com desespero para a minha máscara. Com a expressão nula e contorcida, indefesa. Como vermes olham para remédios. Como Dumbledore olhou para mim, no final do meu sexto ano em Hogwarts. Eu não sabia que seria daquele jeito. Não sabia que ser um Comensal da Morte significaria ter que olhar nos olhos de alguém antes de matá-lo.
Dor. Ela tinha que sentir dor. Porque o Lord das Trevas queria. Porque ela era uma trouxa imunda. Porque ela se colocara no nosso caminho. Pela mãe dela.
-Crucio!
Quando ela começou a se contorcer e a berrar no ar, e parou de olhar para mim, pude me concentrar melhor na maldição. Dor, dor, sinta dor, você merece, você não tem magia em seu sangue, é só uma trouxa inútil... E ela gritou e esperneou, com uma força espantosa para uma menininha raquítica de nove anos. Em contraste, todos os Comensais riam em descontrole dos berros desesperados. Meu pai, especialmente, parecia orgulhosíssimo. Seu projeto de vida, seu único herdeiro, estava fazendo tudo da maneira certa. Estava destruindo as vidas que mereciam ser destruídas.
-Ótimo! – ele incentivou, sob risos de seus companheiros. – Agora acabe com isso!
Baixei a varinha e ela caiu de novo no chão, exausta, sem forças. Ela tentou se levantar de novo; não era possível que fosse apenas uma criança. Era melhor que ela morresse antes que pudesse olhar para mim de novo. Eu tive medo de fazer exatamente como fiz com Dumbledore.
-Avada Kedavra!
Virei o rosto antes que o jato verde atingisse a menina em cheio.
Só me virei de volta quando ela estava jogada inerte no chão.
Meu pai ergueu a máscara por um momento insensato, apenas para que eu visse como ele estava orgulhoso de mim.
Já eu não quis tirar a máscara, para que ele visse que eu não queria meus olhos sendo perscrutados. Agora que eu sabia como pessoas podem ser lidas, não queria me expor. Eu tinha feito o que ele queria, e era suficiente.
Quando avançamos, eu passei ao lado do corpo dela de novo. O pior era que os olhos castanhos dela ainda estavam abertos. Estalados, assim como haviam estado quando viu que eu iria atacá-la. A maldita não poderia morrer como uma trouxa qualquer? Naquela expressão estava refletida a minha incapacidade. O meu medo. Eu não queria que aquilo ficasse lá, exposto para qualquer um. Apontei de novo minha varinha para ela e destruí todo o cadáver, de modo que ninguém soubesse exatamente o que aquilo tinha sido.




Desde aquele dia, eu prossegui matando, como qualquer outro Comensal. Continuei seguindo as ordens do Lord das Trevas, preso àquela servidão e na verdade, não muito ansioso para tentar fugir dela, agora que estava completamente enredado naquilo.
Certa noite, a porta da Mansão Malfoy se abriu com um estrondo maior do que de costume; e a isto se seguiram passos diversos, com seus ritmos e distâncias diferentes. Meu pai não tinha chegado em casa sozinho, talvez tivesse planejado uma festinha qualquer na rua, ou quisesse uma comemoração regada a whisky de fogo, por qualquer conquista. Eu, que estava lendo no escritório dele, não me mexi para se juntar a eles, não estava com muita vontade, já que eu tinha sido punido da última vez em que encontrada o Lord; falha detalhista, mas não se sabia de um Comensal que não fosse punido regularmente.
Entretanto, os passos não pararam, tampouco foram seguidos de risadas. Pelo jeito, não era uma comemoração, e sim uma reunião de emergência.
-Eu não acredito que vocês deixaram que eles levassem a menina! – meu pai gritou a plenos pulmões, audível em quase todos os quartos da casa.
Eu sabia pouco sobre o que eles estavam falando; apenas captei que meu pai deveria ter mandado alguns Comensais para fazer um seqüestro qualquer, não sei se era alguém importante nem nada. Agora, aquela conversa de deixar uma menina escapar não me soava bem. Ao contrário, me fazia pensar no meu pai como um vilão de fábula que se deixa enganar por crianças. Sacudi a cabeça, com a súbita lembrança da menina trouxa que me derrotara com os olhos.
-Ela tinha chamado a Ordem da Fênix, Lucius, não seja infantil – um deles retrucou, não sei seu nome; não é ainda tão importante a ponto disso.
-Sim, ela chamou a Ordem da Fênix. – meu pai repetiu, irado. – E quantos vieram...? Diga!
Pausa. Imaginei já o que teria acontecido.
-Dois. – o outro respondeu, o mais depressa que pode. – Mas um deles era...
-Acho que não importa se estamos falando de Potter, de qualquer um dos Weasley ou de qualquer sangue ruim que lute com eles! – meu pai berrou, e eu bufei para mim mesmo. Certamente meu pai não estava tão furioso assim. Ele gostava de poder, como eu, como todos na família. E gostava de demonstrá-lo, para que todos o temessem. Eu dei risada naquele momento, embora me espelhasse em suas atitudes.
Como sempre.
Mais uma vez, os outros se calaram. Fiquei esperando, sentado e imóvel, enquanto meu pai de repente suspirava muito alto. Depois perguntou:
-Ao menos vocês pegaram os Escritos Negros?
Sim, dessa vez ele tinha meu interesse completo. Os Escritos Negros? Aquilo poderia significar a vitória do Lord das Trevas! A isto, eu me permiti pensar como um genuíno Comensal. Quem sabe ele conseguisse, afinal, e recompensasse todos nós, que o servimos fielmente todo esse tempo. Quando mais depressa essa guerra terminar, mais rápido meu sossego volta. Não importa, afinal, que eu tenha que servir o Lord para sempre... Eu já estava mesmo acostumando com a idéia de que ele era invencível, e por mais que Potter se quebrasse aqui e ali, destruísse alguma fortaleza ou até mesmo matasse alguns de nós, no final ele ia perder. Até eu já estava acreditando nisso. E pensar que, quando Dumbledore morreu, eu achei que, quem sabe, Potter poderia derrotá-lo.
Não que isso me agradasse. Eu vomitaria todas as manhãs de viver num mundo salvo pelo Potter Perfeito. Entretanto... Era mais fácil trair Potter do que trair o Lord. Seria uma tentativa suicida da minha parte.
Sacudi a cabeça e voltei minha atenção à sala. Se eu continuasse pensando em trair o Lord das Trevas, ele acabaria lendo isso em mim.
-Não é possível que ele não tenha tirado nenhuma cópia! Sim, é claro que ele ia querer mandar os papéis para a Ordem, - meu pai pronunciou a última palavra com tanta repulsa quando era capaz – afinal aquela menina perturbada que ele arrumou costumava andar com alguns deles... Até entrevistou Potter, não se lembram? É óbvio que eles viriam buscá-la! Bem. – ele fez mais uma pausa. – Pelo menos vocês levaram o velho até onde foram mandados?
A isso, pelo menos, houve um murmúrio geral de concordância. Depois, um grito grave que ecoou nas paredes do corredor:
-DRACO!
Respirando fundo, levantei-me e rumei para onde eles estavam. Lancei um breve olhar pelos outros Comensais para saber que estavam no final de nossa hierarquia.
-Draco, venha até aqui.
-Diga, pai.
-Vamos sair agora. Preciso arrancar algumas coisas de um prisioneiro e quero que você fique lá de sentinela.
Virei os olhos.
-E não vou mais para o meu emprego no Ministério? – não pude evitar a ironia na minha voz. Draco Malfoy, Comensal da Morte, trabalhando no Ministério da Magia, bem debaixo do chapéu de Scrimgeour.
-É só até amanhã, quando o Lord mandará alguém mais adequado. Não quero levar nenhum desses estúpidos – acrescentou, com um olhar enojado para os outros – quero que você mesmo faça. Não será difícil. E quanto a vocês...
Cruzei os braços e me encostei contra o batente da porta. Aquilo era bom, não há como negar. Chamar todos aqueles idiotas de todos os nomes que mereciam, recolhê-los à sua fraqueza e insignificância.
Com uma breve aparatação, meu pai e eu logo estávamos em um campo aberto, com grama curta e terreno curvado. Segui meu pai por um caminho em descida para, atrás de uma pedra do tamanho de uma casa, ele parar, bater a varinha e murmurar: “Oggrul Hazzat”. A pedra estremeceu, depois revelou uma passagem estreita, suficiente para uma pessoa passar de lado. Lá dentro, meu pai acendeu a varinha e eu o imitei mais uma vez, curioso para saber quem seria tão importante a ponto de ficar preso ali, naquela caverna que se mostrou bem mais gelada do que o ambiente lá fora, já pouco convidativo. Eu não sabia onde estávamos, e também sabia que, se meu pai não me dissera, era porque eu não devia saber.
Mais alguns passos iluminados à luz das varinhas e meu pai deixou um sorriso malicioso lhe percorrer a boca seca.
-Gostaria muito de dizer que estou honrado – ele murmurou, para alguém acorrentado e amarrado num canto, com a cabeça frouxa encostada à parede. – mas não gosto de mentir quando tenho que fazer interrogatórios. Espero que entenda, Sr. Lovegood.
Claro. O indivíduo semi acordado ali só poderia se chamar Lovegood. Tinha cabelos loiros bagunçados, óculos redondos com as hastes tortas e olhos aumentados demais, escuros, muito abertos. Não gosto de pessoas assim, de olhos expressivos. Parecem impor uma regra para o convívio. As vestes, apesar de sujas, eram claramente de um laranja berrante, e ele tinha uma marca irregular de algum chapéu. A varinha estava, como vi em seguida, sobre uma mesa velha de madeira ao lado do meu pai.
-Um copo de água me ajudaria a entender melhor, eu acho – murmurou o homem, com a cabeça baixa e a testa suada.
Virei as costas para o insolente, sem querer muito presenciar a reação do meu pai.
-Vou esperar lá fora. – murmurei, sem esperar resposta.
A princípio pensei em jogar um feitiço qualquer em meus próprios ouvidos (como o Muffiliato, que Snape me ensinou) para não ouvir gritos nem maldições, nem nada assim. Entretanto, era no mínimo curioso que o Lord estivesse interessado em Lovegood. Quero dizer, ele sempre foi apenas mais um palerma com uma revista estúpida na qual ninguém acredita. São apenas mentiras e invencionices do folclore bruxo, que...
Bem, talvez a maldita entrevista com Potter tenha saído verdadeira, no final. O estúpido realmente fez tudo aquilo e esteve diante do Lord, com apenas quatorze anos. Algo devia estar conspirando a favor dele, porque era simplesmente inaceitável que ele saísse quase ileso daquele encontro. De qualquer forma, não tinha importância.
-Os Escritos Negros, homem, não diga que não está com eles...
-Estão em casa – tossiu Lovegood, depois que meu pai baixasse a varinha. – Onde eu disse que estavam! Como foi que não encontraram?
-Não se faça de idiota, Lovegood – cuspiu meu pai. – Sua filha estúpida teve até tempo de chamar a Ordem da Fênix. Você entregou tudo a ela, não foi?
-Ao contrário, eu os guardei no meu escritório – insistiu o outro. – Luna não estava com eles. Só se ela os levou quando eu cheguei e... Ela não poderia saber que vocês iam querer aquilo de volta, podia?
Meu pai não podia estar feliz com aquilo. Eu encostei a cabeça à parede de pedra e apenas fiquei pensando. Olhei em volta, através dos campos desertos. O cenário estava cheio de uma melancolia diferente do normal. As coisas à minha volta, com a exceção óbvia dos ocupantes daquele projeto de caverna, pareciam todas em paz como eram.
Passou-se um longo tempo no qual Lovegood foi continuamente torturado com a Cruciatus. Eu estava com um cansaço tão grande em mim que respirar parecia exigir mais energia do que o normal. Mal podia esperar para voltar para casa e ficar dormindo.
Esteja em outro lugar...
Este era um dos principais conselhos de Snape, quando ele estava me ensinando Oclumência. Eu tinha que esquecer tudo. Tudo. Incluindo, naquele momento, o meu pai e o homem idiota que ele estava torturando. Com o tempo a impressão de que Oclumência era apenas se reduzir à própria insignificância foi se tornando mais forte. Para quê pensar, para quê ter medo? Tudo acabaria exatamente como acaba com os outros. Eu teria uma morte tão ou mais humilhante do que todos que morreram nas mãos do Lord.
Esse pensamento me fazia experimentar sensações estranhas. Ao mesmo tempo, eu sentia muito desespero e muita coragem. Se tudo acabaria mesmo na minha morte, eu podia simplesmente parar de servir como Comensal da Morte, e podia apenas fugir e tentar viver bem longe, longe da guerra e de todos que tinham me visto crescer. O modo como todos, mesmo os bonzinhos e sem preconceitos, tinham noções fixas de mim e de como eu deveria reagir o tempo todo era irritante; às vezes o que eu mais queria era começar de novo. E, quanto mais olho em volta, mais sinto que todos já tiveram o mesmo desejo.
Sim, então eu poderia enfrentar tudo para conseguir o que eu desejo; mas se a minha morte estava tão próxima, para quê lutar? Nada tinha motivo. Nada tinha razão.
Eu era apenas um estúpido bruxo vazio e oco, sem motivos.
Mas será que alguém tinha?
Meu pai foi embora quando o sol estava se pondo; me deixou algumas instruções e disse que deveria voltar pela manhã com outros Comensais para cuidar do refém.
Entrei de novo na caverna e demorei para me acostumar de novo com a escuridão repentina; quando ela me acolheu, mais uma vez, apenas puxei o banquinho da mesa de madeira e fiquei fitando Lovegood, com um interesse vago e quase sonhador.
Poucas pessoas resistiam ao interrogatório de Lucius Malfoy, e eu estava com uma pergunta de apenas duas respostas: ou aquele bruxo idiota tinha um poder mágico desconhecido e uma personalidade surpreendentemente forte... Ou apenas era um ignorante que não sabia nada sobre a Ordem da Fênix. Embora a filha dele, aquela Loony estranha, já devesse saber mais do que o útil.
O homem estava desacordado, com sangue escorregando lentamente de inúmeras feridas em diversos pontos do corpo; uma das instruções de meu pai fora mantê-lo limpo, pois aquela caverna não podia ser sujada. Não fiz perguntas, mais uma vez. Pouco importava.
Cansado de pensar, apenas conjurei uma garrafa de whisky de fogo. Olhei para um relógio barulhento jogado num canto. Ainda teria muito tempo para ficar ali, conversando comigo mesmo e preso em minhas teorias pessimistas.




No dia seguinte não apareci no Ministério da Magia, onde era Inspetor de Processos Mágicos da comissão do Ministro, fazia parte de uma comissão criada apenas para carregar a burocracia adiante, de modo que o resto do Ministério não tivesse que se preocupar com papéis. O que era muito útil para o Lord, claro, já que cada saída de Aurores para missões passava pela minha mesa. Se não pela minha, cairia com certeza nas mãos de Zabini, um antigo colega esnobe que vivia se vangloriando de honras que ele não tinha.
O meu emprego era um dos poucos lugares onde eu ainda me sentia no comando. Era como em Hogwarts, quando todos me seguiam; todos sabiam que eu cresceria para me tornar um dos mais poderosos Comensais da Morte, sendo filho de Lucius Malfoy. À imagem e semelhança de meu pai, eu gostava de me sentir por cima.
Mas, quando o dia passou e chegou o outro, eu aparatei na porta do Ministério, com minha usual expressão de desdém. Aquela sempre fora minha máscara favorita; eu gostava tanto dela que já estava convencido de que realmente eu não precisava ter educação com ninguém muito menos com meus subordinados. Já estava acomodado no projeto de elevador daquele prédio, quando duas mulheres entraram.
Uma era uma velha caquética com uma bengala retorcida, embora tivesse o punho dourado; se eu aprendera algo na infância, era a reconhecer uma velha rica e extravagante quando via uma. Ao lado dela, uma mulher. Olhar para ela fez com que eu me perguntasse quanto tempo fazia que eu não levava uma mulher para a cama. Mais de um mês, provavelmente. Ser Comensal da Morte embrulhava demais o estômago para que eu pudesse manter meus hábitos adolescentes com regularidade.
Ela tinha longos cabelos negros, que pareciam quase um buraco negro, irreal; era tão escuro que chegou a ser desconfortável ficar olhando. E olhos azuis esquivos. Eu poderia jurar que ela me olhou fixamente ao entrar, mas agora decidira fingir que não estava dividindo elevador com um loiro alto de olhos cinzentos. Certo. Não importava. Na pior das hipóteses, eu poderia fazer uma festinha no porão da Mansão Malfoy naquela noite. Sempre havia dúzias e dúzias de prostitutas filhas de Comensais, convencidas que existiam para nos fazer felizes e para ter filhos que também crescessem para servir o Lord das Trevas.
Ao contrário da mulher, a velha pareceu me perceber imediatamente. Logo ela estava me falando de como era rica e influente e de como estava cuidando de uma herança milionária. Encontrei o olhar da mulher quando fomos apresentados e fiquei sinceramente tentado a usar Legitimência nela. Por algum motivo, ela não parecia largamente interessada em mim.
Quando peguei a mão dela e tentei beijá-la – Diana Higgs, era seu nome – ela tirou depressa, e fiquei com a impressão nítida de que estávamos apenas falando de mais uma mocinha mimada e cheia de frescuras. Provavelmente não imaginava que eu era um Comensal da Morte e realmente não importava se Potter ou o Lord venceria a guerra, desde que todas as lojas de moda do Beco Diagonal permanecessem abertas exclusivamente para ela. Um dia descubro qual é o grande valor da moda para as mulheres. Por ora, apenas me ocupo em pensar quando poderei encontrar Diana Higgs mais uma vez. É uma mulher pequena e com um rosto excessivamente expressivo; características que já a excluiriam de uma vida como Comensal, mesmo que ela quisesse.
Odeio garotinhas mimadas. Quantos anos aquela teria? Dezessete, talvez dezoito? Eu mesmo sou jovem para meu emprego, mas ninguém que me ousa olhar nos olhos diz que tenho menos de vinte. Agora ela... De qualquer forma, não importa. Ao que parece meu porão vai estar cheio de prostitutas esta noite. Talvez eu faça melhor chamando Zabini e alguns outros estúpidos para invejarem minha casa. O modo como eles mordem o lábio ao serem perguntados sobre sua opinião da arquitetura é tão impagável que tiro isso de cada um deles e cada festinha que resolvo patrocinar.
Entro sem bater na sala de Zabini; o homem estava com uma caixa preta em cima da mesa, feita de madeira antiga e rígida. Dentro dela eu sei que estão guardados seus instrumentos de tortura; tão logo ergue a cabeça do que me parece um pergaminho coalhado de anotações, ele deixou escapar um sorriso muito fino e malicioso, já não mais capaz de me alterar. Todos nós sorrimos da mesma maneira, afinal de contas.
-Veja o que eu acabo de receber dos encarregados de artefatos negros – ele diz, me estendendo o pergaminho. – Mapeamos o Ministério da Magia.
Meus olhos imediatamente se estreitam ao ver cada um dos andares meticulosamente desenhados no pergaminho. E não pára por aí. Havia uma série de passagens quebradas entre andares e interligando os salões de audiência. Tudo estranhamente malcuidado, pelo que pude ver.
O melhor não era a localização exata de cada lugar naquele prédio; foram, na verdade, os pontos que eu abandonara no andar do secretário sênior de Scrimgeour. No lugar de Diana e Victoria Higgs, encontrei dois nomes nada agradáveis.
-Então, o que acha? – Zabini insistiu, com uma sobrancelha erguida.
-Útil. – murmurei, me jogando em uma cadeira diante dele. – O que está fazendo com essa porcaria toda jogada aí?
-Ah, só estava planejando a noite. – divagou ele, com os olhos no teto. – Sem missão por hoje, então pensei...
-Vou chamar os outros para a Mansão Malfoy – anunciei, antes que ele terminasse. – Estou farto de fuças de trouxas na minha frente. Se eu encontrar mais um, meus miolos acabam derretendo.
Zabini virou os olhos.
-Certo, certo. – ele fez uma pausa. – Eu não estava muito ansioso para ficar com Parkinson pendurada no meu pescoço a noite toda, mas...
-Você deveria ter chutado aquela idiota no momento certo. A essa altura ela poderia ter encontrado outro Comensal qualquer para chupar o sangue. Já eu, me sinto muito melhor sem pensar em família e filhos saudáveis por um bom tempo.
-Você diz isso porque seu pai está ocupado se orgulhando do assassino que criou – riu ele, empinando o queixo numa imitação grosseira do meu pai. – Já deu uma boa olhada no meu? Medo do Lord, é o que ele tem. Mais do que todos nós. Quase desmaia cada vez que a Marca queima. Fica dizendo que tenho que arrumar uma mulher burra e anônima, diferente do que ele fez, e sumir de mansinho da roda íntima do Lord.
Revirei os olhos.
-Só porque ele tomou o melhor par de chifres do mundo bruxo com essa vadia da sua mãe, quer mudar tudo em você. – comentei.
Achei que Zabini fosse defender a mãe dele; primeiro desencostou-se de sua cadeira, me examinou, mas depois pareceu relaxar.
-Bem, certo. Aquela vadia... Realmente me fazia acreditar que era a inocente nesse conto todo.
-Escute – murmurei. – Você já ouviu falar de Marcus Higgs?
Ele me olhou com estranheza.
-Não. Quem é?
-De acordo com o que ouvi, um diplomata milionário. Há como descobrir sobre a família dele?
Outro sorriso malicioso e eu tinha minha resposta.
-Ótimo. – repliquei, me levantando. – Vou para a minha sala, me mande as respostas lá. E esteja em casa com os outros inúteis às onze horas. Vou mandar buscar o Ogden imediatamente.
Bati a porta e saí no corredor do Ministério da Magia. Enquanto era parado por um ou dois homens influentes, que me cumprimentaram pela eficiência burocrática naqueles tempos de guerra, meu pensamento estava em descobrir todas as informações que a Ordem da Fênix teria plantado sobre Diana Higgs, para que eu pudesse me aproveitar dos conhecimentos privilegiados de Ginny Weasley tanto quanto pudesse.

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